Quem sou eu

O projeto "Longa jornada livro adentro: a análise de textos literários" visa incentivar a leitura e a interpretação de textos de diferentes épocas e estilos. O grupo fará oficinas quinzenais, aos sábados pela manhã, em que se debaterão obras, tendências e outros assuntos do mundo da literatura. Aqui, você confere os tópicos em pauta, os principais itens discutidos nas reuniões e a organização para os encontros futuros. As oficinas se realizarão no auditório da UFFS.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

15ª Oficina: Dom Casmurro, de Machado de Assis: a traição pelo discurso


Livro fundamental e fundante do subsequente século XX, Dom Casmurro (1899) mostra um Machado de Assis mestre consciente da construção narrativa. Para além dos personagens que já fazem parte do imaginário coletivo, como Bentinho, Capitu e José Dias, o que existe nesse livro é um autor construindo um outro autor, isto é, Machado constrói Bento Santiago que constrói toda a trama. Para ler com o cuidado necessário essas digressões e brincadeiras, a decida quinta oficina, a se realizar no dia 1°/12, às 08 horas, no auditório da UFFS, vai mostrar alguns dos incontáveis caminhos possíveis dentro da obra. Inicialmente, traçar-se-á um panorama da figura do narrador, bem como das digressões e jogos de claro-escuro. Depois, vão-se enfocar os personagens periféricos da obra, todos elementos importantes para a composição da trama. Em seguida, serão contrapostos os dois personagens centrais, em seu desenvolvimento: Bentinho e Capitu.

O texto, na íntegra, pode ser encontrado no site www.dominiopublico.gov.br

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

14ª Oficina: Fernando Pessoa: uma arca cheia de gente; o um que é outro, constantemente


Nome máximo do Modernismo português, e do século XX, Fernando Pessoa produziu uma vasta obra que até hoje encanta pela diversidade e pela alta elaboração do seu projeto literário. Para dar conta de diferentes estilos, ele criou o jogo dos heterônimos, isto é, outros poetas que, cada qual com sua particularidade, teriam um “tom” distinto dos demais. Para homenagear o poeta, a décima quarta oficina, a se realizar no dia 24/11, às 08 horas, no auditório da UFFS, vai mostrar um pouco da produção de cada um dos quatro poetas “principais”: Principiando por Alberto Caeiro, considerado o mestre dos demais, vai-se adentrar em sua inocência linguística e profundidade de significados diante da realidade. Depois, com Fernando Pessoa ele-mesmo, o pensamento e a racionalidade diante de tudo será a tônica para compreender-se. Então, irão se contrapor os dois poetas “contrários”: Ricardo Reis, que se volta para a Antiguidade Clássica e prega o não-envolvimento, querendo não sofrer; e Álvaro de Campos, que canta a Modernidade, com sua velocidade, suas angústias e sua fragmentação.


Alberto Caeiro


I - Eu Nunca Guardei Rebanhos
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.


II - O Meu Olhar
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...


V - Há Metafísica Bastante em Não Pensar em Nada
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.



IX - Sou um Guardador de Rebanhos
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

XXIV - O que Nós Vemos
O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma seqüestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores.
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.





Eros e Psique 

...E assim vedes, meu Irmão, que as verdades
que vos foram dadas no Grau de Neófito, e
aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto
Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade. 

(Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio
Na Ordem Templária De Portugal) 

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino –
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.



Liberdade

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...

Parte superior do formulário

O Menino da Sua Mãe

NO PLAINO abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
- Duas, de lado a lado -,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe.»

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.


Odes de Ricardo Reis

Ouvi contar que outrora

Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na
Cidade E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.

À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário.
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.

Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez.

Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.

Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indif'rentes.

Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida.
Os haveres tranqüilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.

Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.

Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranqüila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.

O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.

Ah! sob as sombras que sem qu'rer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.



Álvaro de Campos


Insônia

Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.
Espera-me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê... Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.

Vem, madrugada, chega! Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exatamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exatamente. Mas não durmo

Lisbon Revisited (1923)

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer. Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral! Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos? Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço.

Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
Grandes são os desertos

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.
Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,
Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.
Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.
Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.
Mas tenho que arrumar mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.
Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.
Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.
Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;
Hei de vê-la levar de aqui,
Hei de existir independentemente dela.
Grandes são os desertos e tudo é deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!
Mais vale arrumar a mala.
Fim.


sexta-feira, 2 de novembro de 2012

13ª Oficina: “Esta sou eu, a inúmera”: Cecília Meireles, uma voz múltipla no Modernismo

Enquanto o Modernismo eclodia no Brasil com uma voz de ruptura e negação das tradições, Cecília Meireles optou por ser independente, negando uma adesão passiva ao movimento. Fugiu a classificações restritas, podendo ser neossimbolista, neoparnasiana, neoclássica, movendo-se na própria maestria de seu texto poético. Por isso, na décima terceira oficina, a se realizar no dia 10/11, às 08 horas, no auditório da UFFS, Cecília se faça presente em variadas formas e temáticas. Principiando pela poesia fluida, na qual a musicalidade é a tônica, passa-se, então, a uma crônica em que a viagem sonhada não é a viagem de fato. Depois, em carta ao poeta Armando Côrtes-Rodrigues, ela se revela em sua ironia íntima. Por fim, no Romanceiro da Inconfidência, os ecos de luta e história são ouvidos e transmitidos pela poeta.


Cecilia Meireles

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Juramento

Fácil é dizer: " Minha alma..."
Difícil, saber o que pode ser nosso
no mundo e além.
Difícil saber que alma vemos, que alma existe,
a que alma dirigimos o nosso amor.

Fácil é dizer: "... eu te amo..."
Difícil saber que amor sentimos,
damos, desejamos,
que poder é esse que obriga o sangue, o pulso, a vida,
em que obscuras direções.

Fácil é dizer: "... para sempre..."
Difícil saber até onde ressoa
tão grande juramento.
E onde está para nós a eternidade, o firme
bronze onde inscreveremos nossa voz.

" Minha alma, eu te amo para sempre..."
Letras de lágrimas balbuciamos.

Timidez

Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...

- mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...

- palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,

- que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...

e um dia me acabarei.

Xadrez

Leva-me o tempo para frente
Certo de sua direção
Pausado o passo indiferente
(Peão.)

Que ímpeto me vem de repente
E se esforça para contrariá-lo?
Ó nervosa crina, asa ardente?
(Cavalo.)

Talvez meu poder aumente,
E o tempo invicto alcance e toque...
Como, porém, mudar-lhe a ação?
(Roque)

Leva-me o tempo para frente,
Dizendo passo a passo: “És minha!”
E acrescentando, por piedade:
Rainha!”

E apenas digo debilmente
Como quem sonha e se persuade:
Tua, apenas tua, serei...
Rei!”


 Viajar I


Há as viagens que se sonham e as viagens que se fazem – o que é muito diferente. O sonho do viajante está lá longe, no fim da viagem, onde habitam as coisas imaginadas. A realidade da viagem está em cada ponto do caminho, nos algarismos do câmbio e no peso das malas, nos carimbos dos passaportes e nos atestados de vacina. De modo que o prazer de viajar se obscurece, de repente, sob essas pequenas mas implacáveis obrigações que gastam o tempo e a sensibilidade do viajante impaciente.
Portugal exige dos viajantes atestado de vacina contra a febre amarela. Em vão, o grande Osvaldo Cruz mandou policiar as águas; em vão os mata-mosquitos percorrem os nossos quintais, espiando caixas, virando latas, vigiando cada rego, cada tanque, matando os inocentes peixinhos dos nossos aquários com suas drogas fulminantes. Em vão exterminamos os nossos mosquitos: Portugal precisa ver por escrito que estamos vacinados contra a febre amarela...
Creio que nos submetemos à vacina só por amor a Portugal. É grande maçada, e, na nossa opinião, uma exigência descabida: nenhum brasileiro acredita mais em febre amarela, e os mosquitos para nós, já são coisa de arqueologia... Então, por amor a Portugal, para vermos Portugal, para ouvirmos as varinas e comermos doces de ovos no Chiado, justificamos a exigência, e até achamos muito natural, e dizemos que se trata de uma preocupação contra os mosquitos de Dacar, não contra os nossos que, se existissem, seriam apenas amáveis músicos invisíveis de uma liliputiana banda.
Ah! os de Dacar, sim, esses é que são os perigosos! – grandes mosquitos insidiosos e vorazes, sentados à beira-mar, à espera dos viajantes distraídos, afiando o seu aguilhão em negras pedras de amolar, que rodam dia e noite, entre as ondas e as estrelas, preparando a morte bárbara com venenos atrozes, nessas farpas de aços finíssimas...
Então, por amor a Portugal, para vermos Portugal, com seus campos e suas colinas, alistamo-nos com fervor nessa guerra santa contra os mosquitos de Dacar – esses mouros fatídicos – e lá vamos para a nossa vacina com uma certa auréola de beatitude – que sempre se ganha, com qualquer fanatismo.
Pois, além da auréola, ganhamos outras coisas mais: ganhamos a graça de penetrar no palácio que foi da Marquesa de Santos, uma das senhoras mais interessantes da nossa história, seja o que for que pensemos a seu respeito. (Na verdade, que outra figura feminina lhe podemos contrapor? Que infanta, que princesa, que imperatriz?)
Se dispusermos de algum tempo, alguém nos mostrará nas janelas desse palácio, os corações de vidro entrelaçados, símbolo bem poético da fragilidade dos amores, mesmo – ou principalmente – imperiais.
Alguém nos mostrará, também, numa parede, a famosa mosca que dizem ter sido pintada por Pedro I, esse homem maravilhoso que, além de ter dado a independência a um povo e encher a história do Brasil com a sua turbulência amorosa, ainda conseguiu deixar fama de poeta, músico e pintor...
Depois de tudo isso, o mais amável funcionário do mundo nos conduzirá a uma sala onde o mais amável dos médicos nos depositará sob a pele o mais amável dos soros – que, sem sombra de febre ou de qualquer mal-estar – nos fará rir dos mosquitos africanos, - postados à nossa espera, - permitindo-nos, ao mesmo tempo, o gozo de todas as delícias lusitanas, um pouco adiante, ali na esquina da Europa, onde o Tejo e o céu brincam de jogar faíscas de ouro um para o outro.
Viajar é uma grande coisa, naturalmente. E seria ainda maior sem vacinas, sem bagagem, sem câmbio, sem carimbos nos passaportes...
Mas ah! sem os mosquitos de Dacar, quem pensaria com ternura no nosso primeiro imperador e na sua marquesa? Há uma grande distância entre o compêndio em que se estuda e o palácio que se atravessa, que ainda se pode sentir, com sua mosca pintada e seus vidros em forma de coração, como abraçados pombos transparentes...
[1951]

LXII

Rio, 9 de Maio de 1947

Côrtes-Rodrigues: tão grandes são os meus atrasos com a correspondência, que devia começar escrevendo uma carta só de desculpas. Mas abrevio: estivemos todos mais ou menos gripados, sendo que a minha gripe foi desse tipo que nem permite a uma pessoa ficar deitada nem de pé. Resultado: custou muito a passar. Temos tido dias de inverno extremamente húmidos, seguidos de outros — como o de hoje — de verão intensíssimo. Não se sabe mais nem o que vestir nem o que comer, nem o que pensar nem o que dizer, — tudo anda maluco e nem ao menos se sabe para onde fugir, pois por toda a parte parece a mesma coisa. Como já não pode ser pior do que é, talvez daqui por diante comece a ficar melhor...
Além da gripe, atrasei-me com as minhas famosas peças, com visitas, e com dois artigos longos, que me pediram dos EE.UU., para uma revista da Califórnia, sobre Brinquedos Infantis e Festas Populares do Brasil. Junto com isso — e como o signo era de amontoar trabalho — o pessoal do Turismo, onde trabalho, e que dorme e ronca o ano inteiro, acordou de repente, para me pedir um prospecto de propaganda que tem de ser feito do seguinte modo: não pode levar fotografias, porque não as possuem, nem literatura, porque teria de ser traduzida, e não há verba. Nessas condições, o aconselhável seria um pedaço grande de papel em branco, oferecido aos viajantes para que eles aí deixassem sua opinião a respeito do Turismo nacional. Mas isso também não pode ser. E esta é a incumbência sobre a qual me plantam como se eu tivesse poderes para realizar impossíveis!
Mas entre todas as coisas que lhe conto, uma existe mais importante: deu-me um ataque de tédio tão profundo, tão mortal que eu — criatura a que ninguém socorre — se não tivesse corrido por mim mesma para uns vidros de Fitina, já estaria morta, enterrada, com um corvo em cheia da sepultura explicando aos amigos: Morreu de enjoo humano... Pede muitas desculpas."
Chegou-me hoje o seu boneco do 1° de Maio. Ai de nós, que não temos maios por aqui.1 Mas a minha amiga Beata, que está em Bruxelas, também pensou em mim, e mandou-me um raminho de muguê, que ainda cheira, para que eu — diz o cartão — também tivesse o meu "brin de muguet". Um dia vocês se encontrarão todos no céu, com as suas flores e seus bonecos. Mas não sei se me acharão por lá, porque eu ando tão cansada de tudo que nem anjo pretendo ser: peço a Deus que me dê aposentadoria total na criação, com direito a sono profundo, sem recordações, sem sonhos, sem mais nada.
Hoje é o primeiro dia de certa folga, depois de tantos acontecimentos. Venho da cidade, onde fui deixar os artigos para a América, pois nem isso existe quem faça. Faz um calor pavoroso. Todos andam muito irritados, por motivos econômicos e políticos. E eu também, mas sem ser nem por uns nem por outros.
Recebi carta do Osório2, que vem breve para o Brasil. Parece que já está completamente restabelecido. É o que diz na carta. Vem fazer filmes. Vocês ainda não fizeram nenhum filme sobre os Açores?
É uma vergonha, mas ainda não fiz a revisão da cópia das peças que lhe destino. E veja isto: passei agora por uma livraria, à procura de literatura russa, e encontrei um conto de Tchékov que se chama "A dama de espadas". De modo que a minha peça "O ás de ouros" já começa a me desgostar.
Vou traduzir agora do inglês, para tentar representar com marionetes, uma peçazinha em estilo japonês, muito linda, que se chama “O filho obediente”. Creio que é época de postura de versos, pois tenho a mesa cheia de livros novos. E a minha preguiça é tão imensa que nem estender a mão para alcançá-los me é possível.
Já lhe disse que as fotografias da moça polonesa ainda não resolveram o meu problema fotogênico? Pois não. Talvez o seu marido, o Matos Sequeira tenha mais prática. Mas é que a minha cara é mesmo impossível. Se fico de perfil, pareço um judeu na miséria. De três quartos, sou uma cigana voluntariosa, ou uma cartomante abastada. De frente, uma baiana supernutrida. Na vida real, também: se me enfeito, pareço logo uma Salomé; se não me enfeito, pareço uma aristocrata banida, com montes de dívidas às costas. Ah! estou enjoada de mim. Queria ser cavalo ou passarinho.
Por falar nisso, o Merlim parece que vai ser padre: caíram-lhe as peninhas da cabeça, e ficou de coroa. Calcule que a Matilde, no domingo passado arranjou-lhe uma noiva horrorosa, de rabo amarelo, com uma cara muito reles de passarinho comedor de fruta de quintal. O Merlim teve um acesso de indiferença e de tédio só comparável aos meus. Olhava para ela e para mim. Quando ela ia para um poleiro, saltava para o outro. Depois de lhe dar todas as demonstrações de desprezo, acompanhadas de um silêncio constrangedor, foi para um canto, muito desconfiado. Só faltou mesmo abrir a porta e convidá-la a sair. O que, decerto, como meu amigo, e portanto "gentleman" apesar de passarinho, não seria capaz de fazer. Então, pedi à minha doida filha que retirasse o monstro da gaiola, e ela assim fez, voltando tudo à normalidade, com os beijinhos do costume e as grandes festas em redor do ovo cozido.
Diga-me se sempre vai fazer o seu teatro de bonecos. Seria uma grande iniciativa. Poderia representar Gil Vicente, fazer peças regionais... Aqui, o Luiz Cosme está musicando o arranjo da Nau Catarineta que lhe hei-de mandar por estes dias. Agradeço-lhe muito todas aquelas versões que teve a paciência de me enviar.
Essas papinhas de milho com canela por cima, etc., aqui chamam "mingau". Davam-me muito disso em pequena, tanto de milho (o que você chama carolo deve ser o que por aqui se diz fubá) como de arroz, de maizena, de tanta coisa, sempre com a canela por cima. Uma tia minha, do lado paterno, até me deu um prato antigo, de linda porcelana, com um casal de príncipes no fundo, para me abrir o apetite... Essa me entendia, pois eu, para que os príncipes aparecessem, era mesmo capaz de comer a papa toda...
Sabe o que desejava agora? Meter-me num barco e navegar. Mas não há barcos, não há dinheiro, não há liberdade, não há nada... Tanto mar, à-toa!
Escrevo-lhe muito sem ritmo, desta vez. Com um grande cansaço, apesar de V. dizer de mim tantas coisas maravilhosas! Há tempos, tive uma ideia que nunca me abandona: arranjar um iate, meter dentro os amigos, e andar por aí, só com poesia. Quando os amigos desiludissem, deitava-os à água, ou abandonava-os em alguma praia. Mas para isso era preciso que Deus, o próprio Deus, se fizesse "manager" dessa dispendiosa aventura. E Ele lá se importa comigo!
Vou deixá-lo. e prometo mandar-lhe breve muitas coisas. Quando as cartas demorarem, mande-me prana, calhaus de prana comprimido, porque eu estou mesmo como as aranhas quando se dependuram do fio...
Já lhe agradeci os livros e revistas, com as fotografias e guias turísticos? Chegou tudo bem. Um destes dias escrevo àquele senhor dos frutos sem flor. Meu marido agradece-lhe a revista. Ele está às voltas com assuntos fabulosos, 90% da humanidade existe só para atrapalhar os 10% que trabalham precisamente para esses miseráveis. Tenho vontade de ser cavalo, como lhe dizia. Cavalo com muitas patas. Ou touro. Touro era melhor. Com muitos chifres. Fazia um sarilho medonho. Mas por enquanto tenho de ser isto mesmo: uma criatura boba.
Lembranças à sua Irmã e à sua Filha. E uma festinha à menina loura que lhe segura o prato. Que sibarita V. está ficando!

Saudades da

Cecília

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1 “Em Portugal foram muito apreciadas as maias, nome que evidentemente significa cânticos à Primavera”. Este costume veio do paganismo e conserva-se em algumas freguesias. Maias se chamavam também as flores de giesta que predominavam nas grinaldas que era e ainda é uso porem-se às portas e janelas em várias aldeias, dizendo as velhas aos pequenos que é “para não entrar o Maio em casa” (Maio foi primitivamente consagrado à Maia, mãe de Mercúrio, deus da eloqüência, do comércio e dos ladrões, ele próprio ladrão emérito, segundo as proezas que lhe atribui a Mitologia).
2 José Osório de Oliveira.


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Romanceiro da Inconfidência



Romance XIV ou da Chica da Silva



     (Isso foi lá para os lados

     do Tejuco, onde os diamantes

     transbordavam do cascalho.)





Que andor se atavia

naquela varanda?

É a Chica da Silva:

é a Chica-que-manda!



Cara cor da noite,

olhos cor de estrela.



Vem gente de longe

para conhecê-la.



     (Por baixo da cabeleira,

     tinha a cabeça rapada

     e até dizem que era feia.)



Vestida de tisso,

de raso e de holanda

- é a Chica da Silva:

- é a Chica-que-manda!



Escravas, mordomos

seguem, como um rio,

a dona do dono

do Serro do Frio.



     (Doze negras em redor,

     - como as horas, nos relógios.

     Ela, no meio, era o sol!)



Um rio que, altiva,

dirige e comanda

a Chica da Silva,

a Chica-que-manda.



Esplendem as pedras

por todos os lados:

são flechas em selvas

de leões marchetados.



     (Diamantes eram, sem jaça,

     por mais que muitos quisessem

     dizer que eram pedras falsas.)



Mil luzeiros chispam,

à flexão mais branda

da Chica da Silva,

da Chica-que-manda!



E curvam-se, humildes,

fidalgos farfantes,

à luz dessa incrível

festa de diamantes.



     (Olhava para os reinóis

     e chamava-os “marotinhos”!

     Quem viu desprezo maior?)



Gira a noite, gira,

dourada ciranda

da Chica da Silva,

da Chica-que-manda.



E em tanque de assombro

veleja o navio

da dona do dono

do Serro do Frio.



     (Dez homens o tripulavam,

     para que a negra entendesse

     como andam barcos nas águas.)



Aonde o leva a brisa

sobre a vela panda?

- À Chica da Silva:

à Chica-que-manda.



À Vênus que afaga,

soberba e risonha

as luzentes vagas

do Jequitinhonha.



     (À Rainha de Sabá

     num vinhedo de diamantes

     poder-se-ia comparar.)



Nem Santa Ifigênia,

toda em festa acesa,

brilha mais que a negra,

na sua riqueza.



Contemplai, branquinhas,

na sua varanda,

a Chica da Silva,

a Chica-que-manda!



     (Coisa igual nunca se viu.

     Dom João Quinto, rei famoso,

     não teve mulher assim!)



Romance XV ou das cismas da Chica da Silva



Na sua cama dourada,

Chica da Silva não dorme.

Pensa nas falas do Conde,

pensa no ouro, e desta sorte

aconselha a João Fernandes:

- Hoje, todo o mundo corre,

Senhor, atrás de riquezas:

nem é doutro mal que sofre

esse vosso falso amigo,

esse Conde de má morte.

Quem sabe o que o traz tão longe?

Quais serão as suas ordens?



E o Contratador responde

     (imagino o que dizia):

- O Conde de Valadares

de mágoa e pesar definha,

por ter a família ausente

e a nobre Casa em ruínas.

Aqueles folhelhos de ouro

iluminaram-lhe a vista.

Se é de pobreza que sofre,

que custa, dar-lhe alegria?

Não se há de dizer que a um nobre

não deram socorro as Minas...



Responde a Chica da Silva

     (assim dizem que pensava):

- Estes marotos do Reino

só chegam por estas lavras

para recolher o fruto

das grotas e das gupiaras.

Eles gastando na corte,

e a Morte aqui pelas catas,

desmoronando barrancos,

engrossando as enxurradas...

Não sei que tem este Conde:

não gosto da sua cara!



E assim vão passando os dias.

E o Conde de Valadares,

que chegara tão sombrio

- pela liberalidade

do Contratador Fernandes

vai perdendo seus pesares.

Em caçadas e passeios,

galga serras, desce vales,

manda lapidar diamantes

por flamengo lapidário,

e - ao ter a fortuna feita

adeus, formosos lugares!



E diz a Chica da Silva

ao ricaço do Tejuco:

- Eu neste Conde não creio;

com seus modos não me iludo;

detrás de suas palavras,

anda algum sentido oculto.

Os homens, à luz do dia,

olham bem, mas não vêem muito:

dentro de quatro paredes,

as mulheres sabem tudo.

Deus me perdoe, mas o Conde

vem cá por outros assuntos.



Assim murmurava a Chica.

E as mulheres não se enganam.

João Fernandes escutava-a

mais simples do que uma criança.

Iam girando as bateias,

ia crescendo a abundância,

iam subindo as gupiaras:

braço, almocafre, alavanca

reviravam pela terra

a sementeira de chamas

para as futuras florestas

de fogo que se levantam...



Romance XVI ou da traição do Conde



Já chega um próprio de longe:

já chega um próprio a cavalo,

por entre nuvens de poeira

e montanhas de cascalho,

e a negrada que se volve

de almocafres levantados

e a algazarra de protesto

dos grandes cães alarmados

sob o espanto dos tropeiros,

e a alegria dos vassalos

que esperam novas da Vila.

