Quem sou eu

O projeto "Longa jornada livro adentro: a análise de textos literários" visa incentivar a leitura e a interpretação de textos de diferentes épocas e estilos. O grupo fará oficinas quinzenais, aos sábados pela manhã, em que se debaterão obras, tendências e outros assuntos do mundo da literatura. Aqui, você confere os tópicos em pauta, os principais itens discutidos nas reuniões e a organização para os encontros futuros. As oficinas se realizarão no auditório da UFFS.

domingo, 1 de julho de 2012

Oitava Oficina: Literatura: Os gritos de uma revolução

A literatura não se resume a histórias de mocinhas ou poemas de amor melancólicos. Há espaço para denúncias sociais e brados por mudanças, sejam de qual natureza forem. As vozes literárias funcionam como uma lente analítica da sociedade e, por esse motivo, a oitava oficina, a se realizar no dia 07/07, às 08 horas, na sala 08 da UFFS, mostrará a força revolucionária que a palavra literária tem. Principiando pelo "não" de um Operário em Construção, de Vinícius de Moraes, vai-se cruzar o Atlântico para mostrar o cronista José Saramago vendo o papel da história na sociedade e da sociedade na história. Em seguida, o poeta português Antero de Quental irá mostrar o valor que existe nas revoluções e a necessidade de combate. Por fim, Graciliano Ramos verá na figura de Fabiano preso um símbolo da incoerência e injustiça social.


Operário em Construção- Vinícius de Moraes

Era ele que erguia casas
Onde antes so' havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as asas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Nao sabia por exemplo
Que a casa de um homem e' um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa quer ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato como podia
Um operário em construção
Compreender porque um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pa', cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com sour e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento

Alem uma igreja, à frente
Um quatel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Nao fosse eventuialmente
Um operário em contrucão.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
`A mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma subita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão
Era ele quem fazia
Ele, um humilde operário
Um operario em construção.
Olhou em torno: a gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Nao sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua propria mao
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que nao havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro dessa compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu tambem o operário
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele nao cresceu em vão
Pois alem do que sabia
- Excercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edificio em construção
Que sempre dizia "sim"
Comecam a dizer "não"
E aprendeu a notar coisas
A que nao dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uisque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pes andarilhjos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução

Como era de se esperar
As bocas da delação
Comecaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão
Mas o patrão nao queria
Nenhuma preocupação.
- "Convencam-no" do contrário
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isto sorria.

Dia seguinte o operário
Ao sair da construção
Viu-se subito cercado
Dos homens da delação
E sofreu por destinado
Sua primeira agressão
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vao sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras seguiram
Muitas outras seguirão
Porem, por imprescindivel
Ao edificio em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Nao dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobra-lo de modo contrário
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher
Portanto, tudo o que ver
Sera' teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse e fitou o operário
Que olhava e refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria
O operário via casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Nao ves o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Nao podes dar-me o que e' meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martirios
Um silêncio de prisão.
Um siêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silencio apavorado
Com o medo em solidão
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arratarem no chão
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão
Uma esperanca sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razao porem que fizera
Em operário construido
O operário em construção

Os gritos de Giordano Bruno - José Saramago 

Afinal, não é muito grande a diferença que há entre um dicionário de biografias e um vulgar cemitério. As três linhas secas e indiferentes com que na maior parte dos casos os dicionaristas resumem uma vida são o equivalente da sepultura rasa que recebe os restos daqueles que (perdoe-se o trocadilho fácil) não deixam restos.A página cheia, com autógrafo e fotografia, é o mausoléu de boa pedra, portas de ferro e coroa de bronze, mais a romagem anual. Mas o visitante fará bem em não se deixar confundir pelos alçados de arquiteto, pelas esculturas e cruzes, pelas carpideiras de mármore, por todo o cenário que a morte pomposa desde sempre aprecia. Igualmente deverá dar atenção, se está em campo aberto, sem referências, ao sítio onde põe os pés, não vá acontecer que debaixo dos seus sapatos se encontre o maior homem do mundo
Não estará, porém, a pisar a sepultura de Giordano Bruno, porque esse foi queimado em Roma, ardeu atrozmente como arde o corpo humano, e dele, que eu saiba, nem as cinzas lhe guardaram. Mas ao mesmo Giordano, para que todas as coisas fiquem nos lugares que lhes competem e justiça enfim se faça, foram reservadas quatro linhas neste dicionário biográfico. Em tão pouco espaço, em tão poucas letras, ali, entre a data do nascimento (1548) e a data da morte (1600), balizas de um universo pessoal que viveu no mundo, pouco se diz: italiano, filósofo, panteísta, dominicano, deixou as ordens, negou-se a renunciar às suas ideias, foi queimado vivo. Nada mais. Nasce e vive um homem, luta e morre, assim, para isto. Quatro linhas, descansa em paz, paz à tua alma se nela acreditavas. E nós fazemos excelente figura entre amigos, em sociedade, na reunião, à mesa do restaurante, na discussão profunda, se deixamos cair adequadamente, de um modo familiar e entendido, a meia dúzia de palavras de que fizemos uma espécie de gazua ou chave falsa com que julgamos poder abrir uma vida e uma consciência.
Mas, para nosso desconforto, se estamos em hora e maré de lucidez, os gritos de Giordano Bruno rompem como uma explosão que nos arranca das mãos o copo de uísque e nos apaga dos lábios o sorriso intelectual que escolhemos para falar destes casos. Sim, é essa a verdade, a incómoda verdade que vem para desmanchar o suave entendimento do diálogo: Giordano Bruno gritou quando foi queimado. O dicionário só diz que ele foi queimado, não diz que gritou. Ora, que dicionário é este que não informa? Para que quero eu uma biografia de Giordano Bruno que não fala dos gritos que ele deu, ali, em Roma, numa praça ou num pátio, com gente à roda, uns que ateavam o lume, outros que assistiam, outros que serenamente escreviam o auto de execução?
Demasiado esquecemos que os homens são de carne facilmente sofredora. Desde a infância que os educadores nos falam de mártires, dão-nos exemplos de civismo e moral à custa deles, mas não dizem quanto foi doloroso o martírio, a tortura. Tudo fica no abstrato, filtrado, como se olhássemos a cena, em Roma, através de grossas paredes de vidro que abafassem os sons, e as imagens perdessem a violência do gesto por obra, graça e virtude da refração. E então podemos dizer, tranquilamente, uns aos outros, que Giordano Bruno foi queimado. Se gritou, não ouvimos. E se não ouvimos, onde está a dor?
Mas gritou, meus amigos. E continua a gritar.


Ir e voltar - José Saramago 

Este meu gosto por museus e pedras velhas, que no parecer de alguns denunciará uma suspeita tendência para evasões, é, pelo contrário, o sinal mais certo de uma viva radicação no mundo em que estou. De facto, não creio que alguém possa, com verdade, dizer-se do seu tempo, se não se sentir envolvido num todo geral que abarque o mundo como ele é e como ele foi. Aquele corpo ressequido, dentro da sua caixa de vidro, no Museu Britânico, que foi um corpo vivo há três mil anos, desencadeia imediatamente em mim um processo mental que me mostra a história dos homens como uma imensa rede de braços, uma iluminação de olhos, um rumor de passos dentro de um formigueiro. E quando numa noite de Paris dei com a Notre-Dame dentro do nevoeiro, sob a luz amortecida dos projectores, e parecendo toda ela uma construção estranhíssima de pedra roxa – não tive mão em mim que evitasse umas tantas reflexões caseiras que logo me afastaram das pacíficas banalidades estéticas.
Aqui em Portugal, se não exagero, temos a pecha de falar de mais da história que vivemos e fizemos, quando afinal não somos os únicos a medir a história pátria em séculos, e se é verdade que fomos descobridores e marinheiros, parecemos esquecidos de que todos os povos virados aos mares e aos oceanos algo acabaram também por navegar e descobrir: os gregos como os fenícios, os escandinavos como os holandeses, os espanhóis como os italianos.
Bem sabemos que de evidências deste gênero é que se alimenta a vaidade dos povos e a xenofobia que quase todos cultivam: por essa via, cada um há-de sentir-se o melhor, o mais ousado, o mais culto, o mais adiantado, uma espécie de parcialíssima divindade que dividisse a história em gomos, como uma laranja, e a distribuísse ao sabor das suas inclinações. Creio que país nenhum se livra deste pecado de soberba, e isso nos desculparia se tal comportamento não se agravasse em nós com um claro divórcio entre o que vamos dizendo e o que somos capazes de sentir. Falamos das glórias passadas, das conquistas, das descobertas, como de fantasmas imateriais a que os compêndios escolares não dão vida, nem as pedras mortas substância. Gostaria bem de saber, por exemplo, se o povo português se sente realmente herdeiro de Bartolomeu Dias e de Gil Vicente, de Afonso Henriques e de Luís de Camões, de D. Dinis e de Fernão Lopes. Seria um teste a fazer entre nós, e muito menos gratuito do que poderá parecer a gente apressada que faz todos os dias a sua revolução cultural.
Claro que não estou a pensar em cultivar-se um tipo de devoção historicista toda voltada para o passado, para os “bons tempos” em que fomos senhores do mundo ou, mais modestamente, do nosso caminho. Tratar-se-ia, antes, de desenredar esse caminho do amontoado do tempo e dos acontecimentos, de modo a encontrarmo-nos, como povo, conscientes, agora sim, de um tempo histórico vivido e assumido, perante a nova sociedade (e quem sabe a nova civilização) que em todo o mundo se forma, entre os sobressaltos e os estertores do que ainda não há muito tempo parecia tão sólido, tão para durar.
Vistos de longe (e vistos de perto depois) damos de algum modo a ideia de vivermos o nosso dia-a-dia como se não tivesse havido ontem e não haja amanhã, numa espécie de sonambulismo fatalista que espera resignidamente a repetição do terramoto de 1755. Ou então, que um braço salvador (talvez D. Sebastião) nos arranque a todos, de um só puxão, do vagaroso afundamento em que nos distraímos. Individualmente. Coletivamente
Este arrazoado melancólico, ninguém o pediu ao cronista, e o mais certo é que lho censurem os que do otimismo fizeram profissão e credo. Mas a pergunta: “Que seremos amanhã?”, é para mim uma obsessão, uma voz murmurante, um grito em certas horas de silêncio.
A resposta (se alguma vez vier a ser dada) é infinitamente plural, mas nela não estará nenhuma contribuição minha: nunca como hoje se pôde brincar menos com coisas sérias, e as exigências da análise que a ela levaria são tais e tão diversificadas, que o simples cronista que eu sou se deverá dar por satisfeito com aflorar ao de leve as interrogações mais próximas. É o seu modo de estar presente, de intervir, de exprimir a sua cidadania, de querer bem ao país onde nasceu, de amar o povo a que pertence.


Sonetos (Antero de Quental)

A um poeta
(surge et ambula)

Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.

Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno
Afugentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera só um aceno...

Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!

Justitia Mater

Nas florestas solemnes ha o culto
Da eterna, intima força primitiva:
Na serra, o grito audaz da alma captiva,
Do coração, em seu combate inulto:

No espaço constelado passa o vulto
Do innominado Alguem, que os soes aviva:
No mar ouve-se a voz grave e afflictiva
D'um deus que lucta, poderoso e inculto.

Mas nas negras cidades, onde sôlta
Se ergue, de sangue medida, a revolta,
Como incendio que um vento bravo atiça,

Ha mais alta missão, mais alta glória:
O combater, á grande luz da historia,
Os combates eternos da Justiça!

Tese e Antítese




I

Já não sei o que vale a nova ideia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspecto, à luz da barricada,
Como bacante após lúbrica ceia!

Sanguinolento o olhar se lhe incendeia…
Respira fumo e fogo embriagada…
A deusa de alma vasta e sossegada
Ei-la presa das fúrias de Medeia!

Um século irritado e truculento
Chama à epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obus…

Mas a ideia é num mundo inalterável,
Num cristalino Céu que vive estável…
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!

II

Num céu intemerato e cristalino
Pode habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O Ser, como espectáculo divino:

Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou vive e agita-se incessante…
Enche o ar da terra o seu pulmão possante…
Cá da terra blasfema ou ergue um hino…

A ideia encarna em peitos que palpitam:
O seu pulsar são chamas que crepitam,
Paixões ardentes como vivos sóis!

Combatei pois na terra árida e bruta,
Té que a revolva o remoinhar da luta,
Té que a fecunde o sangue dos heróis.

A um Crucifixo

Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
E clamaste da cruz: há Deus! e olhaste, ó crente,
O horizonte futuro e viste, em tua mente,
Um alvor ideal banhar esses espaços!

Por que morreu sem eco, o eco de teus passos,
E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?
Morreste... ah! dorme em paz! não volvas, que descrente
Arrojaras de novo à campa os membros lassos...

Agora, como então, na mesma terra erma,
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo céu, frio como um sudário...

E agora, como então, viras o mundo exangue,
E ouviras perguntar — de que serviu o sangue
Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário? —


Graciliano Ramos

Capitulo III - Cadeia FABIANO tinha ido a feira da cidade comprar mantimentos.

Precisava sal, farinha, feijao e rapaduras. Sinha Vitoria pedira alem disso uma garrafa de querosene e um corte de chita vermelha. Mas o querosene de seu Inacio estava misturado com agua, e a chita da amostra era cara demais.

Fabiano percorreu as lojas, escolhendo o pano regateando um tostao em covado, receoso de ser enganado. Andava irresoluto, uma longa desconfianca dava-lhe gestos obliquos. A tarde puxou o dinheiro, meio tentado, e logo se arrependeu, certo de que todos os caixeiros furtavam no preco e na medida: amarrou as notas na ponta do lenco, meteu-as na algibeira, dirigiu-se a bodega de seu Inacio, onde guardara os picuas.

Ai certificou-se novamente de que o querosene estava batizado e decidiu beber uma pinga, pois sentia calor. Seu Inacio trouxe a garrafa de aguardente. Fabiano virou o copo de um trago, cuspiu, limpou os beicos a manga, contraiu o rosto. Ia jurar que a cachaca tinha agua. Por que seria que seu Inacio botava agua em tudo? perguntou mentalmente.

Animou-se e interrogou o bodegueiro: - Por que e que vossemece bota agua em tudo? Seu Inacio fingiu nao ouvir. E Fabiano foi sentar-se na calcada, resolvido a conversar. O vocabulario dele era pequeno, mas em horas de comunicabilidade enriquecia-se com algumas expressoes de seu Tomas da bolandeira. Pobre de seu Tomas. Um homem tao direito sumir-se como cambembe, andar por este mundo de trouxa nas costas. Seu Tomas era pessoa de consideracao e votava. Quem diria? Nesse ponto um soldado amarelo aproximou-se e bateu familiarmente no ombro de Fabiano: - Como e, camarada? Vamos jogar um trinta-e-um la dentro? Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras de seu Tomas da bolandeira: - Isto e. Vamos e nao vamos. Quer dizer Enfim, contanto, etc. E conforme.

Levantou-se e caminhou atras do amarelo, que era autoridade e mandava. Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e substancia, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia.

Atravessaram a bodega, a corredor, desembocaram numa sala onde varios tipos jogavam cartas em cima de uma esteira.

- Desafasta, ordenou o policia. Aqui tem gente.

Os jogadores apertaram-se, os dois homens sentaram-se, o soldado amarelo pegou o baralho. Mas com tanta infelicidade que em pouco tempo se enrascou. Fabiano encalacrou-se tambem.

Sinha Vitoria ia danar-se, e com razao.

- Bem feito.

Ergueu-se furioso, saiu da sala, trombudo. - Espera ai, paisano, gritou o amarelo.

Fabiano, as orelhas ardendo, nao se virou. Foi pedir a seu Inacio os trocos que ele havia guardado, vestiu o gibao, passou as correias dos alforjes no ombro, ganhou a rua.

Debaixo do jatoba do quadro taramelou com Sinha Rita louceira, sem se atrever a voltar para casa. Que desculpa iria apresentar a Sinha Vitoria? Forjava uma explicacao dificil. Perdera o embrulho da fazenda, pagara na botica uma garrafada para Sinha Rita louceira. Atrapalhava-se tinha imaginacao fraca e nao sabia mentir. Nas invencoes com que pretendia justificar-se a figura de Sinha Rita aparecia sempre, e isto o desgostava. Arruinaria uma historia sem ela, diria que haviam furtado o cobre da chita. Pois nao era? Os parceiros o tinham pelado no trinta-e-um. Mas nao devia mencionar o jogo. Contaria simplesmente que o lenco das notas ficara no bolso do gibao e levara sumico. Falaria assim: - "Comprei os mantimentos. Botei o gibao e os alforjes na bodega de seu Inacio. Encontrei um soldado amarelo" Nao, nao encontrara ninguem. Atrapalhava-se de novo. Sentia desejo de referir-se ao soldado, um conhecido velho, amigo de infancia.

