Quem sou eu

O projeto "Longa jornada livro adentro: a análise de textos literários" visa incentivar a leitura e a interpretação de textos de diferentes épocas e estilos. O grupo fará oficinas quinzenais, aos sábados pela manhã, em que se debaterão obras, tendências e outros assuntos do mundo da literatura. Aqui, você confere os tópicos em pauta, os principais itens discutidos nas reuniões e a organização para os encontros futuros. As oficinas se realizarão no auditório da UFFS.

domingo, 6 de maio de 2012

Terceira Oficina: Viagens deste mundo e do outro

Hamlet disse a Horácio, "há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia". A frase não é nova, mas também não é de hoje a preocupação do homem com o que há no outro lado. Desde Shakespeare (e antes dele), a literatura vem servindo como uma espiada no que pode ocorrer lá: Deus (ou deuses), demônios e anjos, seres sobrenaturais. Na terceira oficina, a se realizar no dia 12/05, às 08 horas, observar-se-á essa interação entre o mundo dos vivos e os seres do outro mundo. Inicialmente, a crônica de Rubem Braga "Eu e Bebu na hora neutra da madrugada" mostra um nova forma de ver o Diabo. Em seguida, voltando aos tempos medievais, Gil Vicente constrói uma alegoria das virtudes e defeitos humanos através de seu Auto da Barca do Inferno. Como terceiro texto, Cruz e Sousa mostrará um Anjo Gabriel envolto em luz, imagens e símbolos. Por fim, no conto de Machado de Assis, "A Igreja do Diabo", ocorre a total inversão das religiões, e como o homem se portaria diante dessa nova situações.




Eu e Bebu na hora neutra da Madrugada - Rubem Braga

- Eu e Bebu na “hora neutra da madrugada” . . .
Muitos homens, e até senhoras, já receberam a visita do Diabo, e conversaram com ele de um modo elegante e paradoxal. Centenas de escritores sem assunto inventaram uma palestra com o Diabo. Quanto a mim, o caso é diferente. Ele não entrou subitamente em meu quarto, não apareceu pelo buraco da fechadura, nem sob a luz vermelha do abajur. Passou um dia inteiro comigo. Descemos juntos o elevador, andamos pelas ruas, trabalhamos na Redação do Jornal e comemos juntos.

A principio confesso que estava um pouco inquieto. Quando fui comprar cigarros, receei que ele dirigisse algum galanteio baixo à moça da tabacaria. É uma senhorita de olhos (cor) de garapa e cabelos castanhos muito simples, porém muito bonitos que eu conheço e que me conhece, embora a gente não se cumprimente. Mas o Diabo se comportou honestamente. O dia todo – era um sábado – correu sem novidade. Ele esteve ao meu lado na mesa de trabalho na Redação, no restaurante, no engraxate, no salão do barbeiro. Eu lhe paguei o cafezinho; ele me pagou um refrigerante.

À tarde, eu já não o chamava de “Belzebu”, mas apenas de “Bebu”, e ele me chamava simplesmente de “Rubem”. Nossa intimidade caminhava rapidamente, mesmo sem a gente esperar. Quando um cego nos pediu esmola, dei dois reais. É meu hábito, sempre dou dois reais. Ele deu uma nota de dez reais, não sei se por veneta ou porque não tinha mais miúdo. Conversamos pouco; não havia assunto.

À noite, depois do jantar, fomos ao cinema. . . Outra vez me voltou a inquietude que sentira pela manhã. Por coincidência, ele ficou sentado junto a duas mocinhas que eu conhecia vagamente, por serem amigas de uma prima que tenho no subúrbio. Temi que ele fosse inconveniente; eu é que ficaria constrangido. Vigiei-o durante a metade da fita, mas ele estava sossegado em sua cadeira; tranqüilizei-me. Foi então que reparei que ao meu lado esquerdo sentara-se uma moça que me pareceu muito bonita. Observei-a na penumbra. A sua pele era morena, e os cabelos lisos, negros e longos. Sentia a tepidez de seu corpo. Ela acompanhava o filme com muita atenção. Lentamente, toquei o seu braço com o meu; era fácil e natural; isto sempre acontece por acaso as pessoas que estão sentadas juntas no cinema. Mas aquela caricia banal me encheu as veias de desejo. Suavemente, deslizei a minha mão para a esquerda. A moça continuava olhando para o filme. Achei-a linda e tive a impressão de que ela sentia como eu estava emocionado, e que isto lhe dava prazer.

Mas neste momento, ouço um pequeno riso e viro-me. Bebu está me olhando. Na verdade não está rindo; está sério. Mas em seus olhos há qualquer malicia. Envergonhei-me como uma criança. O filme acabou e não falamos no incidente. Eu fui para a redação, e comecei a escrever alguma coisa, ele sentou-se ao meu lado – calado.