Chega e apeia-se de um salto.



À porta de João Fernandes,

pára, em demanda do Conde.

Sacode o chapéu e as botas,

conta mentiras de longe,

enquanto o cavalo bebe,

na água, as nuvens do horizonte.

Que novas serão chegadas?

Que novas traz aquele homem?

O Conde a andar pela sala,

com um fundo sulco na fronte.

Soam-lhe os passos nas tábuas

como passadas de bronze.



Mas, entre as doze mulatas

que a servem, resmunga a Chica:

“Oxalá não traga o próprio

más novidades da Vila.

Tenho o coração parado

como se não fosse viva.

Que este maroto, do Reino

ao Tejuco, não viria,

senão por algum segredo,

por alguma fina intriga.

Vamos a ver se minha alma

fala verdade ou mentira.”



Na sala passeia o Conde,

para trás e para diante.

- Por que me levais, amigo?

     (Era a voz de João Fernandes.)

Dei-vos o ouro que quisestes;

ouro vos dei, mais diamantes,

para a Casa dos Meneses

de Castelo Branco e Abranches

não soçobrar arruinada

enquanto andáveis distante.

Como me levais agora

a prestar contas com os Grandes?



Fala o Conde de má morte:

- Ordens são, que hoje recebo...

Fala o Conde mui fingido:

- Padece por vós meu zelo:

de um lado, o dever de amigo,

mas, de outro, a lealdade ao Reino...

João Fernandes não responde:

ouve e recorda em silêncio

o que lhe dissera a Chica,

em tom de pressentimento.

Como as palavras se torcem,

conforme o interesse e o tempo!

     (Como se fazem de honrados

     os Condes, de bolsos cheios!)



Romance XVII ou das lamentações no Tejuco



Ai, que rios caudalosos,

e que montanhas tão altas!

Ai, que perdizes nos campos,

e que rubras madrugadas!

Ai, que rebanhos de negros,

e que formosas mulatas!

Ai, que chicotes tão duros,

e que capelas douradas!

Ai, que modos tão altivos,

e que decisões tão falsas...

Ai, que sonhos tão felizes...

que vidas tão desgraçadas!



E lá seguiu para a Corte

o dono do Serro Frio.

Com suas doze mucamas,

ficava a Chica em suspiros.

Grossas vagas tenebrosas

nascem no humano destino!

Uns, ali, nas rudes catas,

a apodrecerem nos rios,

- e outros, ao longe, com os lucros

dessas minas de martírio.

Ai, que o coração não mente!



Maldito o Conde, e maldito

esse ouro que faz escravos,

esse ouro que faz algemas,

que levanta densos muros

para as grades das cadeias,

que arma nas praças as forcas,

lavra as injustas sentenças,

arrasta pelos caminhos

vítimas que se esquartejam!



     (Doze mucamas em volta

     gemiam com surda pena.

     Pranto e diamantes caídos

     era tudo um mar de estrelas.)



Romance XVIII ou dos velhos do Tejuco



Ainda vai chegar o dia

de nos virem perguntar:

- Quem foi a Chica da Silva,

que viveu neste lugar?



     (Que tudo passa...

     O prazer é um intervalo

     na desgraça...)



Já vereis noutro navio,

levado por homens grandes,

igual a um negro fugido,

o Contratador Fernandes.



     (Que tudo acaba!

     Quem diz que montanha de ouro

     não desaba?)



Se o vento dá no Tejuco,

leva coluna e varanda,

leva a pompa, leva o luxo

e mais a Chica-que-manda.



     (Que tudo engana.

     Gente, só a morte, mesmo,

      é soberana!)



Nós aqui movendo as águas

e as pedras, desta maneira!

- Pois não deixaremos nada:

nem o nome da caveira.



     (Que a nossa vida

     é a mesma coisa que a morte,

     - noutra medida...)



Mas os homens e as mulheres

vivem neste desvario...

Não há febre como a febre

que corta o Serro do Frio...