A mulher se incharia com a noticia. Talvez nao se inchasse.

Era atilada, notaria a pabulagem. Pois estava acabado. O dinheiro fugira do bolso do gibao, na venda de seu Inacio.

Natural.

Repetia que era natural quando alguem lhe deu um empurrao, atirou-o contra o jatoba. A feira se desmanchava; escurecia; o homem da iluminacao, trepando numa escada, acendia os lampioes. A estrela papa-ceia branqueou por cima da torre da igreja; o doutor juiz de direito foi brilhar na porta da farmacia; o cobrador da prefeitura passou coxeando, com taloes de recibos debaixo do braco; a carroca de lixo rolou na praca recolhendo cascas de frutas; seu vigario saiu de casa e abriu o guarda-chuva por causa do sereno; Sinha Rita louceira retirou-se.

Fabiano estremeceu. Chegaria a fazenda noite fechada.

Entretido com o diabo do jogo, tonto de aguardente, deixara o tempo correr. E nao levava o querosene, ia-se alumiar durante a semana com pedacos de facheiro. Aprumou-se, disposto a viajar. Outro empurrao desequilibrou-o. Voltou-se e viu ali perto o soldado amarelo, que o desafiava, a cara enferrujada, uma ruga na testa. Mexeu-se para sacudir o chapeu de couro nas ventas do agressor. Com uma pancada certa do chapeu de couro, aquele tico de gente ia ao barro. Olhou as coisas e as pessoas em roda e moderou a indignacao. Na catinga ele as vezes cantava de galo, mas na rua encolhia-se.

- Vossemece nao tem direito de provocar os que estao quietos.

- Desafasta, bradou o policia.

E insultou Fabiano, porque ele tinha deixado a bodega sem se despedir.

- Lorota, gaguejou o matuto. Eu tenho culpa de vossemece esbagacar os seus possuidos no jogo? Engasgou-se. A autoridade rondou por ali um instante, desejosa de puxar questao. Nao achando pretexto, avizinhou-se e plantou o salto da reiuna em cima da alpercata do vaqueiro.

- Isso nao se faz, moco, protestou Fabiano. Estou quieto.

Veja que mole e quente e pe de gente.

O outro continuou a pisar com forca. Fabiano impacientou-se e xingou a mae dele. Ai o amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da cidade rodeava o jatoba.

- Toca pra frente, berrou o cabo.

Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusacao medonha e nao se defendeu.

- Esta certo, disse o cabo. Faca lombo, paisano.

Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lamina de facao bateu-lhe no peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanao que o arremessou para as trevas do carcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano ergueuse atordoado, cambaleou, sentou-se num canto, rosnando - Hum! hum! Porque tinham feito aquilo? Era o que nao podia saber.

Pessoa de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso. De repente um fuzue sem motivo. Achava-se tao perturbado que nem acreditava naquela desgraca. Tinham-lhe caido todos em cima, de supetao, como uns condenados. Assim um homem nao podia resistir.

- Bem, bem.

Passou as maos nas costas e no peito, sentiu-se moido, os olhos azulados brilharam como olhos de gato. Tinham-no realmente surrado e prendido. Mas era um caso tao esquisito que instantes depois balancava a cabeca, duvidando, apesar das machucaduras.

Ora, o soldado amarelo ... Sim, havia um amarelo, criatura desgracada que ele, Fabiano, desmancharia com um tabefe. Nao tinha desmanchado por causa dos homens que mandavam. Cuspiu, com desprezo: - Safado, mofino, escarro de gente. Por mor de uma peste daquela, maltratava-se um pai de familia. Pensou na mulher, nos filhos e e figura.

na cachorrinha. Engatinhando, procurou os alforjes, que haviam caido no chao, certificou-se de que os objetos comprados na feira estavam todos ali. Podia ter-se perdido alguma coisa na confusao. Lembrou-se de uma fazenda vista na ultima das lojas que visitara. Bonita, encorpada, larga, vermelha e com ramagens, exatamente o que Sinha Vitoria desejava. Encolhendo um tostao em covado, por sovinice, acabava o dia daquele jeito. Tornou a mexer nos alforjes.

Sinha Vitoria devia estar desassossegada com a demora dele. A casa no escuro, os meninos em redor do fogo, a cachorra Baleia vigiando. Com certeza haviam fechado a porta da frente.

Estirou as pernas, encostou as carnes doidas ao muro. Se lhe tivessem dado tempo, ele teria explicado tudo direitinho.

Mas pegado de surpresa, embatucara. Quem nao ficaria azuretado com semelhante desproposito? Nao queria capacitarse de que a malvadez tivesse sido para ele. Havia engano, provavelmente o amarelo o confundira com outro. Nao era senao isso.

Entao porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, da-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violencias, a todas.

as injusticas. E aos conhecidos que dormiam no tronco e aguentavam cipo de boi oferecia consolacoes: -- "Tenha paciencia. Apanhar do governo nao e desfeita.&8221; Mas agora rangia os dentes, soprava. Merecia castigo? - An! E, por mais que forcejasse, nao se convencia de que o soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa distante e perfeita, nao podia errar. O soldado amarelo estava ali perto, alem da grade,. era fraco e ruim, jogava na esteira com os matutos e provocava-os depois. O governo nao devia consentir tao grande safadeza.

Afinal para que serviam os soldados amarelos? Deu um pontape na parede, gritou enfurecido. Para que serviam os soldados amarelos? Os outros presos remexeram-se, o carcereiro chegou a grade, e Fabiano acalmou-se: - Bem, bem. Nao ha nada nao.

Havia muitas coisas. Ele nao podia explica-las, mas havia.

Fossem perguntar a seu Tomas da bolandeira, que lia livros e sabia onde tinha as ventas. Seu Tomas da bolandeira contaria aquela historia. Ele, Fabiano, um bruto, nao contava nada. So queria voltar para junto de Sinha Vitoria, deitar-se na cama de varas. Porque vinham bulir com um homem que so queria descansar? Deviam bulir com outros.

- An! Estava tudo errado.

- An! Tinham la coragem? Imaginou o soldado amarelo atirando-se a um cangaceiro na catinga. Tinha graca. Nao dava um caldo.

Lembrou-se da casa velha onde morava, da cozinha, da panela que chiava na trempe de pedras. Sinha Vitoria punha sal na comida. Abriu os alforjes novamente: a trouxa de sal nao se tinha perdido. Bem. Sinha Vitoria provava o caldo na quenga de coco. E Fabiano se aperreava por causa dela, dos filhos e da cachorra Baleia, que era como uma pessoa da familia, sabida como gente. Naquela viagem arrastada, em tempo de seca braba, quando estavam todos morrendo de fome, a cadelinha tinha trazido para eles um prea. Ia envelhecendo, coitada.

Sinha Vitoria, inquieta, com certeza fora muitas vezes escutar na porta da frente. O galo batia as asas, os bichos bodejavam no chiqueiro, os chocalhos das vacas tiniam.

Se nao fosse isso ... An! Em que estava pensando? Meteu os olhos pela grade da rua. Chi! que pretume! O lampiao da esquina se apagara, provavelmente o homem da escada so botara nele meio quarteirao de querosene. Pobre de Sinha Vitoria, cheia de cuidados, na escuridao. Os meninos sentados perto do lume, a panela chiando na trempe de pedras, Baleia atenta, o candeeiro de folha pendurado na ponta de uma vara que saia da parede.

Estava tao cansado, tao machucado, que ia quase adormecendo no meio daquela desgraca. Havia ali um bebedo tresvariando em voz alta e alguns homens agachados em redor de um fogo que enchia o carcere de fumaca. Discutiam e queixavam-se da lenha molhada.

Fabiano cochilava, a cabeca pesada inclinava-se para o peito e levantava-se. Devia ter comprado o querosene de seu Inacio. A mulher e os meninos aguentando fumaca nos olhos.

Acordou sobressaltado. Pois nao estava misturando as pessoas, desatinando? Talvez fosse efeito da cachaca. Nao era: tinha bebido um copo, tanto assim, quatro dedos. Se lhe dessem tempo, contaria o que se passara.

Ouviu o falatorio desconexo do bebedo, caiu numa indecisao dolorosa. Ele tambem dizia palavras sem sentido, conversava a toa. Mas irou-se com a comparacao, deu marradas na parede.

Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, nao sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Entao mete-se um homem na cadeia porque ele nao sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele? Vivia trabalhando como um escravo. Desentupia o bebedouro, consertava as cercas, curava os animais - aproveitara um casco de fazenda sem valor. Tudo em ordem, podiam ver. Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha culpa? Se nao fosse aquilo ... Nem sabia. O fio da ideia cresceu, engrossou - e partiu-se. Dificil pensar. Vivia tao agarrado aos bichos. .. Nunca vira uma escola. Por isso nao conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares. O demonio daquela historia entrava-lhe na cabeca e saia. Era para um cristao endoidecer. Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de entende-la. Impossivel, so sabia lidar com bichos.

Enfim, contanto ... Seu Tomas daria informacoes. Fossem perguntar a ele. Homem bom, seu Tomas da bolandeira, homem aprendido. Cada qual como Deus o fez. Ele, Fabiano, era aquilo mesmo, um bruto.

O que desejava ... An! Esquecia-se. Agora se recordava da viagem que tinha feito pelo sertao a cair de fome. As pernas dos meninos eram finas como bilros, Sinha Vitoria tropicava debaixo do bau de trens. Na beira do rio haviam comido o papagaio, que nao sabia falar. Necessidade.

Fabiano tambem nao sabia falar. As vezes largava nomes arrevesados, por embromacao. Via perfeitamente que tudo era besteira. Nao podia arrumar o que tinha no interior. Se pudesse ... Ah! Se pudesse, atacaria os soldados amarelos que espancam as criaturas inofensivas.

Bateu na cabeca, apertou-a. Que faziam aqueles sujeitos acocorados em torno do fogo? Que dizia aquele bebedo que se esgoelava como um doido, gastando folego a toa? Sentiu vontade de gritar, de anunciar muito alto que eles nao prestavam para nada. Ouviu uma voz fina. Alguem no xadrez das mulheres chorava e arrenegava as pulgas. Rapariga da vida, certamente de porta aberta. Essa tambem nao prestava para nada. Fabiano queria berrar para a cidade inteira, afirmar ao doutor juiz de direito, ao delegado, a seu vigario e aos cobradores da prefeitura que ali dentro ninguem prestava para nada. Ele, os homens acocorados, o bebedo, a mulher das pulgas, tudo era uma lastima, so servia para aguentar facao.

Era o que ele queria dizer.

E havia tambem aquele fogo-corredor que ia e vinha no espirito dele. Sim, havia aquilo. Como era? Precisava descansar. Estava com a testa doendo, provavelmente em consequencia de uma pancada de cabo de facao. E doia-lhe. a cabeca toda, parecia-lhe que tinha fogo por dentro, parecialhe que tinha nos miolos uma panela fervendo.

Pobre de Sinha Vitoria, inquieta e sossegando os meninos.

Baleia vigiando, perto da trempe. Se nao fossem eles ...

Agora Fabiano conseguia arranjar as ideias. O que o segurava era a familia. Vivia preso como um novilho amarrado ao mourao, suportando ferro quente. Se nao fosse isso, um soldado amarelo nao lhe pisava o pe nao. O que lhe amolecia o corpo era a lembranca da mulher e dos filhos. Sem aqueles camboes pesados, nao envergaria o espinhaco nao, sairia dali como onca e faria uma asneira. Carregaria a espingarda e daria um tiro de pe de pau no soldado amarelo. Nao. O soldado amarelo era um infeliz que nem merecia um tabefe com as costas da mao. Mataria os donos dele. Entraria num bando de cangaceiros e faria estrago nos homens que dirigiam o soldado amarelo. Nao ficaria um para semente. Era a ideia que lhe fervia na cabeca. Mas havia a mulher, havia os meninos, havia a cachorrinha.

Fabiano gritou, assustando o bebedo, os tipos que abanavam o fogo, o carcereiro e a mulher que se queixava das pulgas.

Tinha aqueles camboes pendurados ao pescoco. Deveria continuar a arrasta-los? Sinha Vitoria dormia mal na cama de varas. Os meninos eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem, guardariam as reses de um patrao invisivel, seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo.

Fonte: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/graciliano-ramos/vidas-secas.php#ixzz1zVab5BKW



Perguntas de um trabalhador que lê (Bertold Brecht)

Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída
Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
Da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que
a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo
Quem os ergueu? Sobre quem
triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio
tinha somente palácios para os seus habitantes? Mesmo
na lendária Atlântida
os que se afogavam gritaram por seus escravos
na noite em que o mar a tragou.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando sua armada
naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?

Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande Homem.
Quem pagava a conta?

Tantas histórias.
Tantas questões.

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