A literatura não se resume a histórias de mocinhas ou poemas de amor melancólicos. Há espaço para denúncias sociais e brados por mudanças, sejam de qual natureza forem. As vozes literárias funcionam como uma lente analítica da sociedade e, por esse motivo, a oitava oficina, a se realizar no dia 07/07, às 08 horas, na sala 08 da UFFS, mostrará a força revolucionária que a palavra literária tem. Principiando pelo "não" de um Operário em Construção, de Vinícius de Moraes, vai-se cruzar o Atlântico para mostrar o cronista José Saramago vendo o papel da história na sociedade e da sociedade na história. Em seguida, o poeta português Antero de Quental irá mostrar o valor que existe nas revoluções e a necessidade de combate. Por fim, Graciliano Ramos verá na figura de Fabiano preso um símbolo da incoerência e injustiça social.
Operário
em Construção- Vinícius de Moraes
Era
ele que erguia casas
Onde
antes so' havia chão.
Como
um pássaro sem asas
Ele
subia com as asas
Que
lhe brotavam da mão.
Mas
tudo desconhecia
De
sua grande missão:
Nao
sabia por exemplo
Que
a casa de um homem e' um templo
Um
templo sem religião
Como
tampouco sabia
Que
a casa quer ele fazia
Sendo
a sua liberdade
Era
a sua escravidão.
De
fato como podia
Um
operário em construção
Compreender
porque um tijolo
Valia
mais do que um pão?
Tijolos
ele empilhava
Com
pa', cimento e esquadria
Quanto
ao pão, ele o comia
Mas
fosse comer tijolo!
E
assim o operário ia
Com
sour e com cimento
Erguendo
uma casa aqui
Adiante
um apartamento
Alem
uma igreja, à frente
Um
quatel e uma prisão:
Prisão
de que sofreria
Nao
fosse eventuialmente
Um
operário em contrucão.
Mas
ele desconhecia
Esse
fato extraordinário:
Que
o operário faz a coisa
E a
coisa faz o operário.
De
forma que, certo dia
`A
mesa, ao cortar o pão
O
operário foi tomado
De
uma subita emoção
Ao
constatar assombrado
Que
tudo naquela mesa
-
Garrafa, prato, facão
Era
ele quem fazia
Ele,
um humilde operário
Um
operario em construção.
Olhou
em torno: a gamela
Banco,
enxerga, caldeirão
Vidro,
parede, janela
Casa,
cidade, nação!
Tudo,
tudo o que existia
Era
ele quem os fazia
Ele,
um humilde operário
Um
operário que sabia
Exercer
a profissão.
Ah,
homens de pensamento
Nao
sabereis nunca o quanto
Aquele
humilde operário
Soube
naquele momento
Naquela
casa vazia
Que
ele mesmo levantara
Um
mundo novo nascia
De
que sequer suspeitava.
O
operário emocionado
Olhou
sua propria mao
Sua
rude mão de operário
De
operário em construção
E
olhando bem para ela
Teve
um segundo a impressão
De
que nao havia no mundo
Coisa
que fosse mais bela.
Foi
dentro dessa compreensão
Desse
instante solitário
Que,
tal sua construção
Cresceu
tambem o operário
Cresceu
em alto e profundo
Em
largo e no coração
E
como tudo que cresce
Ele
nao cresceu em vão
Pois
alem do que sabia
-
Excercer a profissão -
O
operário adquiriu
Uma
nova dimensão:
A
dimensão da poesia.
E um
fato novo se viu
Que
a todos admirava:
O
que o operário dizia
Outro
operário escutava.
E
foi assim que o operário
Do
edificio em construção
Que
sempre dizia "sim"
Comecam
a dizer "não"
E
aprendeu a notar coisas
A
que nao dava atenção:
Notou
que sua marmita
Era
o prato do patrão
Que
sua cerveja preta
Era
o uisque do patrão
Que
seu macacão de zuarte
Era
o terno do patrão
Que
o casebre onde morava
Era
a mansão do patrão
Que
seus dois pes andarilhjos
Eram
as rodas do patrão
Que
a dureza do seu dia
Era
a noite do patrão
Que
sua imensa fadiga
Era
amiga do patrão.
E o
operário disse: Não!
E o
operário fez-se forte
Na
sua resolução
Como
era de se esperar
As
bocas da delação
Comecaram
a dizer coisas
Aos
ouvidos do patrão
Mas
o patrão nao queria
Nenhuma
preocupação.
-
"Convencam-no" do contrário
Disse
ele sobre o operário
E ao
dizer isto sorria.
