A literatura constrói-se em torno de um espaço. Veem-se florestas, edifícios, bosques e ruas se sucedendo para dar conta de expressar o que o escritor capta da realidade circundante. Assim, a sétima oficina, que ocorrerá no dia 30/06, às 08h, na sala 08 da UFFS, fará um passeio ao campo, andará pelas cidades. Primeiramente, vai-se adentrar no campo bucólico de Tomás Antônio Gonzaga e sua Marília de Dirceu. Em seguida, vai-se fazer uma crítica ao homem do campo e sua imobilidade de raiz com Urupês, de Monteiro Lobato. Como forma de transição, o poeta português Cesário Verde deslizará entre os ambientes rural e urbano, pinçando instantâneos da paisagem. Por fim, a verdade e a crueza dos seres da selva de pedra e concreto, num conto de Rubem Fonseca.
Marília de Dirceu - Tomás Antônio Gonzaga
PARTE I
Lira I
Eu, Marília, não sou
algum vaqueiro,
Que viva de guardar
alheio gado;
De tosco trato, d’
expressões grosseiro,
Dos frios gelos, e dos
sóis queimado.
Tenho próprio casal, e
nele assisto;
Dá-me vinho, legume,
fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas
tiro o leite,
E mais as finas lãs,
de que me visto.
Graças, Marília bela,
Graças à minha
Estrela!
Eu vi o meu semblante
numa fonte,
Dos anos inda não está
cortado:
Os pastores, que
habitam este monte,
Com tal destreza toco a
sanfoninha,
Que inveja até me tem
o próprio Alceste:
Ao som dela concerto a
voz celeste;
Nem canto letra, que
não seja minha,
Graças, Marília bela,
Graças à minha
Estrela!
Mas tendo tantos dotes
da ventura,
Só apreço lhes dou,
gentil Pastora,
Depois que teu afeto me
segura,
Que queres do que tenho
ser senhora.
É bom, minha Marília,
é bom ser dono
De um rebanho, que
cubra monte, e prado;
Porém, gentil Pastora,
o teu agrado
Vale mais q’um
rebanho, e mais q’um trono.
Graças, Marília bela,
Graças à minha
Estrela!
Os teus olhos espalham
luz divina,
A quem a luz do Sol em
vão se atreve:
Papoula, ou rosa
delicada, e fina,
Te cobre as faces, que
são cor de neve.
Os teus cabelos são
uns fios d’ouro;
Teu lindo corpo
bálsamos vapora.
Ah! Não, não fez o
Céu, gentil Pastora,
Para glória de Amor
igual tesouro.
Graças, Marília bela,
Graças à minha
Estrela!
Leve-me a sementeira
muito embora
O rio sobre os campos
levantado:
Acabe, acabe a peste
matadora,
Sem deixar uma rês, o
nédio gado.
Já destes bens,
Marília, não preciso:
Nem me cega a paixão,
que o mundo arrasta;
Para viver feliz,
Marília, basta
Que os olhos movas, e
me dês um riso.
Graças, Marília bela,
Graças à minha
Estrela!
Irás a divertir-te na
floresta,
Sustentada, Marília,
no meu braço;
Ali descansarei a
quente sesta,
Dormindo um leve sono
em teu regaço:
Enquanto a luta jogam
os Pastores,
E emparelhados correm
nas campinas,
Toucarei teus cabelos
de boninas,
Nos troncos gravarei os
teus louvores.
Graças, Marília bela,
Graças à minha
Estrela!
Depois de nos ferir a
mão da morte,
Ou seja neste monte, ou
noutra serra,
Nossos corpos terão,
terão a sorte
De consumir os dois a
mesma terra.
Na campa, rodeada de
ciprestes,
Lerão estas palavras
os Pastores:
"Quem quiser ser
feliz nos seus amores,
Siga os exemplos, que
nos deram estes."
Graças, Marília bela,
Graças à minha
Estrela!
Lira
XIX
Enquanto pasta alegre o manso gado,
Minha bela Marília, nos sentemos
À sombra deste cedro levantado.
Um pouco meditemos
Na regular beleza,
Que em tudo quanto vive, nos descobre
A sábia natureza.
Atende, como aquela vaca preta
O novilhinho seu dos mais separa,
E o lambe, enquanto chupa a lisa teta.
Atende mais, ó cara,
Como a ruiva cadela
Suporta que lhe morda o filho o corpo,
E salte em cima dela.
Repara, como cheia de ternura
Entre as asas ao filho essa ave aquenta,
Como aquela esgravata a terra dura,
E os seus assim sustenta;
Como se encoleriza,
E salta sem receio a todo o vulto,
Que junto deles pisa.
Que gosto não terá a esposa amante,
Quando der ao filhinho o peito brando,
E refletir então no seu semblante!
Enquanto pasta alegre o manso gado,
Minha bela Marília, nos sentemos
À sombra deste cedro levantado.
Um pouco meditemos
Na regular beleza,
Que em tudo quanto vive, nos descobre
A sábia natureza.
Atende, como aquela vaca preta
O novilhinho seu dos mais separa,
E o lambe, enquanto chupa a lisa teta.
Atende mais, ó cara,
Como a ruiva cadela
Suporta que lhe morda o filho o corpo,
E salte em cima dela.
Repara, como cheia de ternura
Entre as asas ao filho essa ave aquenta,
Como aquela esgravata a terra dura,
E os seus assim sustenta;
Como se encoleriza,
E salta sem receio a todo o vulto,
Que junto deles pisa.
Que gosto não terá a esposa amante,
Quando der ao filhinho o peito brando,
E refletir então no seu semblante!
Quando, Marília, quando
Disser consigo: "É esta
"De teu querido pai a mesma barba,
"A mesma boca, e testa."
Que gosto não terá a mãe, que toca,
Quando o tem nos seus braços, c’o dedinho
Nas faces graciosas, e na boca
Do inocente filhinho!
Quando, Marília bela,
O tenro infante já com risos mudos
Começa a conhecê-la!
Que prazer não terão os pais ao verem
Com as mães um dos filhos abraçados;
Jogar outros luta, outros correrem
Nos cordeiros montados!
Que estado de ventura!
Que até naquilo, que de peso serve,
Inspira Amor, doçura.
Jeca
Tatu – Monteiro Lobato
Jeca
Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé.
Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia e
de vários filhinhos pálidos e tristes.
Jeca
Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de
palha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma. Ia ao mato caçar, tirar
palmitos, cortar cachos de brejaúva, mas não tinha idéia de
plantar um pé de couve atras da casa. Perto um ribeirão, onde ele
pescava de vez em quando uns lambaris e um ou outro bagre. E assim ia
vivendo.
Dava
pena ver a miséria do casebre. Nem móveis nem roupas, nem nada que
significasse comodidade. Um banquinho de três pernas, umas peneiras
furadas, a espingardinha de carregar pela boca, muito ordinária, e
só.
Todos
que passavam por ali murmuravam: Que grandíssimo preguiçoso!
Jeca
Tatu era tão fraco que quando ia lenhar vinha com um feixinho que
parecia brincadeira. E vinha arcado, como se estivesse carregando um
enorme peso.
Por
que não traz de uma vez um feixe grande? Perguntaram-lhe um dia.
Jeca
Tatu coçou a barbicha rala e respondeu:
Não
paga a pena.
Tudo
para ele não pagava a pena. Não pagava a pena consertar a casa, nem
fazer uma horta, nem plantar arvores de fruta, nem remendar a roupa.
Só pagava a pena beber pinga.
Por
que você bebe, Jeca? Diziam-lhe.
Bebo
para esquecer.
Esquecer
o quê?
Esquecer
as desgraças da vida.
E
os passantes murmuravam:
Além
de vadio, bêbado...
Jeca
possuía muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá-la.
Plantava todos os anos uma rocinha de milho, outra de feijão, uns
pés de abóbora e mais nada. Criava em redor da casa um ou outro
porquinho e meia dúzia de galinhas. Mas o porco e as aves que
cavassem a vida, porque Jeca não lhes dava o que comer. Por esse
motivo o porquinho nunca engordava, e as galinhas punham poucos ovos.
Jeca
possuía ainda um cachorro, o Brinquinho, magro e sarnento, mas bom
companheiro e leal amigo.
Brinquinho
vivia cheio de bernes no lombo e muito sofria com isso. Pois apesar
dos ganidos do cachorro, Jeca não se lembrava de lhe tirar os
bernes. Por que? Desânimo, preguiça...
As
pessoas que viam aquilo franziam o nariz. Que criatura imprestável!
Não serve nem para tirar berne de cachorro...
Jeca
só queria beber pinga e espichar-se ao sol no terreiro. Ali ficava
horas, com o cachorrinho rente; cochilando. A vida que rodasse, o
mato que crescesse na roça, a casa que caísse. Jeca não queria
saber de nada. Trabalhar não era com ele.
Perto
morava um italiano já bastante arranjado, mas que ainda assim
trabalhava o dia inteiro. Por que Jeca não fazia o mesmo?
Quando
lhe perguntavam isso, ele dizia:
Não
paga a pena plantar. A formiga come tudo.
Mas
como é que o seu vizinho italiano não tem formiga no sítio?
É
que ele mata.
E
porque você não faz o mesmo?
Jeca
coçava a cabeça, cuspia por entre os dentes e vinha sempre com a
mesma história:
Quá!
Não paga a pena...
Além
de preguiçoso, bêbado; e além de bebado, idiota, era o que todos
diziam.
Um
dia um doutor portou lá por causa da chuva e espantou-se de tanta
miséria. Vendo o caboclo tão amarelo e chucro, resolveu examiná-lo.
Amigo
Jeca, o que você tem é doença.
Pode
ser. Sinto uma canseira sem fim, e dor de cabeça, e uma pontada aqui
no peito que responde na cacunda.
Isso
mesmo. Você sofre de anquilostomiase.
Anqui...
o quê?
Sofre
de amarelão, entende? Uma doença que muitos confundem com a
maleita. Essa tal maleita não é a sezão?
Isso
mesmo. Maleita, sezão, febre palustre ou febre intermitente: tudo é
a mesma coisa, está entendendo? A sezão também produz anemia,
moleza e esse desânimo do amarelão; mas é diferente. Conhece-se a
maleita pelo arrepio, ou calafrio que dá, pois é uma febre que vem
sempre em horas certas e com muito suor. O que você tem é outra
coisa. É amarelão.
O
doutor receitou-se o remédio adequado; depois disse: "E trate
de comprar um par de botinas e nunca mais me ande descalço nem beba
pinga, ouviu?" Ouvi, sim, senhor!
Pois
é isso, rematou o doutor, tomando o chapéu. A chuva passou e vou-me
embora. Faça o que mandei, que ficará forte, rijo e rico como o
italiano. Na semana que vem estarei de volta. Até por lá, sêo
doutor!
Jeca
ficou cismando. Não acreditava muito nas palavras da ciência, mas
por fim resolveu comprar os remédios, e também um par de botinas
ringideiras.
Nos
primeiros dias foi um horror. Ele andava pisando em ovos. Mas
acostumou-se, afinal...
Quando
o doutor reapareceu, Jeca estava bem melhor, graças ao remédio
tomado. O doutor mostrou-lhe com uma lente o que tinha saído das
suas tripas.
Veja,
sêo Jeca, que bicharia tremenda estava se criando na sua barriga!
São os tais anquilostomos, uns bichinhos dos lugares úmidos, que
entram pelos pés, vão varando pela carne adentro até alcançarem
os intestinos. Chegando lá, grudam-se nas tripas e escangalham com o
freguês. Tomando este remédio você bota p'ra fora todos os
anquilostomos que tem no corpo. E andando sempre calçado, não deixa
que entrem os que estão na terra. Assim fica livre da doença pelo
resto da vida.
Jeca
abriu a boca, maravilhado. Os anjos digam amém, sêo doutor!
Mas
Jeca não podia acreditar numa coisa: que os bichinhos entrassem pelo
pé. Ele era "positivo" e dos tais que "só vendo".
O doutor resolveu abrir-lhe os olhos. Levou-o a um lugar úmido,
atrás da casa, e disse:
Tire
a botina e ande um pouco por aí. Jeca obedeceu.
Agora
venha cá. Sente-se. Bote o pé em cima do joelho. Assim. Agora
examine a pela com esta lente.
Jeca
tomou a lente, olhou e percebeu vários vermes pequeninos que já
estavam penetrando na sua pele, através dos poros. O pobre homem
arregalou os olhos assombrado.
E
não é que é mesmo? Quem "havera" de dizer!...
Pois
é isso, sêo Jeca, e daqui por diante não duvide mais do que a
ciência disser.
Nunca
mais! Daqui por diante nha ciência está dizendo e Jeca está
jurando em cima! T'esconjuro! E pinga, então, nem p'ra remédio...
Tudo
o que o doutor disse aconteceu direitinho! Três meses depois ninguém
mais conhecia o Jeca.
A
preguiça desapareceu. Quando ele agarrava no machado, as arvores
tremiam de pavor. Era pan, pan, pan... horas seguidas, e os maiores
paus não tinham remédio senão cair.
Jeca,
cheio de coragem, botou abaixo um capoeirão para fazer uma roça de
três alqueires. E plantou eucaliptos nas terras que não se
prestavam para cultura. E consertou todos os buracos da casa. E fez
um chiqueiro para os porcos. E um galinheiro para as aves. O homem
não parava, vivia a trabalhar com fúria que espantou até o seu
vizinho italiano.
Descanse
um pouco, homem! Assim você arrebenta... diziam os passantes.
Quero
ganhar o tempo perdido, respondia ele sem largar do machado. Quero
tirar a prosa do "intaliano".
Jeca,
que era um medroso, virou valente. Não tinha mais medo de nada, nem
de onça! Uma vez, ao entrar no mato, ouviu um miado estranho.
Onça!
Exclamou ele. É onça e eu aqui sem nem uma faca!...
Mas
não perdeu a coragem. Esperou a onça, de pé firme. Quando a fera o
atacou, ele ferrou-se tamanho murro na cara, que a bicha rolou no
chão, tonta. Jeca avançou de novo, agarrou-a pelo pescoço e
estrangulou-a
Conheceu,
papuda? Você pensa então que está lidando com algum pinguço
opilado? Fique sabendo que tomei remédio do bom e uso botina
ringideira...
A
companheira da onça, ao ouvir tais palavras, não quis saber de
histórias - azulou! Dizem que até hoje está correndo...
Ele,
que antigamente só trazia três pausinhos, carregava agora cada
feixe de lenha que metia medo. E carregava-os sorrindo, como se o
enorme peso não passasse de brincadeira.
Amigo
Jeca, você arrebenta! Diziam-lhe. Onde se viu carregar tanto pau de
uma vez?
Já
não sou aquele de dantes! Isto para mim agora é canja, respondia o
caboclo sorrindo.
Quando
teve de aumentar a casa, foi a mesma coisa. Derrubou no mato grossas
perobas, atorou-as, lavrou-as e trouxe no muque para o terreiro as
toras todas. Sozinho!
Quero
mostrar a esta paulama quanto vale um homem que tomou remédio de Nha
Ciência, que usa botina cantadeira e não bebe nem um só martelinho
de cachaça.
O
italiano via aquilo e coçava a cabeça.
Se
eu não tropicar direito, este diabo me passa na frente, Per Bacco!
Dava
gosto ver as roças do Jeca. Comprou arados e bois, e não plantava
nada sem primeiro afofar a terra. O resultado foi que os milhos
vinham lindos e o feijão era uma beleza.
O
italiano abria a boca, admirado, e confessava nunca Ter visto roças
assim.
E
Jeca já não plantava rocinhas como antigamente. Só queria saber de
roças grandes, cada vez maiores, que fizessem inveja no bairro.
E
se alguém lhe perguntava:
Mas
para que tanta roça, homem? Ele respondia:
É
que agora quero ficar rico. Não me contento com trabalhar para
viver. Quero cultivar todas as minhas terras, e depois formar aqui
uma enorme fazenda. E hei de ser até coronel...
E
ninguém duvidava mais. O italiano dizia:
E
forma mesmo! E vira mesmo coronel! Per la Madonna!...
Por
esse tempo o doutor passou por lá e ficou admiradíssimo da
transformação do seu doente.
Esperara
que ele sarasse, mas não contara com tal mudança.
Jeca
o recebeu de braços abertos e apresentou-o à mulher e aos filhos.
Os
meninos cresciam viçosos, e viviam brincando contentes como
passarinhos.
E
toda gente ali andava calçada. O caboclo ficara com tanta fé no
calçado, que metera botinas até nos pés dos animais caseiros!
Galinhas,
patos, porcos, tudo de sapatinho nos pés! O galo, esse andava de
bota e espora!
Isso
também é demais, sêo Jeca, disse o doutor. Isso é contra a
natureza!
Bem
sei. Mas quero dar um exemplo a esta caipirada bronca. Eles aparecem
por aqui, vêem isso e não se esquecem mais da história.
Em
pouco tempo os resultados foram maravilhosos. A porcada aumentou de
tal modo, que vinha gente de longe admirar aquilo. Jeca adquiriu um
caminhão Ford, e em vez de conduzir os porcos ao mercado pelo
sistema antigo, levava-os de auto, num instantinho, buzinando pela
estrada afora, fon-fon! fon-fon!...
As
estradas eram péssimas; mas ele consertou-as à sua custa. Jeca
parecia um doido. Só pensava em melhoramentos, progressos, coisas
americanas. Aprendeu logo a ler, encheu a casa de livros e por fim
tomou um professor de inglês.
Quero
falar a língua dos bifes para ir aos Estados Unidos ver como é lá
a coisa.
O
seu professor dizia:
O
Jeca só fala inglês agora. Não diz porco; é pig. Não diz
galinha! É hen... Mas de álcool, nada. Antes quer ver o demônio do
que um copinho da "branca"...
Jeca
só fumava charutos fabricados especialmente para ele, e só corria
as roças montado em cavalos árabes de puro sangue.
Quem
o viu e quem o vê! Nem parece o mesmo. Está um "estranja"
legítimo, até na fala.
Na
sua fazenda havia de tudo. Campos de alfafa. Pomares belíssimos com
quanta fruta há no mundo. Até criação de bicho da seda; Jeca
formou um amoreiral que não tinha fim.
Quero
que tudo aqui ande na seda, mas seda fabricada em casa. Até os sacos
aqui da fazenda têm que ser de seda, para moer os invejosos...
E
ninguém duvidava de nada.
O
homem é mágico, diziam os vizinhos. Quando assenta de fazer uma
coisa, faz mesmo, nem que seja um despropósito...
A
fazenda do Jeca tornou-se famosa no país inteiro. Tudo ali era por
meio do rádio e da eletricidade. Jeca, de dentro do seu escritório,
tocava num botão e o cocho do chiqueiro se enchia automaticamente de
rações muito bem dosadas. Tocava outro botão, e um repuxo de milho
atraia todo o galinhame...
Suas
roças eram ligadas por telefones. Da cadeira de balanço, na
varanda, ele dava ordens aos feitores lá longe.
Chegou
a mandar buscar no Estados Unidos um telescópio.
Quero
aqui desta varanda ver tudo que se passa em minha fazenda.
E
tanto fez, que viu. Jeca instalou os aparelhos e assim pode, da sua
varanda, com o charutão na boca, não só falar por meio do rádio
para qualquer ponto da fazenda, como ainda ver, por meio do
telescópio, o que os camaradas estavam fazendo.
Ficou
rico e estimado, como era natural; mas não parou aí. Resolveu
ensinar o caminho da saúde aos caipiras das redondezas. Para isso
montou na fazenda e vilas próximas vários Postos de Maleita, onde
tratava os enfermos de sezões; e também Postos de Anquilostomose,
onde curava os doentes de amarelão e outras doenças causadas por
bichinhos nas tripas.
O
seu entusiasmo era enorme. "Hei de empregar toda a minha fortuna
nesta obra de saúde geral, dizia ele. O meu patriotismo é este.
Minha divisa: Curar gente. Abaixo a bicharia que devora o
brasileiro..."
E
a curar gente da roça passou Jeca toda a sua vida. Quando morreu,
aos 89 anos, não teve estátua, nem grandes elogios nos jornais. Mas
ninguém ainda morreu de consciência tranqüila. Havia cumprido o
seu dever até o fim.
Meninos:
nunca se esqueçam desta história; e, quando crescerem, tratem de
imitar o Jeca. Se forem fazendeiros, procurem curar os camaradas da
fazenda. Além de ser para eles um grande benefício, é para você
um alto negócio. Você verá o trabalho dessa gente produzir três
vezes mais.
Um
país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de habitantes. Vale
pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente. Ter saúde é
a grande qualidade de um povo. Tudo mais vem daí.
MANHÃS BRUMOSAS
(Cesário Verde)
Aquela, cujo amor me
causa alguma pena,
Põe o chapéu ao lado,
abre o cabelo à banda,
E com a forte voz
cantada com que ordena,
Lembra-me, de manhã,
quando nas praias anda,
Por entre o campo e o
mar, bucólica, morena,
Uma pastora audaz da
religiosa Irlanda.
Que línguas fala? A
ouvir-lhe as inflexões inglesas,
- Na névoa, a caça,
as pescas, os rebanhos! -
Sigo-lhe os altos pés
por estas asperezas;
E o meu desejo nada em
época de banhos,
E, ave de arribação,
ele enche de surpresas
Seus olhos de perdiz,
redondos e castanhos.
As irlandesas têm
soberbos desmazelos!
Ela descobre assim, com
lentidões ufanas,
Alta, escorrida,
abstrata, os grossos tornozelos;
E como aquelas são
marítimas, serranas,
Sugere-se o naufrágio,
as músicas, os gelos
E as redes, a manteiga,
os queijos, as choupanas.
Parece um rural boy!
Sem brincos nas orelhas,
Traz um vestido claro a
comprimir-lhe os flancos,
Botões a tiracolo e
aplicações vermelhas;
E à roda, num país de
prados e barrancos,
Se as minhas mágoas
vão, mansíssimas ovelhas,
Correm os seus desdéns,
como vitelos brancos.
E aquela, cujo amor me
causa alguma pena,
Põe o chapéu ao lado,
abre o cabelo à banda,
E com a forte voz
cantada com que ordena,
Lembra-me, de manhã,
quando nas praias anda,
Por entre o campo e o
mar, católica, morena,
Uma pastora audaz da
religiosa Irlanda.
NUM BAIRRO MODERNO
(Cesário Verde)
A Manuel Ribeiro
Dez horas da manhã; os
transparentes
Matizam uma casa
apalaçada;
Pelos jardins
estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com
brancuras quentes,
A larga rua
macadamizada.
Rez-de-chaussée
repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as
persianas,
E dum ou doutro, em
quartos estucados,
Ou entre a rama dos
papéis pintados,
Reluzem, num almoço,
as porcelanas.
Como é saudável ter o
seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu
descia,
Sem muita pressa, para
o meu emprego,
Aonde agora quase
sempre chego
Com as tonturas duma
apoplexia.
E rota, pequenina,
azafamada,
Notei de costas uma
rapariga,
Que no xadrez marmóreo
duma escada,
Como um retalho da
horta aglomerada
Pousara, ajoelhando, a
sua giga.
E eu, apesar do sol,
examinei-a:
Pôs-se de pé;
ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão
azul da meia
Se ela se curva,
esguelhada, feia,
E pendurando os seus
bracinhos brancos.
Do patamar responde-lhe
um criado:
"Se te convém,
despacha; não converses.
Eu não dou mais."
E muito descansado,
Atira um cobre lívido,
oxidado,
Que vem bater nas faces
duns alperces.
Subitamente - que visão
de artista! -
Se eu transformasse os
simples vegetais,
A luz do Sol, o intenso
colorista
Num ser humano que se
mova e exista
Cheio de belas
proporções carnais?!
Bóiam aromas, fumos de
cozinha;
Com o cabaz às costas,
e vergando,
Sobem padeiros, claros
de farinha;
E às portas, uma ou
outra campainha
Toca, frenética, de
vez em quando.
E eu recompunha, por
anatomia,
Um novo corpo orgânico,
aos bocados.
Achava os tons e as
formas. Descobria
Uma cabeça numa
melancia,
E nuns repolhos seios
injetados.
As azeitonas, que nos
dão o azeite,
Negras e unidas, entre
verdes folhos,
São tranças dum
cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus,
da cor do leite,
E os cachos de uvas -
os rosários de olhos.
Há colos, ombros,
bocas, um semblante
Nas posições de certo
frutos. E entre
As hortaliças, túmido,
fragante,
Como alguém que tudo
aquilo jante,
Surge um melão, que me
lembrou um ventre.
E como um feto, enfim,
que se dilate,
Vi nos legumes carnes
tentadoras,
Sangue na ginja vivida,
escarlate,
Bons corações
pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros,
nas cenouras.
O Sol dourava o céu. E
a regateira,
Como vendera a sua
fresca alface
E dera o ramo de
hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me,
prazenteira:
"Não passa mais
ninguém!... Se me ajudasse?!..."
Eu acerquei-me dela,
sem desprezo;
E, pelas duas asas a
quebrar,
Nós levantamos todo
aquele peso
Que ao chão de pedra
resistia preso,
Com um enorme esforço
muscular.
"Muito obrigada!
Deus lhe dê saúde!"
E recebi, naquela
despedida,
As forças, a alegria,
a plenitude,
Que brotam dum excesso
de virtude
Ou duma digestão
desconhecida.
E enquanto sigo para o
lado oposto,
E ao longe rodam umas
carruagens,
A pobre, afasta-se, ao
calor de agosto,
Descolorida nas maçãs
do rosto,
E sem quadris na saia
de ramagens.
Um pequerrucho rega a
trepadeira
Duma janela azul; e,
com o ralo
Do regador, parece que
joeira
Ou que borrifa
estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas
a incensá-lo.
Chegam do gigo
emanações sadias,
Ouço um canário - que
infantil chilrada!
Lidam ménages entre as
gelosias,
E o sol estende, pelas
frontarias,
Seus raios de laranja
destilada.
E pitoresca e audaz, na
sua chita,
O peito erguido, os
pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre
que me incita,
Ela apregoa, magra,
enfezadita,
As suas couves
repolhudas, largas.
E, como as grossas
pernas dum gigante,
Sem tronco, mas
atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre
caminhante,
Sobre a verdura
rústica, abundante,
Duas frugais abóboras
carneiras.
Passeio Noturno - Rubem Fonseca
Parte I
Cheguei
em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos,
pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na
cama, um copo de uísque na mesa de cabeceira, disse, sem tirar os
olhos das cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa:
minha filha no quarto dela treinando impostação de voz, a música
quadrifônica do quarto do meu filho. Você não vai largar essa
mala?, perguntou minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho,
você precisa aprender a relaxar. Fui para a biblioteca, o lugar da
casa onde gostava de ficar isolado e como sempre não fiz nada. Abri
o volume de pesquisas sobre a mesa, não via as letras e números, eu
esperava apenas. Você não pára de trabalhar, aposto que os teus
sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a
minha mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o
jantar? A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescido, eu
e a minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta,
ela estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando
estávamos no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro na hora do
licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos uma conta bancária
conjunta. Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela
não ia, era hora da novela. Não sei que graça você acha em
passear de carro todas as noites, também aquele carro custou uma
fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos
bens materiais, minha mulher respondeu. Os carros dos meninos
bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu tirasse o meu. Tirei
os carros dos dois, botei na rua, tirei o meu, botei na rua, coloquei
os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras
todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os pára-choques
salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado,
senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na
ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio,
escondido no capô aerodinâmico. Saí, como sempre sem saber para
onde ir, tinha que ser uma rua deserta nesta cidade que tem mais
gente do que moscas. Na avenida Brasil, ali não podia ser, muito
movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras,
o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia grande
diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a
ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era
maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse
menos emocionante, por ser mais fácil. Ela caminhava apressadamente,
carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou de
quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na
calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir
uma grande dose de perícia
Apaguei
as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima
dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio.
Peguei a mulher acima dos joelhos, bem nomeio das duas pernas, um
pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do
impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a
esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei
com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia
de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu para ver que o
corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de
sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio.
Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve
pelos pára-lamas, os pára-choques sem marca. Poucas pessoas, no
mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.
A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está
mais calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando
fixamente o vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi,
amanhã vou ter um dia terrível na companhia.
Parte
II
Eu
ia para casa quando um carro encostou no meu, buzinando
insistentemente. Uma mulher dirigia, abaixei os vidros do carro para
entender o que ela dizia. Uma lufada de ar quente entrou com o som da
voz dela: Não está mais conhecendo os outros? Eu nunca tinha visto
aquela mulher. Sorri polidamente. Outros carros buzinaram atrás dos
nossos. A avenida Atlântica, às sete horas da noite, é muito
movimentada. A mulher, movendo-se no banco do seu carro, colocou o
braço direito para fora e disse, olha um presentinho para você.
Estiquei meu braço e ela colocou um papel na minha mão. Depois
arrancou com o carro, dando uma gargalhada. Guardei o papel no bolso.
Chegando em casa, fui ver o que estava escrito. Ângela, 287-3594.À
noite, saí, como sempre faço. No dia seguinte telefonei. Uma mulher
atendeu. Perguntei se Ângela estava. Não estava. Havia ido à aula.
Pela voz, via-se que devia ser a empregada. Perguntei se Ângela era
estudante. Ela é artista, respondeu a mulher. Liguei mais tarde.
Ângela atendeu. Sou aquele cara do Jaguar preto, eu disse. Você
sabe que eu não consegui identificar o seu carro? Apanho você às
nove horas para jantarmos, eu disse. Espera aí, calma. O que foi que
você pensou de mim? Nada. Eu laço você na rua e você não pensou
nada? Não. Qual é o seu endereço? Ela morava na Lagoa, na curva do
Cantagalo. Um bom lugar. Estava na porta me esperando. Perguntei onde
queria jantar. Ângela respondeu que em qualquer restaurante, desde
que fosse fino. Ela estava muito diferente. Usava uma maquiagem
pesada, que tornava o seu rosto mais experiente, menos humano. Quando
telefonei da primeira vez disseram que você tinha ido à aula. Aula
de quê?, eu disse. Impostação de voz. Tenho uma filha que também
estuda impostação de voz. Você é atriz, não é? Sou. De cinema.
Eu gosto muito de cinema. Quais foram os filmes que você fez? Só
fiz um, que está agora em fase de montagem. O nome é meio bobo, As
virgens desvairadas, não é um filme muito bom, mas estou começando,
posso esperar, tenho só vinte anos. Na semi-escuridão do carro ela
parecia ter vinte e cinco. Parei o carro na Bartolomeu Mitre e fomos
andando a pé na direção do restaurante Mário, na rua Ataulfo de
Paiva. Fica muito cheio em frente ao restaurante, eu disse. O
porteiro guarda o carro, você não sabia?, ela disse. Sei até
demais. Uma vez ele amassou o meu. Quando entramos, Ângela lançou
um olhar desdenhoso sobre as pessoas que estavam no restaurante. Eu
nunca havia ido àquele lugar. Procurei ver algum conhecido. Era cedo
e havia poucas pessoas. Numa mesa um homem de meia-idade com um rapaz
e uma moça. Apenas três outras mesas estavam ocupadas, com casais
entretidos em suas conversas. Ninguém me conhecia. Ângela pediu um
martíni. Você não bebe?, Ângela perguntou. Às vezes. Agora diga,
falando sério, você não pensou nada mesmo, quando eu te passei o
bilhete? Não. Mas se você quer, eu penso agora, eu disse. Pensa,
Ângela disse. Existem duas hipóteses. A primeira é que você me
viu no carro e se interessou pelo meu perfil. Você é uma mulher
agressiva, impulsiva e decidiu me conhecer. Uma coisa instintiva.
Apanhou um pedaço de papel arrancado de um caderno e escreveu
rapidamente o nome e o telefone. Aliás quase não deu para eu
decifrar o nome que você escreveu. E a segunda hipótese? Que você
é uma puta e sai com uma bolsa cheia de pedaços de papel escritos
com o seu nome e o telefone. Cada vez que você encontra um sujeito
num carro grande, com cara de rico e idiota, você dá o número para
ele. Para cada vinte papelinhos distribuídos, uns dez telefonam para
você. E qual a hipótese que você escolhe?, Ângela disse. A
segunda. Que você é uma puta, eu disse. Ângela ficou bebendo o
martíni como se não tivesse ouvido o que eu havia dito. Bebi minha
água mineral. Ela olhou para mim, querendo demonstrar sua
superioridade, levantando a sobrancelha - era má atriz, via-se que
estava perturbada - e disse: você mesmo reconheceu que era um
bilhete escrito às pressas dentro do carro, quase ilegível. Uma
puta inteligente prepararia todos os bilhetinhos em casa, dessa
maneira, antes de sair, para enganar os seus fregueses, eu disse. E
se eu jurasse a você que a primeira hipótese é a verdadeira. Você
acreditaria? Não. Ou melhor, não me interessa, eu disse. Como que
não interessa? Ela estava intrigada e não sabia o que fazer. Queria
que eu dissesse algo que a ajudasse a tomar uma decisão.
Simplesmente não interessa. Vamos jantar, eu disse. Com um gesto
chamei o maître. Escolhemos a comida. Ângela tomou mais dois
martínis. Nunca fui tão humilhada em minha vida. A voz de Ângela
soava ligeiramente pastosa. Eu se fosse você não bebia mais, para
poder ficar em condições de fugir de mim, na hora em que for
preciso, eu disse. Eu não quero fugir de você, disse Ângela
esvaziando de um gole o que restava na taça. Quero outro. Aquela
situação, eu e ela dentro do restaurante, me aborrecia. Depois ia
ser bom. Mas conversar com Ângela não significava mais nada para
mim, naquele momento interlocutório. O que é que você faz?
Controlo a distribuição de tóxicos na zona sul, eu disse. Isso é
verdade? Você não viu o meu carro? Você pode ser um industrial.
Escolhe a sua hipótese. Eu escolhi a minha, eu disse. Industrial.
Errou. Traficante. E não estou gostando desse facho de luz sobre a
minha cabeça. Me lembra as vezes em que fui preso. Não acredito
numa só palavra do que você diz. Foi a minha vez de fazer uma
pausa. Você tem razão. É tudo mentira. Olha bem para o meu rosto.
Vê se você consegue descobrir alguma coisa, eu disse. Ângela tocou
de leve no meu queixo, puxando meu rosto para o raio de luz que
descia do teto e me olhou imensamente. Não vejo nada. Teu rosto
parece o retrato de alguém fazendo uma pose, um retrato amigo, de um
desconhecido, disse Ângela: Ela também parecia o retrato antigo de
um desconhecido. Olhei o relógio. Vamos embora?, eu disse. Entramos
no carro. Às vezes a gente pensa que uma coisa vai dar certo e dá
errado, disse Ângela. O azar de um é a sorte do outro, eu disse.
A
lua punha na lagoa uma esteira prateada que acompanhava o carro.
Quando eu era menino e viajava de noite a lua sempre me acompanhava,
varando as nuvens, por mais que o carro corresse. Vou deixar você um
pouco antes da sua casa, eu disse. Por quê? Sou casado. O irmão da
minha mulher mora no teu edifício. Não é aquele que fica na curva?
Não gostaria que ele me visse. Ele conhece o meu carro. Não há
outro igual no Rio. A gente não vai se ver mais?, Ângela perguntou.
Acho difícil. Todos os homens se apaixonam por mim. Acredito. E você
não é lá essas grandes coisas. O teu carro é melhor do que você,
disse Ângela. Um completa o outro, eu disse. Ela saltou. Foi andando
pela calçada, lentamente, fácil demais, e ainda por cima mulher,
mas eu tinha que ir logo para casa, já estava ficando tarde. Apaguei
as luzes e acelerei o carro. Tinha que bater e passar por cima. Não
podia correr o risco de deixá-la viva. Ela sabia muita coisa a meu
respeito, era a única pessoa que havia visto o meu rosto, entre
todas as outras. E conhecia também o meu carro. Mas qual era o
problema? Ninguém havia escapado. Bati em Ângela com o lado
esquerdo do pára-lama, jogando o seu corpo um pouco adiante, e
passei, primeiro com a roda da frente - e senti o som surdo da frágil
estrutura do corpo se esmigalhando - e logo atropelei com a roda
traseira, um golpe de misericórdia, pois ela já estava liquidada,
apenas talvez ainda sentisse um distante resto de dor e perplexidade.
Quando cheguei em casa minha mulher estava vendo televisão, um filme
colorido, dublado. Hoje você demorou mais. Estava muito nervoso?,
ela disse. Estava. Mas já passou. Agora vou dormir. Amanhã vou ter
um dia terrível na companhia.
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