Quem sou eu

O projeto "Longa jornada livro adentro: a análise de textos literários" visa incentivar a leitura e a interpretação de textos de diferentes épocas e estilos. O grupo fará oficinas quinzenais, aos sábados pela manhã, em que se debaterão obras, tendências e outros assuntos do mundo da literatura. Aqui, você confere os tópicos em pauta, os principais itens discutidos nas reuniões e a organização para os encontros futuros. As oficinas se realizarão no auditório da UFFS.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

3ª oficina: “Mãe...São três letras apenas / As desse nome bendito; / Também o céu tem três letras/ E nelas cabe o infinito."

Há, na figura da Mãe, a personificação de uma entrega. A conexão realizada com seu filho se transmite por um misto de sensações, construindo-se pela intensidade. Em sua homenagem, a terceira oficina, a se realizar no dia 11/05, às 8 horas, no auditório da UFFS, versará sobre contos e poemas tendo como eixo as múltiplas faces maternas. Primeiramente, com uma crônica de Rubem Braga, pode-se ver a angústia crescente de uma mãe na praia. Além desse, vai-se empreender uma volta a um passado medieval, imaginado por Eça de Queirós, sobre a aia de uma rainha e de seu príncipe. Intermediando ambos os contos, conjuntos de poemas de diversos autores auxiliará a compor essa entidade continuamente evocada.







                                                                Mãe

(Crônica dedicada ao Dia das Mães, embora com o final inadequado, ainda que autêntico.)

                                                                                                                   Rubem Braga

O menino e seu amiguinho brincavam nas primeiras espumas; o pai fumava um cigarro na praia, batendo papo com um amigo. E o mundo era inocente, na manhã de sol. Foi então que chegou a Mãe (esta crônica é modesta contribuição ao Dia das Mães), muito elegante em seu short, e mais ainda em seu maiô. Trouxe óculos escuros, uma esteirinha para se esticar, óleo para a pele, revista para ler, pente para se pentear — e trouxe seu coração de Mãe que imediatamente se pôs aflito achando que o menino estava muito longe e o mar estava muito forte. Depois de fingir três vezes não ouvir seu nome gritado pelo pai, o garoto saiu do mar resmungando, mas logo voltou a se interessar pela alegria da vida, batendo bola com o amigo. Então a Mãe começou a folhear a revista mundana
— "que vestido horroroso o da Marieta neste coquetel"
 — "que presente de casamento vamos dar à Lúcia? tem de ser uma coisa boa"
— e outros pequenos assuntos sociais foram aflorados numa conversa preguiçosa. Mas de repente:
 — Cadê Joãozinho? O outro menino, interpelado, informou que Joãozinho tinha ido em casa apanhar uma bola maior.
 — Meu Deus, esse menino atravessando a rua sozinho! Vai lá, João, para atravessar com ele, pelo menos na volta! O pai (fica em minúscula; o Dia é da Mãe) achou que não era preciso:
— O menino tem OITO anos, Maria!
— OITO anos, não, oito anos, uma criança. Se todo dia morre gente grande atropelada, que dirá um menino distraído como esse! E erguendo-se olhava os carros que passavam, todos guiados por assassinos (em potencial) de seu filhinho.
 — Bem, eu vou lá só para você não ficar assustada. Talvez a sombra do medo tivesse ganho também o coração do pai; mas quando ele se levantou e calçou a alpercata para atravessar os vinte metros de areia fofa e escaldante que o separavam da calçada, o garoto apareceu correndo alegremente com uma bola vermelha na mão, e a paz voltou a reinar sobre a face da praia. Agora o amigo do casal estava contando pequenos escândalos de uma festa a que fora na véspera, e o casal ouvia, muito interessado
— "mas a Niquinha com o coronel? não é possível!" — quando a Mãe se ergueu de repente:
— E o Joãozinho? Os três olharam em todas as direções, sem resultado. O marido, muito calmo
 — "deve estar por aí", a Mãe gradativamente nervosa
 — "mas por aí, onde?" — o amigo otimista, mas levemente apreensivo. Havia cinco ou seis meninos dentro da

água, nenhum era o Joãozinho. Na areia havia outros. Um deles, de costas, cavava um buraco com as mãos, longe. — Joãozinho! O pai levantou-se, foi lá, não era. Mas conseguiu encontrar o amigo do filho e perguntou por ele.
 — Não sei, eu estava catando conchas, ele estava catando comigo, depois ele sumiu. A Mãe, que viera correndo, interpelou novamente o amigo do filho. "Mas sumiu como? para onde? entrou na água? não sabe? mas que menino pateta!" O garoto, com cara de bobo, e assustado com o interrogatório, se afastava, mas a Mãe foi segurá-lo pelo braço: "Mas diga, menino, ele entrou no mar? como é que você não viu, você não estava com ele? hein? ele entrou no mar?".
 — Acho que entrou... ou então foi-se embora. De pé, lábios trêmulos, a Mãe olhava para um lado e outro, apertando bem os olhos míopes para examinar todas as crianças em volta. Todos os meninos de oito anos se parecem na praia, com seus corpinhos queimados e suas cabecinhas castanhas. E como ela queria que cada um fosse seu filho, durante um segundo cada um daqueles meninos era o seu filho, exatamente ele, enfim — mas um gesto, um pequeno movimento de cabeça, e deixava de ser. Correu para um lado e outro. De súbito ficou parada olhando o mar, olhando com tanto ódio e medo (lembrava-se muito bem da história acontecida dois a três anos antes, um menino estava na praia com os pais, eles se distraíram um instante, o menino estava brincando no rasinho, o mar o levou, o corpinho só apareceu cinco dias depois, aqui nesta pr aia mesmo!) — deu um grito para as ondas e espumas
 — "Joãozinho!". Banhistas distraídos foram interrogados — se viram algum menino entrando no mar
 — o pai e o amigo partiram para um lado e outro da praia, a Mãe ficou ali, trêmula, nada mais existia para ela, sua casa e família, o marido, os bailes, os Nunes, tudo era ridículo e odioso, toda essa gente estúpida na praia que não sabia de seu filho, todos eram culpados
 — "Joãozinho !" — ela mesma não tinha mais nome nem era mulher, era um bicho ferido, trêmulo, mas terrível, traído no mais essencial de seu ser, cheia de pânico e de ódio, capaz de tudo
— "Joãozinho !" — ele apareceu bem perto, trazendo na mão um sorvete que fora comprar. Quase jogou longe o sorvete do menino com um tapa, mandou que ele ficasse sentado ali, se saísse um passo iria ver, ia apanhar muito, menino desgraçado! O pai e o amigo voltaram a sentar, o menino riscava a areia com o dedo grande do pé, e quando sentiu que a tempestade estava passando fez o comentário em voz baixa, a cabeça curva, mas os olhos erguidos na direção dos pais:
 — Mãe é chaaata...





                                                 Para sempre

Por que Deus permite

que as mães vão-se embora?

Mãe não tem limite,

é tempo sem hora,

luz que não apaga

quando sopra o vento

e chuva desaba,

veludo escondido

na pele enrugada,

água pura, ar puro,

puro pensamento.

Morrer acontece

com o que é breve e passa

sem deixar vestígio.

Mãe, na sua graça,

é eternidade.

Por que Deus se lembra

— mistério profundo —

de tirá-la um dia?

Fosse eu Rei do Mundo,

baixava uma lei:

Mãe não morre nunca,

mãe ficará sempre

junto de seu filho

e ele, velho embora,

será pequenino

feito grão de milho.

                                              Carlos Drummond de Andrade, in 'Lição de Coisas'


                                               Mãe...

Mãe — que adormente este viver dorido,

E me vele esta noite de tal frio,

E com as mãos piedosas ate o fio

Do meu pobre existir, meio partido...

Que me leve consigo, adormecido,

Ao passar pelo sítio mais sombrio...

Me banhe e lave a alma lá no rio

Da clara luz do seu olhar querido...

Eu dava o meu orgulho de homem — dava

Minha estéril ciência, sem receio,

E em débil criancinha me tornava.

Descuidada, feliz, dócil também,

Se eu podesse dormir sobre o teu seio,

Se tu fosses, querida, a minha mãe!

                                                                                        Antero de Quental, in "Sonetos"


Mater

Tu, grande Mãe!... do amor de teus filhos escrava,

Para teus filhos és, no caminho da vida,

Como a faixa de luz que o povo hebreu guiava

À longe Terra Prometida.

Jorra de teu olhar um rio luminoso.

Pois, para batizar essas almas em flor,

Deixas cascatear desse olhar carinhoso

Todo o Jordão do teu amor.

E espalham tanto brilho as asas infinitas

Que expandes sobre os teus, carinhosas e belas,

Que o seu grande dano sobe, quando as agitas,

E vai perder-se entre as estrelas.

E eles, pelos degraus da luz ampla e sagrada,

Fogem da humana dor, fogem do humano pé,

E, à procura de Deus, vão subindo essa escada,

Que é como a escada de Jacó.

                                                                                Olavo Bilac



                                           A AIA

Era uma vez um rei, moço e valente, senhor de um reino
abundante em cidades e searas, que partira a batalhar por terras
distantes, deixando solitária e triste a sua rainha e um filhinho,
que ainda vivia no seu berço, dentro das suas faixas.
A lua cheia que o vira marchar, levado no seu sonho de conquista
e de fama, começava a minguar, quando um dos seus cavaleiros
apareceu, com as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos
caminhos, trazendo a amarga nova de uma batalha perdida e da
morte do rei, trespassado por sete lanças entre a flor da sua
nobreza, à beira de um grande rio.
A rainha chorou magnificamente o rei. Chorou ainda
desoladamente o esposo, que era formoso e alegre. Mas,
sobretudo, chorou ansiosamente o pai, que assim deixava o
filhinho desamparado, no meio de tantos inimigos da sua frágil
vida e do reino que seria seu, sem um braço que o defendesse,
forte pela força e forte pelo amor.
Desses inimigos o mais temeroso era seu tio, irmão bastardo do
rei, homem depravado e bravio; consumido de cobiças
grosseiras, desejando só a realeza por causa dos seus tesouros, e
que havia anos vivia num castelo sobre os montes, com uma
horda de rebeldes, à maneira de um lobo que, de atalaia no seu
fojo, espera a presa. Ai! a presa agora era aquela criancinha, rei
de mama, senhor de tantas províncias, e que dormia no seu
berço com seu guizo de oiro fechado na mão!
Ao lado dele, outro menino dormia noutro berço. Mas era um
escravozinho, filho da bela e robusta escrava que amamentava o
príncipe. Ambos tinham nascido na mesma noite de Verão. O
mesmo seio os criara. Quando a rainha, antes de adormecer,
vinha beijar o principezinho, que tinha o cabelo louro e fino,
beijava também, por amor dele, o escravozinho, que tinha o
cabelo negro e crespo. Os olhos de ambos reluziam como pedras
preciosas. Somente, o berço de um era magnífico de marfim
entre brocados, e o berço de outro, pobre e de verga. A leal
escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, porque, se um
era o seu filho, o outro seria o seu rei.
Nascida naquela casa real, ela tinha a paixão, a religião dos seus
senhores. Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o
seu pelo rei morto à beira do grande rio. Pertencia, porém, a uma
raça que acredita que a vida da terra se continua no céu. O rei
seu amo, decerto, já estaria agora reinando em outro reino, para
além das nuvens, abundante também em searas e cidades. O seu
cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido
com ele às alturas. Os seus vassalos, que fossem morrendo,
prontamente iriam, nesse reino celeste, retomar em torno dele a
sua vassalagem. E ela, um dia, por seu turno, remontaria num
raio de lua a habitar o palácio do seu senhor, e a fiar de novo o
linho das suas túnicas, e a acender de novo a caçoleta dos seus
perfumes; seria no céu como fora na terra, e feliz na sua
servidão.
Todavia, também ela tremia pelo seu principezinho! Quantas
vezes, com ele pendurado do peito, pensava na sua fragilidade,
na sua longa infância, nos anos lentos que correriam, antes que
ele fosse ao menos do tamanho de uma espada, e naquele tio
cruel, de face mais escura que a noite e coração mais escuro que
a face, faminto do trono, e espreitando de cima do seu rochedo
entre os alfanges da sua borda! Pobre principezinho da sua alma!
Com uma ternura maior o apertava nos braços. Mas o seu filho
chalrava ao lado, era para ele que os seus braços corriam com
um ardor mais feliz. Esse, na sua indigência, nada tinha a recear
a vida. Desgraças, assaltos da sorte má nunca o poderiam deixar
mais despido das glórias e bens do mundo do que já estava ali no
seu berço, sob o pedaço de linho branco que resguardava a sua
nudez. A existência, na verdade, era para ele mais preciosa e
digna de ser conservada que a do seu príncipe, porque nenhum
dos duros cuidados com que ela enegrece a alma dos senhores
roçaria sequer a sua alma livre e simples de escravo. E, como se
o amasse mais por aquela humildade ditosa, cobria o seu
corpinho gordo de beijos pesados e devoradores, dos beijos que
ela fazia ligeiros sobre as mãos do seu príncipe.
No entanto, um grande temor enchia o palácio, onde agora
reinava uma mulher entre mulheres. O bastardo, o homem de
rapina, que errava no cimo das serras, descera à planície com a
sua horda, e já através de casais e aldeias felizes ia deixando um
sulco de matança e ruínas. As portas da cidade tinham sido
seguras com cadeias mais fortes. Nas atalaias ardiam lumes mais
altos. Mas à defesa faltava disciplina viril. Uma roca não governa
como uma espada. Toda a nobreza fiel perecera na grande
batalha. E a rainha desventurosa apenas sabia correr a cada
instante ao berço do seu filhinho e chorar sobre ele a sua
fraqueza de viúva. Só a ama leal parecia segura, como se os
braços em que estreitava o seu príncipe fossem muralhas de uma
cidadela que nenhuma audácia pode transpor.
Ora uma noite, noite de silêncio e de escuridão, indo ela a
adormecer, já despida, no seu catre, entre os seus dois meninos,
adivinhou, mais que sentiu, um curto rumor de ferro e de briga,
longe, à entrada dos vergéis reais. Embrulhada à pressa num
pano, atirando os cabelos para trás, escutou ansiosamente. Na
terra areada, entre os jasmineiros, corriam passos pesados e
rudes. Depois houve um gemido, um corpo tombando
molemente,sobre lajes,como um fardo. Descerrou
violentamente a cortina. E além, ao fundo da galeria, avistou
homens, um clarão de lanternas, brilhos de armas... Num relance
tudo compreendeu: o palácio surpreendido, o bastardo cruel
vindo roubar, matar o seu príncipe! Então, rapidamente, sem
uma vacilação, uma dúvida, arrebatou o príncipe do seu berço de
marfim, atirou-o para o pobre berço de verga, e, tirando o seu
filho do berço servil, entre beijos desesperados, deitou-o no berço
real que cobriu com um brocado.

Bruscamente um homem enorme, de face flamejante, com um
manto negro sobre a cota de malha, surgiu à porta da câmara,
entre outros, que erguiam lanternas. Olhou, correu o berço de
marfim onde os brocados luziam, arrancou a criança como se
arranca uma bolsa de oiro, e, abafando os seus gritos no manto,
abalou furiosamente.

O príncipe dormia no seu novo berço. A ama ficara imóvel no
silêncio e na treva.


Mas brados de alarme atroaram, de repente, o palácio. Pelas
janelas perpassou o longo flamejar das tochas. Os pátios
ressoavam com o bater das armas. E desgrenhada, quase nua, a
rainha invadiu a câmara, entre as aias, gritando pelo seu filho! Ao
avistar o berço de marfim, com as roupas desmanchadas, vazio,
caiu sobre as lajes num choro, despedaçada. Então, calada, muito
lenta, muito pálida, a ama descobriu o pobre berço de verga... O
príncipe lá estava quieto, adormecido, num sonho que o fazia
sorrir, lhe iluminava toda a face entre os seus cabelos de oiro. A
mãe caiu sobre o berço, com um suspiro, como cai um corpo
morto.

E nesse instante um novo clamor abalou a galeria de mármore.
Era o capitão das guardas, a sua gente fiel. Nos seus clamores
havia, porém, mais tristeza que triunfo. O bastardo morrera!
Colhido, ao fugir, entre o palácio e a cidadela, esmagado pela
forte legião de arqueiros, sucumbira, ele e vinte da sua horda. O
seu corpo lá ficara, com flechas no flanco, numa poça de sangue.
Mas, ail dor sem nome! O corpozinho tenro do príncipe lá ficara
também envolto num manto, já frio, roxo ainda das mãos ferozes
que o tinham esganado! Assim tumultuosamente lançavam a
nova cruel os homens de armas, quando a rainha, deslumbrada,
com lágrimas entre risos, ergueu nos braços, para lho mostrar, o
príncipe que despertara.

Foi um espanto, uma aclamação. Quem o salvara? Quem?... Lá
estava junto do berço de marfim vazio, muda e hirta, aquela que
o salvara! Serva sublimemente leal! Fora ela que, para conservar
a vida ao seu príncipe, mandara à morte o seu filho... Então, só
então, a mãe ditosa, emergindo da sua alegria extática, abraçou
apaixonadamente a mãe dolorosa, e a beijou, e lhe chamou irmã
do seu coração... E de entre aquela multidão que se apertava na
galeria veio uma nova, ardente aclamação, com súplicas de que
fosse recompensada magnificamente a serva admirável que
salvara o rei e o reino.

Mas como? Que bolas de oiro podem pagar um filho? Então um
velho de casta nobre lembrou que ela fosse levada ao Tesouro
real, e escolhesse de entre essas riquezas, que eram como as
maiores dos maiores tesouros da Índia, todas as que o seu desejo
apetecesse...
A rainha tomou a mão da serva. E sem que a sua face de
mármore perdesse a rigidez, com um andar de morta, como um
sonho, ela foi assim conduzida para a Câmara dos Tesouros.
Senhores, aias, homens de armas, seguiam, num respeito tão
comovido, que apenas se ouvia o roçar das sandálias nas lajes.
As espessas portas do Tesouro rodaram lentamente. E, Quando
um servo destrancou as janelas, a luz da madrugada, já clara e
rósea, entrando pelos gradeamentos de ferro, acendeu um
maravilhoso e faiscante incêndio de oiro e pedrarias! Do chão de
rocha até às sombrias abóbadas, por toda a câmara, reluziam,
cintilavam, refulgiam os escudos de oiro, as armas marchetadas,
os montões de diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de
pérolas, todas as riquezas daquele reino, acumuladas por cem
réis durante vinte séculos. Um longo – ah! – lento e maravilhado,
passou por sobre a turba que emudecera. Depois houve um
silêncio ansioso. E no meio da câmara, envolta na refulgência
preciosa. a ama não se movia... Apenas os seus olhos, brilhantes
e secos, se tinham erguido para aquele céu que, além das
grades, se tingia de rosa e de oiro. Era lá, nesse céu fresco de
madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o Sol
se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto, e
procurava o seu peito!... E então a ama sorriu e estendeu a mão.
Todos seguiam, sem respirar aquele lento mover da sua mão
aberta. Que jóia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado
de rubis ia ela escolher?

A ama estendia a mão, e sobre um escabelo ao lado, entre um
molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho
rei, todo cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.

Agarrara o punhal, e com ele apertado fortemente na mão,
apontando par; o céu, onde subiam os primeiros raios do Sol,
encarou a rainha, a multidão, e gritou:

– Salvei o meu príncipe, e agora... vou dar de mamar ao meu
filho

E cravou o punhal no coração.

                                                        Eça de Queirós






                       Palavras para a Minha Mãe
 mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.

pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.

às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.

lê isto: mãe, amo-te.

eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes.

José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"



                         Vem Ver a Minha Mãe 
Está junto das coisas que bordaram
com ela os dias que supôs mais belos
e são a fonte de onde lhe começa
o branco tempo dos cabelos.

Mal pousa a vida nos seus dedos gastos
do sonho que pousou na minha mão
e no sangue tão frágil que sustenta
tanta ternura e tanta solidão.

Vítor Matos e Sá, in 'O Silêncio e o Tempo'



                      É Noite, Mãe 
As folhas já começam a cobrir
o bosque, mãe, do teu outono puro...
São tantas as palavras deste amor
que presas os meus lábios retiveram
pra colocar na tua face, mãe!...

Continuamente o bosque se define
em lividez de pântanos agora,
e aviva sempre mais as desprendidas
folhas que tornam minha dor maior.
No chão do sangue que me deste, humilde
e triste, as beijo. Um dia pra contigo
terei sido cruel: a minha boca,
em cada latejar do vento pelos ramos,
procura, seca, o teu perdão imenso...

É noite, mãe: aguardo, olhos fechados,
que uma qualquer manhã me ressuscite!...

António Salvado, in "Difícil Passagem"