Só voltamos a conversar à vontade pela madrugada. A madrugada tem uma hora neutra que há muito tempo observo. É quando passo a tarde toda trabalhando, sem parar, e depois ainda trabalho até a meia-noite na redação. Estou fatigado, mas não me agrada dormir. E aí que vem, não sei como, a “tal hora neutra” da madrugada. Depois, eu e Bebu ficamos diante de uma garrafa de cerveja em um bar qualquer. Bebemos lentamente sem prazer e sem aborrecimento. Na minha cabeça havia uma vaga sensação de efervescência, alguma coisa morna, como um pequeno peso.  Isto sempre me acontece: é a madrugada, depois de um dia de trabalheiras cacetes. Conversamos não me lembro sobre o quê. Pedimos outra cerveja. Muitas vezes pedimos outra cerveja. Houve um momento em que olhei sua cara banal, seu ar de burocrata avariado, e disse:

- Bebu, você não parece o Diabo. É apenas, como se costuma dizer, um pobre-diabo.

- Ele me fitou com seus olhos escuros e flamejantes e disse:

- Um pobre-diabo é um pobre DEUS que fracassou.

- Disse isso sem solenidade nenhuma, como se não tivesse feito uma frase. De repente me perguntou se eu acreditava no Bem e no Mal. Não respondi; eu não acreditava.

Mas a nossa conversa estava ficando ridícula. Desagradava-me falar sobre esses assuntos vagos e solenes. Disse-lhe isto, mas ele não me deu a menor atenção.
Grunhiu apenas:

- Existem.

- Depois afrouxou o laço da gravata e falou:

- Há o Bem e o Mal, mas não é como você pensa. Afinal quem é você? Em que você pensa? Com certeza naquela moça que vende cigarros, de olhos de garapa, de cabelos castanhos...

Estas palavras de Bebu me desagradaram. Ele dissera exatamente como por acaso: aquela moça de olhos de garapa. . . Era assim que eu me exprimia mentalmente, era esta a imagem que me vinha à cabeça sempre que pensava nos olhos daquela linda moça.

Sei que não é uma comparação nova; há muitos olhos que tem aquela mesma cor meio verde, meio escura, de caldo de cana; eu já vi essa imagem em uma poesia, não lembro de quem. Mas a coincidência era alarmante; não podia ser coincidência. O Bebu lia o meu pensamento, e, o que era pior, lia sem nenhum interesse, como se lê um “jornal de anteontem”. Isso me irritou profundamente:

- Ora, Bebu, não se trata de mim. Você estava falando do Bem e do Mal. Uma conversa besta. . .

- Ele não ligou... – e disse:

- Está bem, Rubem: o Bem e o Mal existem, fique sabendo. Você morou muito tempo em São José do Rio Branco, não morou?

- Estive lá quase dois anos – respondi. Trabalhava com meu Tio. Um lugarzinho parado. .

- Bem – disse – Bebu – Lá havia um Prefeito, um velho Prefeito, o Coronel Barbirato. Mas o nome não tem importância. Imagine isto: uma cidade pequena onde há sempre um Prefeito, o mesmo Prefeito. Esse Prefeito nunca será deposto, nunca deixará de ser reeleito, sempre será ele o Prefeito. E há também um homem que lhe faz oposição. Esse homem uma vez quis depor o Prefeito, mas foi derrotado e o será sempre. O povo da cidade teme, aborrece, estima, odeia o Prefeito; não importa. Pois é isto.

- Bebu pôs mais um pouco de cerveja no copo e continuou falando:

- É isto: o Bem e o Mal. O Prefeito acha que os bancos do jardim devem ser colocados diante da Igreja: isto é o Bem. O homem da oposição acha que eles devem ficar em volta do coreto? Isto é o Mal. Entretanto. . .

- Bebu – deixe de ser chato – rebati.

- Ele retruca – Não amole. Você sabe a minha história. Fiz uma revolução contra DEUS. Perdi, fui vencido, fui exilado; nunca tive e nem implorei anistia. DEUS me venceu para todos os séculos, para a eternidade. É o Prefeito eterno, ninguém pode fazer nada. Agora, se tem coragem, imagine isto: eu saio de meu inferno uma bela tarde, junto todo o meu pessoal, faço uma campanha de radiodifusão, arranjo armamento, vou até o Paraíso e derroto aquele patife. Expulso de lá aquela canalhada toda, todas aquelas onze mil virgens, aquela santaria imunda que vocês tanto falam. O que acontece?

- Eu não respondi. Irritava-me aquele modo de Bebu de falar. Aí Bebu continuou com mais veemência:

- Acontece isto – seu animal: não acontece nada! Você reparou quando uma revolução vence? Os homens se renderão diante do fato consumado. O Bem será o Mal, e o Mal será o Bem. