Quem sou eu

O projeto "Longa jornada livro adentro: a análise de textos literários" visa incentivar a leitura e a interpretação de textos de diferentes épocas e estilos. O grupo fará oficinas quinzenais, aos sábados pela manhã, em que se debaterão obras, tendências e outros assuntos do mundo da literatura. Aqui, você confere os tópicos em pauta, os principais itens discutidos nas reuniões e a organização para os encontros futuros. As oficinas se realizarão no auditório da UFFS.

domingo, 30 de junho de 2013

5ª Oficina: Rubem Braga e Vinícius de Moraes: 100 anos de lirismo e leituras

Em 2013, celebra-se o centenário de dois grandes escritores do século XX: Rubem Braga e Vinícius de Moraes. Com isso em mente, a quinta oficina, a se realizar no dia 06/07, às 08 horas no Auditório da UFFS, irá tratar de poemas e crônicas desses dois autores. Inicialmente, com Rubem Braga, vai-se peregrinar tanto por elementos concretos quanto abstratos. No primeiro caso, vê-se o jogo e o embate entre um Conde e um passarinho; No segundo, considerações sobre o amor e sobre o ato de escrever são tecidas para construir um indivíduo. Com relação a Vinícius, duas faces do poetinha serão analisadas: sua produção poética de sonetos; e sua veia musical, seja crítica ou lírica.




O Conde e o Passarinho
                                        Rubem Braga

Acontece que o Conde Matarazzo estava passeando pelo parque. O Conde Matarazzo é um Conde muito velho, que tem muitas fábricas. Tem também muitas honras. Uma delas consiste em uma preciosa medalhinha de ouro que o Conde exibia à lapela, amarrada a uma fitinha. Era uma condecoração (sem trocadilho).
Ora, aconteceu também um passarinho. No parque havia um passarinho. E esses dois personagens – o Conde e o passarinho – foram os únicos da singular história narrada pelo Diário de São Paulo.
Devo confessar preliminarmente que, entre um Conde e um passarinho, prefiro um passarinho. Torço pelo passarinho. Não é por nada. Nem sei mesmo explicar essa preferência. Afinal de contas, um passarinho canta e voa. O Conde não sabe gorjear nem voar. O Conde gorjeia com apitos de usinas, barulheiras enormes, de fábricas espalhadas pelo Brasil, vozes dos operários, dos teares, das máquinas de aço e de carne que trabalham para o Conde. O Conde gorjeia com o dinheiro que entra e sai de seus cofres, o Conde é um industrial, e o Conde é Conde porque é industrial. O passarinho não é industrial, não é Conde, não tem fábricas. Tem um ninho, sabe cantar, sabe voar, é apenas um passarinho e isso é gentil, ser um passarinho.
Eu quisera ser um passarinho. Não, um passarinho, não. Uma ave maior, mais triste. Eu quisera ser um urubu.
Entretanto, eu não quisera ser Conde. A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser Conde. Não amo os Condes. Também não amo os industriais. Que eu amo? Pierina e pouco mais. Pierina e a vida, duas coisas que se confundem hoje, e amanhã mais se confundirão na morte.
Entendo por vida o fato de um homem viver fumando nos três primeiros bancos e falando ao motorneiro. Ainda ontem ou anteontem assim escrevi. O essencial é falar ao motorneiro. O povo deve falar ao motorneiro. Se o motorneiro se fizer de surdo, o povo deve puxar a aba do paletó do motorneiro. Em geral, nessas circunstâncias, o motorneiro dá um coice. Então o povo deve agarrar o motorneiro, apoderar-se da manivela, colocar o bonde a nove pontos, cortar o motorneiro em pedacinhos e comê-lo com farofa.
Quando eu era calouro de Direito, aconteceu que uma turma de calouros assaltou um bonde. Foi um assalto imortal. Marcamos no relógio quanto nos deu na cabeça, e declaramos que a passagem era grátis. O motorneiro e o condutor perderam, rápida e violentamente, o exercício de suas funções. Perderam também os bonés. Os bonés eram os símbolos do poder.
Desde aquele momento perdi o respeito por todos os motorneiros e condutores. Aquilo foi apenas uma boa molecagem. Paciência. A vida também é uma imensa molecagem. Molecagem podre. Quando poderás ser um urubu, meu velho Rubem?
Mas voltemos ao Conde e ao passarinho. Ora, o Conde estava passeando e veio o passarinho. O Conde desejou ser que nem o seu patrício, o outro Francisco, o Francisco da Umbria, para conversar com o passarinho. Mas não era aquele, o São Francisco de Assis, era apenas o Conde Francisco Matarazzo. Porém, ficou encantado ao reparar que o passarinho voava para ele. O Conde ergueu as mãos, feito uma criança, feito um santo. Mas não eram mãos de criança nem de santo, eram mãos de Conde industrial. O passarinho desviou e se dirigiu firme para o peito do Conde. Ia bicar seu coração? Não, ele não era um bicho grande de bico forte, não era, por exemplo, um urubu, era apenas um passarinho. Bicou a fitinha, puxou, saiu voando com a fitinha e com a medalha.
O Conde ficou muito aborrecido, achou muita graça. Ora essa! Que passarinho mais esquisito!
Isso foi o que o Diário de São Paulo contou. O passarinho, a esta hora assim, está voando, com a medalhinha no bico. Em que peito a colocareis, irmão passarinho? Voai, voai, voai por entre as chaminés do Conde, varando as fábricas do Conde, sobre as máquinas de carne que trabalham para o Conde, voai, voai, voai, voai, passarinho, voai.
O Conde e O Passarinho. Rio de Janeiro: Record, 1982.





Sobre o Amor, etc.
(Rubem Braga)
Dizem que o mundo está cada dia menor.
É tão perto do Rio a Paris! Assim é na verdade, mas acontece que raramente vamos sequer a Niterói. E alguma coisa, talvez a idade, alonga nossas distâncias sentimentais.
Na verdade há amigos espalhados pelo mundo. Antigamente era fácil pensar que a vida era algo de muito móvel, e oferecia uma perspectiva infinita e nos sentíamos contentes achando que um belo dia estaríamos todos reunidos em volta de uma farta mesa e nos abraçaríamos e muitos se poriam a cantar e a beber e então tudo seria bom. Agora começamos a aprender o que há de irremissível nas separações. Agora sabemos que jamais voltaremos a estar juntos; pois quando estivermos juntos perceberemos que já somos outros e estamos separados pelo tempo perdido na distância. Cada um de nós terá incorporado a si mesmo o tempo da ausência. Poderemos falar, falar, para nos correspondermos por cima dessa muralha dupla; mas não estaremos juntos; seremos duas outras pessoas, talvez por este motivo, melancólicas; talvez nem isso.
Chamem de louco e tolo ao apaixonado que sente ciúmes quando ouve a sua amada dizer que na véspera de tarde o céu estava uma coisa lindíssima, com mil pequenas nuvens de leve púrpura sobre um azul de sonho. Se ela diz “nunca vi um céu tão bonito assim”, estará dando, certamente, sua impressão de momento; há centenas de céus extraordinários e esquecemos da maneira mais torpe os mais fantásticos crepúsculos que nos emocionaram. Ele porém, na véspera, estava dentro de uma sala qualquer e não viu céu nenhum. Se acaso tivesse chegado à janela e visto, agora seria feliz em saber que em outro ponto da cidade ela também vira. Mas isso não aconteceu, e ele tem ciúmes. Cita outros crepúsculos e mal esconde sua mágoa daquele. Sente que sua amada foi infiel; ela incorporou a si mesma alguma coisa nova que ele não viveu. Será um louco apenas na medida em que o amor é loucura.
Mas terá toda razão, essa feroz razão furiosamente lógica do amor. Nossa amada deve estar conosco solidária perante a nuvem. Por isso, indagamos com tão minucioso fervor sobre a semana de ausência. Sabemos que aqueles 7 dias de distância são 7 inimigos: queremos analisá-los até o fundo, para destruí-los.
Não nego razão aos que dizem que cada um deve respirar um pouco, e fazer sua pequena fuga, ainda que seja apenas ler um romance diferente ou ver um filme que o outro amado não verá. Têm razão; mas não têm paixão. São espertos porque assim procuram adaptar o amor à vida de cada um, e fazê-lo sadio, confortável e melhor, mais prazenteiro e liberal. Para resumir: querem (muito avisadamente, é certo) suprimir o amor.
Isso é bom. Também suprimimos a amizade. É horrível levar as coisas a fundo: a vida é de sua própria natureza leviana e tonta. O amigo que procura manter suas amizades distantes e manda longas cartas sentimentais tem sempre um ar de náufrago fazendo um apelo. Naufragamos a todo instante no mar bobo do tempo e do espaço, entre as ondas de coisas e sentimentos de todo dia. Sentimos perfeitamente isso quando a saudade da amada nos corrói, pois então sentimos que nosso gesto mais simples encerra uma traição. A bela criança que vemos correr ao sol não nos dar um prazer puro; a criança devia correr ao sol, mas Joana devia estar aqui para vê-la, ao nosso lado.
Bem; mais tarde contaremos a Joana que fazia sol e vimos uma criança tão engraçada e linda que corria entre os canteiros querendo pegar uma borboleta com a mão. Mas não estaremos incorporando a criança à vida de Joana; estaremos apenas lhe entregando morto o corpinho do traidor, para que Joana nos perdoe.
Assim somos na paixão do amor, absurdos e tristes. Por isso nos sentimos tão felizes e livres quando deixamos de amar. Que maravilha, que liberdade sadia em poder viver a vida por nossa conta! Só quem amou muito pode sentir essa doce felicidade gratuita que faz de cada sensação nova um prazer pessoal e virgem do qual não devemos dar contas a ninguém que more no fundo de nosso peito. Sentimo-nos fortes, sólidos e tranquilos. Até que começamos a desconfiar de que estamos sozinhos e ao abandono trancados do lado de fora da vida.
Assim o amigo que volta de longe vem rico de muita coisa e sua conversa é prodigiosa de riqueza; nós também despejamos nosso saco de emoções e novidades; mas para um sentir a mão do outro precisam se agarrar ambos a qualquer velha besteira: você se lembra daquela tarde em que tomamos cachaça num café que tinha naquela rua e estava lá uma louca que dizia, etc, etc. Então já não se trata mais de amizade, porém de necrológio.
Sentimos perfeitamente que estamos falando de dois outros sujeitos, que por sinal já faleceram – e eram nós. No amor isso é mais pungente. De onde concluireis comigo que o melhor é não amar, porém aqui, para dar fim a tanta amarga tolice, aqui e ora vos direi a frase antiga: que é melhor não viver. No que não convém pensar muito, pois a vida é curta e, enquanto pensamos, elas se vai, e finda.
Maio, 1948.






Meu Ideal Seria Escrever...
Rubem Braga
Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse -- "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é mesmo muito engraçada!".

Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse -- e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse -- "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.

E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago -- mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".

E quando todos me perguntassem -- "mas de onde é que você tirou essa história?" -- eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história...".

E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.





Soneto de Fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
                                                   Vinicius de Moraes, in 'O Operário em Construção'


Soneto de Separação

DE REPENTE do riso fêz-se o pranto
silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fêz-se espuma
E das mãos espalmadas fêz-se o espanto.

De repente da calma fêz-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fêz-se o pressentimento
E do momento imóvel fêz-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fêz-se de triste o que se fêz amante
E de sozinho o que se fêz contente.

Fêz-se do amigo próximo o distante
Fêz-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
                                        Vinicius de Moraes, in 'O Operário em Construção'

Soneto de Devoção
 Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica aos meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.

Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos receios
A única entre todas a quem dei
Os carinhos que nunca a outra daria.

Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela.

Essa mulher é um mundo! — uma cadela
Talvez... — mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!
                                                  Vinicius de Moraes, in 'Antologia Poética'




A rosa de Hiroxima
                             Vinicius de Moraes
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada

Eu sei que vou te amar
                                             Vinicius de Moraes ,Antonio Carlos Jobim
Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida, eu vou te amar
Em cada despedida, eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que vou te amar

E cada verso meu será
Pra te dizer
Que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida

Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua, eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que esta tua ausência me causou

Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
À espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida












segunda-feira, 3 de junho de 2013

4ª Oficina: Os Ramos da Rosa, a Rosa em Ramos. GRandes seres: tão veredas.

A literatura brasileira produziu nomes que merecem figurar no Olimpo dos escritores mundiais. Durante o século XX, com todas as transformações ideológicas e narrativas efetuadas, dois autores destacam-se por sua inventividade e trabalho linguístico: Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Por isso, na 4ª oficina, a se realizar no dia 08/06, às 08 horas no auditório da UFFS, vai-se homenagear esses escritores dos sertões, mas que se estendem ao mundo todo e além. Inicialmente, com Graciliano Ramos, adentra-se no imaginário popular com a figura quase mística de Alexandre, e no pensamento feminino com a figura árida e profunda de Sinha Vitória. Depois, com Guimarães Rosa, vai-se às esquisitâncias de um chinês no sertão de Minas Gerais, e conclui-se com um homem na canoa, em um rio que é travessia.






APRESENTAÇÃO DE ALEXANDRE E CESÁRIA
         Graciliano Ramos

No sertão do nordeste vivia antigamente um homem cheio de conversas, meio caçador e meio vaqueiro, alto, magro, já velho, chamado Alexandre. Tinha um olho torto e falava cuspindo a gente, espumando como um sapo-cururu, mas isto não impedia que os moradores da redondeza, até pessoas de consideração, fossem ouvir as histórias famosas que ele contava. Tinha uma casa pequena, meia dúzia de vacas no curral, um chiqueiro de cabras e roça de milho na vazante do rio. Além disso possuía uma espingarda e a mulher. A espingarda lazarina, a melhor espingarda do mundo, não mentia fogo e alcançava longe, alcançava tanto quanto a vista do dono; a mulher, Cesária, fazia renda e adivinhava os pensamentos do marido. Em domingos e dias santos a casa se enchia de visitas – e Alexandre, sentado no banco do alpendre, fumando um cigarro de palha muito grande, discorria sobre acontecimentos da mocidade, às vezes se enganchava e apelava para a memória de Cesária. Cesária tinha sempre uma resposta na ponta da língua. Sabia de cor todas as aventuras do marido, a do bode que se transformava em cavalo, a da guariba mãe de família, da cachorra morta por um caititu acuando, pobrezinha, a melhor cachorra de caça que já houve. E aquele negócio de onça-pintada que numa noite ficara mansa como bicho de casa? Era medonho. Alexandre tinha realizado ações notáveis e falava bonito, mas guardava muitas coisas no espírito e sucedia misturá-las. Cesária escutava e aprovava balançando a cabeça, curvada sobre a almofada trocando os bilros, pregando alfinetes no papelão da renda. E quando o homem se calava ou algum ouvinte fazia perguntas inconvenientes, levantava os olhos miúdos por cima dos óculos e completava a narração. Esse casal admirável não brigava, não discutia. Alexandre estava sempre de acordo com Cesária, Cesária estava sempre de acordo com Alexandre. O que um dizia o outro achava certo. E assim, tudo se combinando, descobriam casos interessantes que se enfeitavam e pareciam tão verdadeiros como a espingarda lazarina, o curral, o chiqueiro das cabras e a casa onde eles moravam. Alexandre, como já vimos, tinha um olho torto. Enquanto ele falava, cuspindo a gente, o olho certo espiava as pessoas, mas o olho torto ficava longe, parado, procurando outras pessoas para escutar as histórias que ele contava. A princípio esse olho torto lhe causava muito desgosto e não gostava que falassem nele. Mas com o tempo se acostumou e descobriu que enxergava melhor por ele que pelo outro, que era direito. Consultou a mulher:

- Não, é Cesária?

Cesária achou que era assim mesmo. Alexandre via até demais por aquele olho: Não se lembrava do veado que estava no monte? Pois é. Um homem de olhos comuns não teria percebido o veado com aquela distância.

Alexandre ficou satisfeito e começou a referir-se ao olho enviesado com orgulho. O defeito desapareceu, e a história do espinho foi nascendo, como tinham nascido todas as histórias dele, com a colaboração de Cesária. São essas histórias que vamos contar aqui, aproveitando a linguagem de Alexandre e os apartes de Cesária.

10 de julho de 1938.



UMA CANOA FURADA 
                          Graciliano Ramos

MESTRE Gaudêncio curandeiro, homem sabido, explicou uma noite aos amigos que a terra se move, é redonda e fica longe do sol umas cem léguas.

- Já me disseram isso, murmurou Cesária.

Das Dores arregalou os olhos, seu Libório espichou o beiço e deu um assobio de admiração. O cego preto Firmino achou a distância exagerada e sorriu. incrédulo:

- Conversa, mestre Gaudêncio. Quem mediu? Das telhas para cima ninguém vai. Isso é emboança de livro, papel aguenta muita lorota. Cem léguas? Não embarco em canoa furada não, mestre Gaudêncio.

- Ora, seu Firmino! exclamou Alexandre. Para que diz isso? Embarca. Todos nós embarcamos, é da natureza do homem embarcar em canoa furada. Tudo neste mundo é canoa furada, seu Firmino. E a gente embarca. Nascemos para embarcar. Um dia arreamos, entregamos o couro às varas e, como temos religião, vamos para o céu, que é talvez a última canoa, Deus me perdoe. Embarca, seu Firmino.

Levantou-se, foi acender o cigarro ao candeeiro de folha, voltou à rede.

- Embarcar. E por falar em canoa furada, vou contar aos senhores o que me aconteceu numa, há vinte anos. Canoa verdadeira, seu Firmino, de pau, não dessas que vossemecê puxou para contrariar mestre Gaudêncio. Ora muito bem. Numa das minhas viagens rolei uns meses por Macururé, levando boiadas para a Bahia. Já andaram por essas bandas? Tenho aquilo de cor e salteado. Ganhei uns cobres, mandei fazer roupa no alfaiate, comprei um corte de pano fino e um frasco e um frasco de cheiro para Cesária. Demorei-me na capital uma semana. Aí fiz tenção de vender a fazenda e os cacarecos, mudar-me, dar boa vida à pobre mulher, que trabalhava no pesado, ir com ela aos

teatros e rodar nos bondes. Refletindo, afastei do pensamento essas bobagens. Matuto, quando sai do mato, perde o jeito. Quem é do chão não se trepa. Ninguém me conhecia na cidade cheia como um ovo. A propósito, sabem que um ovo custa lá cinco tostões? Calculem. Não me aprumo nessas ruas grandes, onde gente da nossa marca dá topadas no calçamento liso e os homens passam uns pelo outros calados, como se não se enxergassem. Nunca vi tanta falta de educação. Vossemecê morra numa casa dois ou três anos e os vizinhos nem sabem o seu nome. Nos meus pastos a coisa era diferente. Lá eu tinha privilégio: votava com o governo, hospedava o intendente, não pagava imposto e tirava presos da cadeia, no júri. Vivia de grande. E quando aparecia na feira, o cavalo em pisada baixa, riscando nas portas, os arreios de prata alumiando, o comandante do destacamento levava a mão ao boné e me perguntava pela família. Tenho tocado nisso algumas vezes, e os amigos vão pensar que estou aqui arrotando importância. É engano, detesto pabulagem. Na capital só viam em mim um sujeito que vendia gado. Mas se quiserem saber a minha fama no sertão, dêem um salto à ribeira do Navio e falem no major Alexandre. Cinqüenta léguas em redor, de vante a ré, todo o bichinho dará notícia as minhas estrepolias. A história da onça, a do bode, o estribo de prata, este olho torto, que ficou muitas horas espetado num espinho, roído pelas formigas, circulam como dinheiro de cobre, tudo exagerado. É o que me aborrece, não gosto de exageros. Quero que digam só o que fiz. Esse negócio da canoa entrou num folheto e hoje se canta na viola, mas com tantos acréscimos que, francamente, não me responsabilizo pelo que escreveram. Exatamente o que sucedeu com o marquesão. Lembram-se? Dr. Silva pegou o marquesão de jaqueira e fez dele o que entendeu, encheu a casa de cortiços. Não era o meu marquesão, que só deu quatro pés de jaca. O caso da canoa também foi muito aumentado. É bom prevenir. Se vossemecês ouvirem falar nele em cantoria, fiquem sabendo que as nove-horas são astúcias do poeta. O acontecido foi coisa muito curta, que eu podia embrulhar num instante. E se converso demais, é porque a gente precisa matar tempo, não sapecar tudo logo de uma vez. Se não fosse assim, a história perdia a graça. Por isso espichei diante dos amigos a cidade grande, os teatros, os bondes, os avos e a roupa nova, o corte de pano fino e o frasco de cheiro que ofereci a Cesária. Ela vestiu o pano fino e botou o frasco de cheiro no lenço, mas isto não adianta. Sem cheiro e sem pano, a história da canoa seria a mesma, um pouco mais encolhida. Bem, como disse aos amigos, demorei na Bahia, com desejo de arranjar-me por lá. Quando vi que a intenção era besteira, decidi voltar para casa, amansar brabo, arrematar caixas de segredo em leilão e animar o cordão azul e o cordão vermelho, no pastoril, que foi para isto que nasci. Sim senhores. Selei o cavalo e atirei-me para o norte. Caminhei, caminhei, cheguei ao S. Francisco. Seu Firmino andou no S. Francisco? Não andou. É o maior rio do mundo. Não se sabe onde começa, nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos, tem umas cem léguas de comprimento. Quer dizer que, se em vez de correr por cima da terra, ele corresse para os ares,

apagava o sol, não é verdade, mestre Gaudêncio? Nunca vi tanta água junta, meus amigos. É um mar: engole o Ipanema em tempo de cheia e pede mais. Está sempre com sede. Não há rio com semelhante largura. Vossemecês pisam na beira dele, olham para a outra banda, avistam um boi e pensam que é um cabrito. Por aí podem imaginar aquele despotismo. Pois eu ia morrendo afogado no S. Francisco, vinte anos atrás. Afogado não digo que morresse, porque enfim dou umas braçadas, mas, se não me afogasse, era certo estrepar-me no dente da piranha, o bicho mais infeliz que Deus fabricou. Já viram piranha? Se não viram, perdem pouco. É uma criatura que não tem serventia e morde como cachorro doido. Onde há sangue aparece um magote delas. Entra um vivente na água e em cinco minutos deixa lá o esqueleto. Percebem? Topei o S. Francisco empanzinado, soprando. Tinha lambido as plantações de arroz, comido as ribanceiras, e a escuma subia, ia cobrindo as catingueiras e as baraúnas. Viajei dois dias para as cabeceiras, procurando passagem. E, ali pelas alturas de Propriá, vi uma canoa cheia de gente que botava para as Alagoas. – “Seu moço, perguntei ao remador, essa gangora é segura?” E o homem respondeu, de cara enferrujada:

- “Segura ela é. Mas garantir que chegue ao outro lado não garanto. Se tem coragem de se arriscar, entre para dentro, que ainda cabe um.” Fiquei embuchado, com uma resposta atravessada na goela, pois acho desaforo alguém pôr em dúvida a minha disposição. Que para usar de fraqueza, o que faço direito é correr boi no campo. Mergulhar e brigar com peixe não é ocupação de gente. Desarreei o animal, amarei o cabresto na popa da canoa, arrumei os picuás e embarquei. O cavalo nadou, três mulheres velhas puxaram os rosários e navegamos em paz até o meio do rio. Aí, quando mal nos precatávamos, o diabo do cocho se furou e em poucos minutos os meus troços estavam boiando. Foi um deus-nos-acuda: os homens perderam a fala, as mulheres soltaram os rosários e botaram as mãos na cabeça, numa latomia, numa choradeira dos pecados. – “Então, seu mestre, perguntei ao canoeiro, o senhor não disse que esta geringonça era segura?” E o desgraçado respondeu: “Segura ela era. Mas, como o senhor está vendo, agora não é.” – “Que é que vamos fazer? gritei desadorado.” – “Sei lá, disse o homem. Quem tiver muque puxe por ele e veja se alcança terra, o que acho difícil.” A minha vontade foi dar uns tabefes no sem-vergonha, mas não havia tempo, os amigos vêem que não havia tempo. – “Está bem, tornei. Nós ajustaremos contas depois. Se escaparmos, será na banda alagoana. Se formos para o fundo, no céu ou no inferno a gente se encontra e você me contará isso direitinho, seu filho de uma égua.” Acocorei-me e pus-me a esgotar aquela miséria com o chapéu. Os viajantes machos fizeram o mesmo e as mulheres dos rosários, chamadas à ordem, agarraram cuias e caíram no trabalho. Tempo perdido. Gastávamos forças e o traste cada vez mais se enchia. Desanimei, ia entregar os pontos quando me veio de repente uma idéia, a idéia mais feliz que Deus me deu. Lembrei-me de que tinha no bolso da carona um formão e um martelo,

comprados para o serviço da fazenda. Muito bem. Veio-me a idéia, dei um salto, fui à carona, peguei o formão e o martelo, fiz um rombo no casco da canoa. Os companheiros me olhavam espantados, julgando talvez que eu estivesse doido. Mas o meu juízo funcionava perfeitamente. Imaginam o que sucedeu? A embarcação se esvaziou em poucos minutos, continuou a viagem e chegou sem novidade a Porto-Real-do-Colégio. Natural. A água entrava por um buraco e saía por outro. Compreenderam? Uma coisa muito simples, mas se eu não tivesse pensado nisso, alguns pais de família e três devotas teriam acabado no bucho da piranha. Desembarcamos na terra alagoana. Aí chamei de parte o canoeiro, sem raiva, e dei-lhe meia dúzia de trompaços, que o prometido é devido. Ele se defendeu (era um tipo de sangue no olho) e propôs camaradagem: - “Seu Alexandre, vamos deixar de besteira. O senhor é um homem.” Ficamos amigos, fomos para a bodega e passamos uma noite na prosa, bebendo cachaça.






Capitulo IV – SINHÁ VITÓRIA
                                     Graciliano Ramos
 Sinha Vitória acocorada junto as pedras que serviam de trempe, a saia de ramagens entalada entre as coxas, Sinhá Vitória soprava o fogo. Uma nuvem de cinza voou dos tições e cobriu-lhe a cara, a fumaça inundou-lhe os olhos, o rosário de contas brancas e azuis desprendeu-se do cabeção e bateu na panela. Sinhá Vitória limpou as lágrimas com as costas das mãos, encarquilhou as palpebras, meteu o rosário no seio e continuou a soprar com vontade, enchendo muito as bochechas.
Labaredas lamberam as achas de angico, esmoreceram, tornaram a levantar-se e espalharam-se entre as pedras. Sinhá Vitória aprumou o espinhaço e agitou o abano. Uma chuva de faiscas mergulhou num banho luminoso, a cachorra Baleia, que se enroscava no calor e cochilava embalada pelas emanações da comida.
Sentindo a deslocação do ar e a crepitação dos gravetos, Baleia despertou, retirou-se prudentemente, receosa de sapecar o pelô, e ficou observando maravilhada as estrelinhas vermelhas que se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com um movimento de cauda aquele fenômeno e desejou expressar a sua admiração a dona. Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras, imitando gente. Mas Sinhá Vitória não queria saber de elogios.
- Arreda!
Deu um pontapé na cachorra, que se afastou humilhada e com sentimentos revolucionários.
Sinhá Vitória tinha amanhecido nos seus azeites. Fora de propósito, dissera ao marido umas inconveniências a respeito da cama de varas. Fabiano, que não esperava semelhante desatino, apenas grunhira: - "Hum! hum!" E amunhecara, porque realmente mulher é bicho dificil de entender, deitara-se na rede e pegara no sono. Sinhá Vitória andara para cima e para baixo, procurando em que desabafar. Como achasse tudo em ordem, queixara-se da vida. E agora vingava-se em Baleia, dando-lhe um pontapé.
Avizinhou-se da janela baixa da cozinha, viu os meninos, entretidos no barreiro, sujos de lama, fabricando bois de barro, que secavam ao sol, sob o pé de turco, e não encontrou motivo para repreendê-los. Pensou de novo na cama de varas e mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinham-se acostumado, mas seria mais agradável dormirem numa cama de lastro de couro, como outras pessoas.
Fazia mais de um ano que falava nisso ao marido. Fabiano a principio concordara com ela, mastigara cálculos, tudo errado. Tanto para o couro, tanto para a armação. Bem.
Poderiam adquirir o móvel necessário economizando na roupa e no querosene. Sinhá Vitória respondera que isso era impossível, porque eles vestiam mal, as crianças andavam nuas, e recolhiam-se todos ao anoitecer. Para bem dizer, não se açendiam candeeiros na casa. Tinham discutido, procurando cortar outras despesas. Como não se entendessem, Sinhá Vitória aludira, bastante azeda, ao dinheiro gasto pelo marido na feira, com jogo e cachaça. Ressentido, Fabiano condenara os sapatos de verniz que ela usava nas festas, caros e inuteís. Calçada naquilo, tropega, mexia-se como um papagaio, era ridícula. Sinhá Vitória ofendera-se gravemente com a comparação, e se não fosse o respeito que Fabiano lhe inspirava, teria despropositado. Efetivamente os sapatos apertavam-lhe os dedos, faziam-lhe calos. Equilibrava-se mal, tropeçava, manquejava, trepada nos saltos de meio palmo.
Devia ser ridícula, mas a opinião de Fabiano entristecera-a muito. Desfeitas essas nuvens, curtidos os dissabores, a cama de novo lhe apareçera no horizonte acanhado.
Agora pensava nela de mau humor. Julgava-a inatingível e misturava-a as obrigações da casa. Foi a sala, passou por baixo do punho da rede onde Fabiano roncava, tirou do carito o cachimbo e uma pele de fumo, saiu para o copiar. O chocalho da vaca laranja tilintou para os lados do rio. Fabiano era capaz de se ter esquecido de curar a vaca laranja.
Acorda-lo e perguntar, mas distraiu-se olhando os xiquexiques e os mandacarus que avultavam na campina.
Um mormaço levantava-se da terra queimada. Estremeçeu lembrando-se da seca, o rosto moreno desbotou, os olhos pretos arregalaram-se. Diligençiou afastar a recordação, temendo que ela virasse realidade. Rezou baixinho uma avemaria, já tranquila, a atenção desviada para um buraco que havia na cerca do chiqueiro das cabras. Esfarelou a pele de fumo entre as palmas das mãos grossas, encheu o cachimbo de barro, foi consertar a cerca. Voltou, circulou a casa atravessando o cercadinho do oitão, entrou na cozinha.
- E capaz de Fabiano ter-se esquecido da vaca laranja.
Agachou-se, atiçou o fogo, apanhou uma brasa com a colher, acendeu o cachimbo, pos-se a chupar o canudo de taquari cheio de sarro. Jogou longe uma cusparada, que passou por cima da janela e foi cair no terreiro. Preparou-se para cuspir novamente. Por uma extravagante associação, relacionou esse ato com a lembrança da cama. Se o cuspo alcançasse o terreiro, a cama seria comprada antes do fim do ano. Encheu a boca de saliva, inclinou-se - e não conseguiu o que esperava.
Fez várias tentativas, inutilmente. O resultado foi secar a garganta. Ergueu-se desapontada. Besteira, aquilo não valia.
Aproximou-se do canto onde o pote se erguia numa forquilha de três pontas, bebeu um caneco de água. Água salobra.
- Iche! Isto lhe sugeriu duas imagens quase simultâneas, que se confundiram e neutralizaram: panelas e bebedouros. Encostou o fura-bolos a testa, indecisa. Em que estava pensando? Olhou o chão, concentrada, procurando recordar-se, viu os pés chatos, largos, os dedos separados. De repente as duas ideias voltaram: o bebedouro secava, a panela não tinha sido temperada.
Foi levantar o testo, recebeu na cara vermelha uma baforada de vapor. Não é que ia deixando a comida esturrar? Pôs água nela e remexeu-a com a quenga preta de coco. Em seguida provou o caldo. Insosso, nem parecia bóia de cristão. Chegou-se ao jirau onde se guardavam cumbucos e mantas de carne, abriu a mochila de sal, tirou um punhado, jogou-o na panela.
Agora pensava no bebedouro, onde havia um liquido escuro que bicho enjeitava. Só tinha medo da seca.
Olhou de novo os pés espalmados. Efetivamente não se acostumava a calçaar sapatos, mas o remoque de Fabiano molestara-a. Pés de papagaio. Isso mesmo, sem dúvida, matuto anda assim. Para que fazer vergonha a gente? Arreliava-se com a comparação.
Pobre do papagaio. Viajar com ela, na gaiola que balançava em cima do baú de folha. Gaguejava: - "Meu louro." Era o que sabia dizer. Fora isso, aboiava arremedando Fabiano e latia como Baleia. Coitado. Sinhá Vitória nem queria lembrar-se daquilo. Esqueçera a vida antiga, era como se tivesse nascido depois que chegara a fazenda. A referência aos sapatos abrira-lhe uma ferida - e a viagem reapareçera. As alpercatas dela tinham sido gastas nas pedras. Cansada, meio morta de fome, carregava o filho mais novo, o baú e a gaiola do papagaio. Fabiano era ruim.
- Mal-agradeçido.
Olhou os pés novamente. Pobre do louro. Na beira do rio matara-o por necessidade, para sustento da família. Naquele momento ele estava zangado, fitava na cachorrinha as pupilas sérias e caminhava aos tombos, como os matutos em dias de festa. Para que Fabiano fora despertar-lhe aquela recordação? Chegou a porta, olhou as folhas amarelas das catingueiras.
Suspirou. Deus não havia de permitir outra desgraça. Agitou a cabeça e procurou ocupações para entreter-se. Tomou a cuia grande, encaminhou-se ao barreiro, encheu de água o caco das galinhas, endireitou o poleiro. Em seguida foi ao quintalzinho regar os craveiros e as panelas de losna. E botou os filhos para dentro de casa, que tinham barro áte nas meninas dos olhos. Repreendeu-os: - Safadinhos! porcos! sujos como... Deteve-se. Ia dizer que eles estavam sujos como papagaios.
Os pequenos fugiram, foram enrolar-se na esteira da sala, por baixo do carito, e Sinhá Vitória voltou para junto da trempe, reaçendeu o cachimbo. A panela chiava; um vento morno e empoeirado sacudia as teias de aranha e as cortinas de pucuma do teto; Baleia, sob o jirau, cocava-se com os dentes e pegava moscas. Ouviam-se distintamente os roncos de Fabiano, compassados, e o ritmo deles influiu nas ideias de Sinhá Vitória. Fabiano roncava com segurança. Provavelmente não havia perigo, a seca devia estar longe.
Outra vez Sinhá Vitória pôs-se a sonhar com a cama de lastro de couro. Mas o sonho se ligava a recordação do papagaio, e foi-lhe preciso um grande esforço para isolar o objeto de seu desejo.
Tudo ali era estável, seguro. O sono de Fabiano, o fogo que estalava, o toque dos chocalhos, áte o zumbido das moscas davam-lhe sensação de firmeza e repouso. Tinha de passar a vida inteira dormindo em varas? Bem no meio do catre havia um nó, um calombo grosso na madeira. E ela se encolhia num canto, o marido no outro, não podiam estirar-se no centro. A princípio não se incomodara. Bamba, moida de trabalhos, deitar-se-ia em pregos. Viera, porém, um começo de prosperidade. Corriam, engordavam. Não possuíam nada: se retirassem, levariam a roupa, a espingarda, o baú de folha e trocas miúdos. Mas iam vivendo, na graça de Deus, o patrão confiava neles - e eram quase felizes. Só faltava uma cama.
Era o que aperreava Sinhá Vitória. Como já não se estazava em serviços pesados, gastava um pedaço da noite parafusando. E o costume de encafuar-se ao escurecer não estava certo, que ninguém é galinha.
Nesse ponto as ideias de Sinhá Vitória seguiram outro caminho, que pouco depois foi desembocar no primeiro. Não era que a raposa tinha passado no rabo a galinha pedrês? Logo a pedrês, a mais gorda. Decidiu armar um mundeu perto do poleiro. Encolerizou-se. A raposa pagaria a galinha pedrês.
- Ladrona.
Pouco a pouco a zanga se transferiu. Os roncos de Fabiano eram insuportaveís. Não havia homem que roncasse tanto. Era bom levantar-se e procurar uma vara para substituir aquele pau amaldiçoado que não deixava uma pessoa virar-se. Porque não tinham removido aquela vara incomoda? Suspirou. Não conseguiam tomar resolução. Paciência. Era melhor esquecer o nó e pensar numa cama igual a de seu Tomás da bolandeira. Seu Tomás tinha uma cama de verdade, feita pelo carpinteiro, um estrado de sucupira alisado a enxo, com as juntas abertas a formão, tudo embutido direito, e um couro cru em cima, bem esticado e bem pregado. Ali podia um cristão estirar os ossos.
Se vendesse as galinhas e a marra? Infelizmente a excomungada raposa tinha comido a pedrês, a mais gorda.
Precisava dar uma lição a raposa. Ia armar o mundéu junto do poleiro e quebrar o espinhaço daquela sem-vergonha.
Ergueu-se, foi a camarinha procurar qualquer coisa, voltou desanimada e esquecida. Onde tinha a cabeça? Sentou-se na janela baixa da cozinha, desgostosa. Venderia as galinhas e a marra, deixaria de comprar querosene. Inutíl consultar Fabiano, que sempre se entusiasmava, arrumava projetos. Esfriava logo - e ela franzia a testa, espantada; certa de que o marido se satisfazia com a ideia de possuir uma cama. Sinhá Vitória desejava uma cama real, de couro e sucupira, igual a de seu Tomás da bolandeira.


ORIENTAÇÃO
                João Guimarães Rosa

                                                                                              - Uê, ocê é o chim?
                                                                                               - Sou sim, o chim sou.
                                                                                                  DO CULE CÃO.

Em puridade de verdade; e quem viu nunca tal coisa? No meio de Minas Gerais, um joãovagante, no pé-rapar, fulano-da-china – vindo, vivido, ido – automaticamente lembrado. Tudo cabe no globo. Cozinhava, e mais, na casa do Dr. Dayrell, engenheiro da Central.
Sem cambaia, sem rabicho, seco de corpo, combinava virtudes com mínima mímica; cabeça rapada, bochechas, o rosto plenilunar. Trastejava, de sol-nascente a vice-versa, sério sorrisoteiro, contra rumor ou confusão, por excelência de técnica. Para si exigia apenas, após o almoço, uma hora de repouso, no quarto. – “Joaquim vai fumar...” – cigarro, não ópio; o que pouco explicava.
Nome e homem. Nome muito embaraçado: Yao Tsing-Lao – facilitado para Joaquim. Quim, pois. Sábio como o sal no saleiro, bem inclinado. Polvilhava de mais alma as maneiras, sem pressa, com velocidade. Sabia pensar de-banda? Dele a gente gostava. O chinês tem outro modo de ter cara.
Dr. Dayrell partiu e deixou-o a zelar o sítio da Estrada. Trenhoso, formigo, Tsing-Lao prosperou, teve e fez sua chácara pessoal: o chalé, abado circunflexo, entre leste-oeste-este bambus, árvores, cores, vergel de abóboras, a curva ideia de um riacho. Morava, porém, era onde em si, no cujo caber de caramujo, ensinado a ser, sua pólvora bem inventada.
Virava o Seô Quim, no redor rural. A mourejar ou a bizarrir, indevassava-se, sem apoquenturas: solúveis as dificuldades em sua ponderação e aprazer-se. Sentava-se, para decorar o chinfrim de pássaros ou entender o povo passar. Traçava as pernas. Esperar é um à-toa muito ativo.
E – vai-se não ver, e vê-se! Yao o china surgiu sentimental. Xacoca, mascava lavadeira respondedora, a amada, por apelido Rita Rola – Lola ou Lita, conforme ele silabava, só num cacarejo de fé, luzentes os olhos de ponto-e-vírgula. Feia, de se ter pena de seu espelho. Tão feia, com fossas nasais. Mas, havido o de haver. Cheiraram-se e gostaram-se.
De que com um chinês, a Rola não teve escrúpulo, fora ele de laia e igualha – pela pingue cordura e façatez, e parecença com ninguém. Quim olhava os pés dela, não humilde mas melódico. Mas o amor assim pertencia a outra espécie de fenômenos? Seu amor e as matérias intermediárias. O mundo do rio não é o mundo da ponte.
Yao amante, o primeiro efeito foi Rita Rola semelhar mesmo Lola-a-Lita – desenhada por seus olhares. A gente achava-a de melhor parecer, senão formosura. Tomava marfim, mudada de cúpula a fundo. No que o chino imprimira mágica – vital, à viva vista: ela, um angu grosso em fôrma de pudim. Serviam os dois ao mistério?
Ora, casaram-se. Com festa, a comedida comédia: noivo e noiva e bolo. O par – o compimpo – til no i, pingo no a, o que de ambos, parecidos como uma rapadura e uma escada. Ele, gravata no pescoço, aos pimpolins de gato, feliz como um assovio. Ela, pompososa, ovante feito galinha que pôs. Só não se davam o braço. No que não, o mundo não movendo-se, em sua válida intraduzibilidade.
Nem se soube o que se passaram, depois, nesse rio-acima. Lolalita dona-de-casa, de panelas, leque e badulaques, num oco. Quim, o novo-casado, de mesuras sem cura, com esquisitâncias e coisinhiquezas, lunático-de-mel, ainda mais felizquim. Deu a ela um quimão de baeta, lenço bordado, peça de seda, os chinelinhos de pano.
Tudo em pó de açúcar, ou mel-e-açúcar, mimo macio – o de valor lírico e prático. Ensinava-lhe liqueliques, refinices – que piqueniques e jardins são das mais necessárias invenções? Nada de novo. Mas Rola-a-Rita achava que o que há de mais humano é a gente se sentar numa cadeira. O amor é breve ou longo, como a arte e a vida.
De vez, desderam-se, o caso não sucedeu bem. O silêncio pôde mais que eles. Ou a sovinice da vida, as inexatidões do concreto imediato, o mau-hálito da realidade.
Rita a Rola se assustou, revirando atrás. Tirou-se de Quim, pazpalhaço, o dragão desengendrado. Desertou dele. Discutiam, antes – ambos de cócoras: aquela conversação tão fabulosa. E nunca há fim, de patacoada e hipótese.
Rola, como Rita, malsinava-o, dos chumbos de seu pensamento, de coisa qual coisa. Chamou-o de pagão. Dizia: “Não sou escrava!” Disse: – “Não sou nenhuma mulher-da-vida...” Dizendo: – “Não sou santa de se pôr em altar.” De sínteses não cuidava.
Vai e vem que, Quim, mandarim, menos útil pronunciou-se: – “Sim, sim, sei...” – um obtempero. Mais o: –“T’s, t’s, t’s...” – pataratesco; parecia brincar de piscar, para uma boa compreensão de nada. Falar, qualquer palavra que seja, é uma brutalidade? Tudo tomara já consigo; e não acabrunhável. Sínico, sutilzinho, deixou-lhe a chácara, por polidez, com zumbaia. Desapareceu suficientemente – aonde vão as moscas enxotadas e as músicas ouvidas. Tivessem-no como degolado.
Rita-a-Rola, em tanto em quanto, apesar de si, mudara, mudava-se. Nela não falava; muito demais. –“De que banda é que aquela terra será” Apontou-se-lhe, em esmo algébrico, o rumo do Quim chim, Yao o ausente, da Extrema-Ásia, de onde oriundo: ali vivem de arroz e sabem salamaleques.
Aprendia ela a parar calada levemente, no sóbrio e ciente, e só rir. Ora quitava-se com peneiradinhas lágrimas, num manso não se queixar sem fim. Sua pele, até, com reflexos de açafrão. – “Tivesse tido um filho...” – ao peito as palmas das mãos.
Outr’algo recebera, porém, tico e Nico: como gorgulho no grão, grão de fermento, fino de bússola, um mecanismo de consciência ou cócega. Andava agora a Lola Lita com passo enfeitadinho, emendado, reto, proprinhos pé e pé.





A Terceira Margem do Rio
                                              João Guimarães Rosa
Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde
mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando
indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio
nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem
regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu
que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena,
mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda
fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por
uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que
nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada
não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto
de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não
se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa
ficou pronta.
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus
para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma
recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu
somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca
volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir
também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O
rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me
leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção,
com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato,
para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se
indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a
invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro
da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para.
estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e
conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos
pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o
entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe,
por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para
outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando
pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra
banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem
canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então,
pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse,
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ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para
jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para
casa.
No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um
tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal
nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no
alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura,
broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão
custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa,
suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de
comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de
chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde
tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela
mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito
não se demonstrava.
Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios.
Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se
revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de
desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois
soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou
diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo
quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e
tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra
banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só
ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a
gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que
queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para
trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma,
como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas
friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por
todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava
em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão
nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da
canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia,
nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de
comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da
gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável.
Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido,
mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza
enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore
descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma.
Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se
podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para
se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele,
quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no
desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma
cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido
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nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele
agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e
dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de
roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de
respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom
procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que
não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se
lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio,
para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã
teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos,
no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do
casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender
os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã
chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu
e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos.
Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava
envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci,
com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no
ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme
indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse
revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse
homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as
falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras
cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam:
que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha
antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam
já em mim uns primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa?
Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu
sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha
achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê?
Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor,
deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se
despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o
fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou
o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas
fossem outras. E fui tomando idéia.
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se
falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido.
Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser
mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o
vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E
falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor
está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor
vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar,
do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais
certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá,
concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o
braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E
eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num
procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E
estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou
homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que
agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao
menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa
canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a
fora, rio a dentro — o rio.