Dia
seguinte o operário
Ao
sair da construção
Viu-se
subito cercado
Dos
homens da delação
E
sofreu por destinado
Sua
primeira agressão
Teve
seu rosto cuspido
Teve
seu braço quebrado
Mas
quando foi perguntado
O
operário disse: Não!
Em
vao sofrera o operário
Sua
primeira agressão
Muitas
outras seguiram
Muitas
outras seguirão
Porem,
por imprescindivel
Ao
edificio em construção
Seu
trabalho prosseguia
E
todo o seu sofrimento
Misturava-se
ao cimento
Da
construção que crescia.
Sentindo
que a violência
Nao
dobraria o operário
Um
dia tentou o patrão
Dobra-lo
de modo contrário
De
sorte que o foi levando
Ao
alto da construção
E
num momento de tempo
Mostrou-lhe
toda a região
E
apontando-a ao operário
Fez-lhe
esta declaração:
-
Dar-te-ei todo esse poder
E a
sua satisfação
Porque
a mim me foi entregue
E
dou-o a quem quiser.
Dou-te
tempo de lazer
Dou-te
tempo de mulher
Portanto,
tudo o que ver
Sera'
teu se me adorares
E,
ainda mais, se abandonares
O
que te faz dizer não.
Disse
e fitou o operário
Que
olhava e refletia
Mas
o que via o operário
O
patrão nunca veria
O
operário via casas
E
dentro das estruturas
Via
coisas, objetos
Produtos,
manufaturas.
Via
tudo o que fazia
O
lucro do seu patrão
E em
cada coisa que via
Misteriosamente
havia
A
marca de sua mão.
E o
operário disse: Não!
-
Loucura! - gritou o patrão
Nao
ves o que te dou eu?
-
Mentira! - disse o operário
Nao
podes dar-me o que e' meu.
E um
grande silêncio fez-se
Dentro
do seu coração
Um
silêncio de martirios
Um
silêncio de prisão.
Um
siêncio povoado
De
pedidos de perdão
Um
silencio apavorado
Com
o medo em solidão
Um
silêncio de torturas
E
gritos de maldição
Um
silêncio de fraturas
A se
arratarem no chão
E o
operário ouviu a voz
De
todos os seus irmãos
Os
seus irmãos que morreram
Por
outros que viverão
Uma
esperanca sincera
Cresceu
no seu coração
E
dentro da tarde mansa
Agigantou-se
a razão
De
um homem pobre e esquecido
Razao
porem que fizera
Em
operário construido
O
operário em construção
Os
gritos de Giordano Bruno - José Saramago
Afinal,
não é muito grande a diferença que há entre um dicionário de
biografias e um vulgar cemitério. As três linhas secas e
indiferentes com que na maior parte dos casos os dicionaristas
resumem uma vida são o equivalente da sepultura rasa que recebe os
restos daqueles que (perdoe-se o trocadilho fácil) não deixam
restos.A página cheia, com autógrafo e fotografia, é o mausoléu
de boa pedra, portas de ferro e coroa de bronze, mais a romagem
anual. Mas o visitante fará bem em não se deixar confundir pelos
alçados de arquiteto, pelas esculturas e cruzes, pelas carpideiras
de mármore, por todo o cenário que a morte pomposa desde sempre
aprecia. Igualmente deverá dar atenção, se está em campo aberto,
sem referências, ao sítio onde põe os pés, não vá acontecer que
debaixo dos seus sapatos se encontre o maior homem do mundo
Não
estará, porém, a pisar a sepultura de Giordano Bruno, porque esse
foi queimado em Roma, ardeu atrozmente como arde o corpo humano, e
dele, que eu saiba, nem as cinzas lhe guardaram. Mas ao mesmo
Giordano, para que todas as coisas fiquem nos lugares que lhes
competem e justiça enfim se faça, foram reservadas quatro linhas
neste dicionário biográfico. Em tão pouco espaço, em tão poucas
letras, ali, entre a data do nascimento (1548) e a data da morte
(1600), balizas de um universo pessoal que viveu no mundo, pouco se
diz: italiano, filósofo, panteísta, dominicano, deixou as ordens,
negou-se a renunciar às suas ideias, foi queimado vivo. Nada mais.
Nasce e vive um homem, luta e morre, assim, para isto. Quatro linhas,
descansa em paz, paz à tua alma se nela acreditavas. E nós fazemos
excelente figura entre amigos, em sociedade, na reunião, à mesa do
restaurante, na discussão profunda, se deixamos cair adequadamente,
de um modo familiar e entendido, a meia dúzia de palavras de que
fizemos uma espécie de gazua ou chave falsa com que julgamos poder
abrir uma vida e uma consciência.
Mas,
para nosso desconforto, se estamos em hora e maré de lucidez, os
gritos de Giordano Bruno rompem como uma explosão que nos arranca
das mãos o copo de uísque e nos apaga dos lábios o sorriso
intelectual que escolhemos para falar destes casos. Sim, é essa a
verdade, a incómoda verdade que vem para desmanchar o suave
entendimento do diálogo: Giordano Bruno gritou quando foi queimado.
O dicionário só diz que ele foi queimado, não diz que gritou. Ora,
que dicionário é este que não informa? Para que quero eu uma
biografia de Giordano Bruno que não fala dos gritos que ele deu,
ali, em Roma, numa praça ou num pátio, com gente à roda, uns que
ateavam o lume, outros que assistiam, outros que serenamente
escreviam o auto de execução?
Demasiado
esquecemos que os homens são de carne facilmente sofredora. Desde a
infância que os educadores nos falam de mártires, dão-nos exemplos
de civismo e moral à custa deles, mas não dizem quanto foi doloroso
o martírio, a tortura. Tudo fica no abstrato, filtrado, como se
olhássemos a cena, em Roma, através de grossas paredes de vidro que
abafassem os sons, e as imagens perdessem a violência do gesto por
obra, graça e virtude da refração. E então podemos dizer,
tranquilamente, uns aos outros, que Giordano Bruno foi queimado. Se
gritou, não ouvimos. E se não ouvimos, onde está a dor?
Mas
gritou, meus amigos. E continua a gritar.
Ir e
voltar - José Saramago
Este
meu gosto por museus e pedras velhas, que no parecer de alguns
denunciará uma suspeita tendência para evasões, é, pelo
contrário, o sinal mais certo de uma viva radicação no mundo em
que estou. De facto, não creio que alguém possa, com verdade,
dizer-se do seu tempo, se não se sentir envolvido num todo geral que
abarque o mundo como ele é e como ele foi. Aquele corpo ressequido,
dentro da sua caixa de vidro, no Museu Britânico, que foi um corpo
vivo há três mil anos, desencadeia imediatamente em mim um processo
mental que me mostra a história dos homens como uma imensa rede de
braços, uma iluminação de olhos, um rumor de passos dentro de um
formigueiro. E quando numa noite de Paris dei com a Notre-Dame dentro
do nevoeiro, sob a luz amortecida dos projectores, e parecendo toda
ela uma construção estranhíssima de pedra roxa – não tive mão
em mim que evitasse umas tantas reflexões caseiras que logo me
afastaram das pacíficas banalidades estéticas.
Aqui
em Portugal, se não exagero, temos a pecha de falar de mais da
história que vivemos e fizemos, quando afinal não somos os únicos
a medir a história pátria em séculos, e se é verdade que fomos
descobridores e marinheiros, parecemos esquecidos de que todos os
povos virados aos mares e aos oceanos algo acabaram também por
navegar e descobrir: os gregos como os fenícios, os escandinavos
como os holandeses, os espanhóis como os italianos.
Bem
sabemos que de evidências deste gênero é que se alimenta a vaidade
dos povos e a xenofobia que quase todos cultivam: por essa via, cada
um há-de sentir-se o melhor, o mais ousado, o mais culto, o mais
adiantado, uma espécie de parcialíssima divindade que dividisse a
história em gomos, como uma laranja, e a distribuísse ao sabor das
suas inclinações. Creio que país nenhum se livra deste pecado de
soberba, e isso nos desculparia se tal comportamento não se
agravasse em nós com um claro divórcio entre o que vamos dizendo e
o que somos capazes de sentir. Falamos das glórias passadas, das
conquistas, das descobertas, como de fantasmas imateriais a que os
compêndios escolares não dão vida, nem as pedras mortas
substância. Gostaria bem de saber, por exemplo, se o povo português
se sente realmente herdeiro de Bartolomeu Dias e de Gil Vicente, de
Afonso Henriques e de Luís de Camões, de D. Dinis e de Fernão
Lopes. Seria um teste a fazer entre nós, e muito menos gratuito do
que poderá parecer a gente apressada que faz todos os dias a sua
revolução cultural.
Claro
que não estou a pensar em cultivar-se um tipo de devoção
historicista toda voltada para o passado, para os “bons tempos”
em que fomos senhores do mundo ou, mais modestamente, do nosso
caminho. Tratar-se-ia, antes, de desenredar esse caminho do amontoado
do tempo e dos acontecimentos, de modo a encontrarmo-nos, como povo,
conscientes, agora sim, de um tempo histórico vivido e assumido,
perante a nova sociedade (e quem sabe a nova civilização) que em
todo o mundo se forma, entre os sobressaltos e os estertores do que
ainda não há muito tempo parecia tão sólido, tão para durar.
Vistos
de longe (e vistos de perto depois) damos de algum modo a ideia de
vivermos o nosso dia-a-dia como se não tivesse havido ontem e não
haja amanhã, numa espécie de sonambulismo fatalista que espera
resignidamente a repetição do terramoto de 1755. Ou então, que um
braço salvador (talvez D. Sebastião) nos arranque a todos, de um só
puxão, do vagaroso afundamento em que nos distraímos.
Individualmente. Coletivamente
Este
arrazoado melancólico, ninguém o pediu ao cronista, e o mais certo
é que lho censurem os que do otimismo fizeram profissão e credo.
Mas a pergunta: “Que seremos amanhã?”, é para mim uma obsessão,
uma voz murmurante, um grito em certas horas de silêncio.
A
resposta (se alguma vez vier a ser dada) é infinitamente plural, mas
nela não estará nenhuma contribuição minha: nunca como hoje se
pôde brincar menos com coisas sérias, e as exigências da análise
que a ela levaria são tais e tão diversificadas, que o simples
cronista que eu sou se deverá dar por satisfeito com aflorar ao de
leve as interrogações mais próximas. É o seu modo de estar
presente, de intervir, de exprimir a sua cidadania, de querer bem ao
país onde nasceu, de amar o povo a que pertence.
Sonetos
(Antero de Quental)
A um
poeta
(surge et ambula)
Tu
que dormes, espírito sereno,
Posto
à sombra dos cedros seculares,
Como
um levita à sombra dos altares,
Longe
da luta e do fragor terreno.
Acorda!
É tempo! O sol, já alto e pleno
Afugentou
as larvas tumulares...
Para
surgir do seio desses mares
Um
mundo novo espera só um aceno...
Escuta!
É a grande voz das multidões!
São
teus irmãos, que se erguem! São canções...
Mas
de guerra... e são vozes de rebate!
Ergue-te,
pois, soldado do Futuro,
E
dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador,
faze espada de combate!
Justitia
Mater
Nas
florestas solemnes ha o culto
Da
eterna, intima força primitiva:
Na
serra, o grito audaz da alma captiva,
Do
coração, em seu combate inulto:
No
espaço constelado passa o vulto
Do
innominado Alguem, que os soes aviva:
No
mar ouve-se a voz grave e afflictiva
D'um
deus que lucta, poderoso e inculto.
Mas
nas negras cidades, onde sôlta
Se
ergue, de sangue medida, a revolta,
Como
incendio que um vento bravo atiça,
Ha
mais alta missão, mais alta glória:
O
combater, á grande luz da historia,
Os
combates eternos da Justiça!
Tese
e Antítese
I
Já
não sei o que vale a nova ideia,
Quando
a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva
no aspecto, à luz da barricada,
Como
bacante após lúbrica ceia!
Sanguinolento
o olhar se lhe incendeia…
Respira
fumo e fogo embriagada…
A
deusa de alma vasta e sossegada
Ei-la
presa das fúrias de Medeia!
Um
século irritado e truculento
Chama
à epilepsia pensamento,
Verbo
ao estampido de pelouro e obus…
Mas
a ideia é num mundo inalterável,
Num
cristalino Céu que vive estável…
Tu,
pensamento, não és fogo, és luz!
II
Num
céu intemerato e cristalino
Pode
habitar talvez um Deus distante,
Vendo
passar em sonho cambiante
O
Ser, como espectáculo divino:
Mas
o homem, na terra onde o destino
O
lançou vive e agita-se incessante…
Enche
o ar da terra o seu pulmão possante…
Cá
da terra blasfema ou ergue um hino…
A
ideia encarna em peitos que palpitam:
O
seu pulsar são chamas que crepitam,
Paixões
ardentes como vivos sóis!
Combatei
pois na terra árida e bruta,
Té
que a revolva o remoinhar da luta,
Té
que a fecunde o sangue dos heróis.
A um
Crucifixo
Há
mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
E
clamaste da cruz: há Deus! e olhaste, ó crente,
O
horizonte futuro e viste, em tua mente,
Um
alvor ideal banhar esses espaços!
Por
que morreu sem eco, o eco de teus passos,
E de
tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?
Morreste...
ah! dorme em paz! não volvas, que descrente
Arrojaras
de novo à campa os membros lassos...
Agora,
como então, na mesma terra erma,
A
mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
Sob
o mesmo ermo céu, frio como um sudário...
E
agora, como então, viras o mundo exangue,
E
ouviras perguntar — de que serviu o sangue
Com
que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário? —
Graciliano Ramos
Capitulo
III - Cadeia FABIANO tinha ido a feira da cidade comprar mantimentos.
Precisava
sal, farinha, feijao e rapaduras. Sinha Vitoria pedira alem disso uma
garrafa de querosene e um corte de chita vermelha. Mas o querosene de
seu Inacio estava misturado com agua, e a chita da amostra era cara
demais.
Fabiano
percorreu as lojas, escolhendo o pano regateando um tostao em covado,
receoso de ser enganado. Andava irresoluto, uma longa desconfianca
dava-lhe gestos obliquos. A tarde puxou o dinheiro, meio tentado, e
logo se arrependeu, certo de que todos os caixeiros furtavam no preco
e na medida: amarrou as notas na ponta do lenco, meteu-as na
algibeira, dirigiu-se a bodega de seu Inacio, onde guardara os
picuas.
Ai
certificou-se novamente de que o querosene estava batizado e decidiu
beber uma pinga, pois sentia calor. Seu Inacio trouxe a garrafa de
aguardente. Fabiano virou o copo de um trago, cuspiu, limpou os
beicos a manga, contraiu o rosto. Ia jurar que a cachaca tinha agua.
Por que seria que seu Inacio botava agua em tudo? perguntou
mentalmente.
Animou-se
e interrogou o bodegueiro: - Por que e que vossemece bota agua em
tudo? Seu Inacio fingiu nao ouvir. E Fabiano foi sentar-se na
calcada, resolvido a conversar. O vocabulario dele era pequeno, mas
em horas de comunicabilidade enriquecia-se com algumas expressoes de
seu Tomas da bolandeira. Pobre de seu Tomas. Um homem tao direito
sumir-se como cambembe, andar por este mundo de trouxa nas costas.
Seu Tomas era pessoa de consideracao e votava. Quem diria? Nesse
ponto um soldado amarelo aproximou-se e bateu familiarmente no ombro
de Fabiano: - Como e, camarada? Vamos jogar um trinta-e-um la dentro?
Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as
palavras de seu Tomas da bolandeira: - Isto e. Vamos e nao vamos.
Quer dizer Enfim, contanto, etc. E conforme.
Levantou-se
e caminhou atras do amarelo, que era autoridade e mandava. Fabiano
sempre havia obedecido. Tinha muque e substancia, mas pensava pouco,
desejava pouco e obedecia.
Atravessaram
a bodega, a corredor, desembocaram numa sala onde varios tipos
jogavam cartas em cima de uma esteira.
-
Desafasta, ordenou o policia. Aqui tem gente.
Os
jogadores apertaram-se, os dois homens sentaram-se, o soldado amarelo
pegou o baralho. Mas com tanta infelicidade que em pouco tempo se
enrascou. Fabiano encalacrou-se tambem.
Sinha
Vitoria ia danar-se, e com razao.
-
Bem feito.
Ergueu-se
furioso, saiu da sala, trombudo. - Espera ai, paisano, gritou o
amarelo.
Fabiano,
as orelhas ardendo, nao se virou. Foi pedir a seu Inacio os trocos
que ele havia guardado, vestiu o gibao, passou as correias dos
alforjes no ombro, ganhou a rua.
Debaixo
do jatoba do quadro taramelou com Sinha Rita louceira, sem se atrever
a voltar para casa. Que desculpa iria apresentar a Sinha Vitoria?
Forjava uma explicacao dificil. Perdera o embrulho da fazenda, pagara
na botica uma garrafada para Sinha Rita louceira. Atrapalhava-se
tinha imaginacao fraca e nao sabia mentir. Nas invencoes com que
pretendia justificar-se a figura de Sinha Rita aparecia sempre, e
isto o desgostava. Arruinaria uma historia sem ela, diria que haviam
furtado o cobre da chita. Pois nao era? Os parceiros o tinham pelado
no trinta-e-um. Mas nao devia mencionar o jogo. Contaria simplesmente
que o lenco das notas ficara no bolso do gibao e levara sumico.
Falaria assim: - "Comprei os mantimentos. Botei o gibao e os
alforjes na bodega de seu Inacio. Encontrei um soldado amarelo"
Nao, nao encontrara ninguem. Atrapalhava-se de novo. Sentia desejo de
referir-se ao soldado, um conhecido velho, amigo de infancia.
A
mulher se incharia com a noticia. Talvez nao se inchasse.
Era
atilada, notaria a pabulagem. Pois estava acabado. O dinheiro fugira
do bolso do gibao, na venda de seu Inacio.
Natural.
Repetia
que era natural quando alguem lhe deu um empurrao, atirou-o contra o
jatoba. A feira se desmanchava; escurecia; o homem da iluminacao,
trepando numa escada, acendia os lampioes. A estrela papa-ceia
branqueou por cima da torre da igreja; o doutor juiz de direito foi
brilhar na porta da farmacia; o cobrador da prefeitura passou
coxeando, com taloes de recibos debaixo do braco; a carroca de lixo
rolou na praca recolhendo cascas de frutas; seu vigario saiu de casa
e abriu o guarda-chuva por causa do sereno; Sinha Rita louceira
retirou-se.
Fabiano
estremeceu. Chegaria a fazenda noite fechada.
Entretido
com o diabo do jogo, tonto de aguardente, deixara o tempo correr. E
nao levava o querosene, ia-se alumiar durante a semana com pedacos de
facheiro. Aprumou-se, disposto a viajar. Outro empurrao
desequilibrou-o. Voltou-se e viu ali perto o soldado amarelo, que o
desafiava, a cara enferrujada, uma ruga na testa. Mexeu-se para
sacudir o chapeu de couro nas ventas do agressor. Com uma pancada
certa do chapeu de couro, aquele tico de gente ia ao barro. Olhou as
coisas e as pessoas em roda e moderou a indignacao. Na catinga ele as
vezes cantava de galo, mas na rua encolhia-se.
-
Vossemece nao tem direito de provocar os que estao quietos.
-
Desafasta, bradou o policia.
E
insultou Fabiano, porque ele tinha deixado a bodega sem se despedir.
-
Lorota, gaguejou o matuto. Eu tenho culpa de vossemece esbagacar os
seus possuidos no jogo? Engasgou-se. A autoridade rondou por ali um
instante, desejosa de puxar questao. Nao achando pretexto,
avizinhou-se e plantou o salto da reiuna em cima da alpercata do
vaqueiro.
-
Isso nao se faz, moco, protestou Fabiano. Estou quieto.
Veja
que mole e quente e pe de gente.
O
outro continuou a pisar com forca. Fabiano impacientou-se e xingou a
mae dele. Ai o amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da
cidade rodeava o jatoba.
-
Toca pra frente, berrou o cabo.
Fabiano
marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma
acusacao medonha e nao se defendeu.
-
Esta certo, disse o cabo. Faca lombo, paisano.
Fabiano
caiu de joelhos, repetidamente uma lamina de facao bateu-lhe no
peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um
safanao que o arremessou para as trevas do carcere. A chave tilintou
na fechadura, e Fabiano ergueuse atordoado, cambaleou, sentou-se num
canto, rosnando - Hum! hum! Porque tinham feito aquilo? Era o que nao
podia saber.
Pessoa
de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso. De repente um fuzue
sem motivo. Achava-se tao perturbado que nem acreditava naquela
desgraca. Tinham-lhe caido todos em cima, de supetao, como uns
condenados. Assim um homem nao podia resistir.
-
Bem, bem.
Passou
as maos nas costas e no peito, sentiu-se moido, os olhos azulados
brilharam como olhos de gato. Tinham-no realmente surrado e prendido.
Mas era um caso tao esquisito que instantes depois balancava a
cabeca, duvidando, apesar das machucaduras.
Ora,
o soldado amarelo ... Sim, havia um amarelo, criatura desgracada que
ele, Fabiano, desmancharia com um tabefe. Nao tinha desmanchado por
causa dos homens que mandavam. Cuspiu, com desprezo: - Safado,
mofino, escarro de gente. Por mor de uma peste daquela, maltratava-se
um pai de familia. Pensou na mulher, nos filhos e e figura.
na
cachorrinha. Engatinhando, procurou os alforjes, que haviam caido no
chao, certificou-se de que os objetos comprados na feira estavam
todos ali. Podia ter-se perdido alguma coisa na confusao. Lembrou-se
de uma fazenda vista na ultima das lojas que visitara. Bonita,
encorpada, larga, vermelha e com ramagens, exatamente o que Sinha
Vitoria desejava. Encolhendo um tostao em covado, por sovinice,
acabava o dia daquele jeito. Tornou a mexer nos alforjes.
Sinha
Vitoria devia estar desassossegada com a demora dele. A casa no
escuro, os meninos em redor do fogo, a cachorra Baleia vigiando. Com
certeza haviam fechado a porta da frente.
Estirou
as pernas, encostou as carnes doidas ao muro. Se lhe tivessem dado
tempo, ele teria explicado tudo direitinho.
Mas
pegado de surpresa, embatucara. Quem nao ficaria azuretado com
semelhante desproposito? Nao queria capacitarse de que a malvadez
tivesse sido para ele. Havia engano, provavelmente o amarelo o
confundira com outro. Nao era senao isso.
Entao
porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na
cadeia, da-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim,
acostumara-se a todas as violencias, a todas.
as
injusticas. E aos conhecidos que dormiam no tronco e aguentavam cipo
de boi oferecia consolacoes: -- "Tenha paciencia. Apanhar do
governo nao e desfeita.&8221; Mas agora rangia os dentes,
soprava. Merecia castigo? - An! E, por mais que forcejasse, nao se
convencia de que o soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa
distante e perfeita, nao podia errar. O soldado amarelo estava ali
perto, alem da grade,. era fraco e ruim, jogava na esteira com os
matutos e provocava-os depois. O governo nao devia consentir tao
grande safadeza.
Afinal
para que serviam os soldados amarelos? Deu um pontape na parede,
gritou enfurecido. Para que serviam os soldados amarelos? Os outros
presos remexeram-se, o carcereiro chegou a grade, e Fabiano
acalmou-se: - Bem, bem. Nao ha nada nao.
Havia
muitas coisas. Ele nao podia explica-las, mas havia.
Fossem
perguntar a seu Tomas da bolandeira, que lia livros e sabia onde
tinha as ventas. Seu Tomas da bolandeira contaria aquela historia.
Ele, Fabiano, um bruto, nao contava nada. So queria voltar para junto
de Sinha Vitoria, deitar-se na cama de varas. Porque vinham bulir com
um homem que so queria descansar? Deviam bulir com outros.
-
An! Estava tudo errado.
-
An! Tinham la coragem? Imaginou o soldado amarelo atirando-se a um
cangaceiro na catinga. Tinha graca. Nao dava um caldo.
Lembrou-se
da casa velha onde morava, da cozinha, da panela que chiava na trempe
de pedras. Sinha Vitoria punha sal na comida. Abriu os alforjes
novamente: a trouxa de sal nao se tinha perdido. Bem. Sinha Vitoria
provava o caldo na quenga de coco. E Fabiano se aperreava por causa
dela, dos filhos e da cachorra Baleia, que era como uma pessoa da
familia, sabida como gente. Naquela viagem arrastada, em tempo de
seca braba, quando estavam todos morrendo de fome, a cadelinha tinha
trazido para eles um prea. Ia envelhecendo, coitada.
Sinha
Vitoria, inquieta, com certeza fora muitas vezes escutar na porta da
frente. O galo batia as asas, os bichos bodejavam no chiqueiro, os
chocalhos das vacas tiniam.
Se
nao fosse isso ... An! Em que estava pensando? Meteu os olhos pela
grade da rua. Chi! que pretume! O lampiao da esquina se apagara,
provavelmente o homem da escada so botara nele meio quarteirao de
querosene. Pobre de Sinha Vitoria, cheia de cuidados, na escuridao.
Os meninos sentados perto do lume, a panela chiando na trempe de
pedras, Baleia atenta, o candeeiro de folha pendurado na ponta de uma
vara que saia da parede.
Estava
tao cansado, tao machucado, que ia quase adormecendo no meio daquela
desgraca. Havia ali um bebedo tresvariando em voz alta e alguns
homens agachados em redor de um fogo que enchia o carcere de fumaca.
Discutiam e queixavam-se da lenha molhada.
Fabiano
cochilava, a cabeca pesada inclinava-se para o peito e levantava-se.
Devia ter comprado o querosene de seu Inacio. A mulher e os meninos
aguentando fumaca nos olhos.
Acordou
sobressaltado. Pois nao estava misturando as pessoas, desatinando?
Talvez fosse efeito da cachaca. Nao era: tinha bebido um copo, tanto
assim, quatro dedos. Se lhe dessem tempo, contaria o que se passara.
Ouviu
o falatorio desconexo do bebedo, caiu numa indecisao dolorosa. Ele
tambem dizia palavras sem sentido, conversava a toa. Mas irou-se com
a comparacao, deu marradas na parede.
Era
bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, nao sabia explicar-se.
Estava preso por isso? Como era? Entao mete-se um homem na cadeia
porque ele nao sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele?
Vivia trabalhando como um escravo. Desentupia o bebedouro, consertava
as cercas, curava os animais - aproveitara um casco de fazenda sem
valor. Tudo em ordem, podiam ver. Tinha culpa de ser bruto? Quem
tinha culpa? Se nao fosse aquilo ... Nem sabia. O fio da ideia
cresceu, engrossou - e partiu-se. Dificil pensar. Vivia tao agarrado
aos bichos. .. Nunca vira uma escola. Por isso nao conseguia
defender-se, botar as coisas nos seus lugares. O demonio daquela
historia entrava-lhe na cabeca e saia. Era para um cristao
endoidecer. Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de
entende-la. Impossivel, so sabia lidar com bichos.
Enfim,
contanto ... Seu Tomas daria informacoes. Fossem perguntar a ele.
Homem bom, seu Tomas da bolandeira, homem aprendido. Cada qual como
Deus o fez. Ele, Fabiano, era aquilo mesmo, um bruto.
O
que desejava ... An! Esquecia-se. Agora se recordava da viagem que
tinha feito pelo sertao a cair de fome. As pernas dos meninos eram
finas como bilros, Sinha Vitoria tropicava debaixo do bau de trens.
Na beira do rio haviam comido o papagaio, que nao sabia falar.
Necessidade.
Fabiano
tambem nao sabia falar. As vezes largava nomes arrevesados, por
embromacao. Via perfeitamente que tudo era besteira. Nao podia
arrumar o que tinha no interior. Se pudesse ... Ah! Se pudesse,
atacaria os soldados amarelos que espancam as criaturas inofensivas.
Bateu
na cabeca, apertou-a. Que faziam aqueles sujeitos acocorados em torno
do fogo? Que dizia aquele bebedo que se esgoelava como um doido,
gastando folego a toa? Sentiu vontade de gritar, de anunciar muito
alto que eles nao prestavam para nada. Ouviu uma voz fina. Alguem no
xadrez das mulheres chorava e arrenegava as pulgas. Rapariga da vida,
certamente de porta aberta. Essa tambem nao prestava para nada.
Fabiano queria berrar para a cidade inteira, afirmar ao doutor juiz
de direito, ao delegado, a seu vigario e aos cobradores da prefeitura
que ali dentro ninguem prestava para nada. Ele, os homens acocorados,
o bebedo, a mulher das pulgas, tudo era uma lastima, so servia para
aguentar facao.
Era
o que ele queria dizer.
E
havia tambem aquele fogo-corredor que ia e vinha no espirito dele.
Sim, havia aquilo. Como era? Precisava descansar. Estava com a testa
doendo, provavelmente em consequencia de uma pancada de cabo de
facao. E doia-lhe. a cabeca toda, parecia-lhe que tinha fogo por
dentro, parecialhe que tinha nos miolos uma panela fervendo.
Pobre
de Sinha Vitoria, inquieta e sossegando os meninos.
Baleia
vigiando, perto da trempe. Se nao fossem eles ...
Agora
Fabiano conseguia arranjar as ideias. O que o segurava era a familia.
Vivia preso como um novilho amarrado ao mourao, suportando ferro
quente. Se nao fosse isso, um soldado amarelo nao lhe pisava o pe
nao. O que lhe amolecia o corpo era a lembranca da mulher e dos
filhos. Sem aqueles camboes pesados, nao envergaria o espinhaco nao,
sairia dali como onca e faria uma asneira. Carregaria a espingarda e
daria um tiro de pe de pau no soldado amarelo. Nao. O soldado amarelo
era um infeliz que nem merecia um tabefe com as costas da mao.
Mataria os donos dele. Entraria num bando de cangaceiros e faria
estrago nos homens que dirigiam o soldado amarelo. Nao ficaria um
para semente. Era a ideia que lhe fervia na cabeca. Mas havia a
mulher, havia os meninos, havia a cachorrinha.
Fabiano
gritou, assustando o bebedo, os tipos que abanavam o fogo, o
carcereiro e a mulher que se queixava das pulgas.
Tinha
aqueles camboes pendurados ao pescoco. Deveria continuar a
arrasta-los? Sinha Vitoria dormia mal na cama de varas. Os meninos
eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem, guardariam as reses
de um patrao invisivel, seriam pisados, maltratados, machucados por
um soldado amarelo.
Fonte:
http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/graciliano-ramos/vidas-secas.php#ixzz1zVab5BKW
Perguntas
de um trabalhador que lê (Bertold Brecht)
Quem
construiu a Tebas de sete portas?
Nos
livros estão nomes de reis.
Arrastaram
eles os blocos de pedra?
E a
Babilônia várias vezes destruída
Quem
a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
Da
Lima dourada moravam os construtores?
Para
onde foram os pedreiros, na noite em que
a
Muralha da China ficou pronta?
A
grande Roma está cheia de arcos do triunfo
Quem
os ergueu? Sobre quem
triunfaram
os Césares? A decantada Bizâncio
tinha
somente palácios para os seus habitantes? Mesmo
na
lendária Atlântida
os
que se afogavam gritaram por seus escravos
na
noite em que o mar a tragou.
O
jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César
bateu os gauleses.
Não
levava sequer um cozinheiro?
Filipe
da Espanha chorou, quando sua armada
naufragou.
Ninguém mais chorou?
Frederico
II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem
venceu além dele?
Cada
página uma vitória.
Quem
cozinhava o banquete?
A
cada dez anos um grande Homem.
Quem
pagava a conta?
Tantas
histórias.
Tantas
questões.
Nenhum comentário:
Postar um comentário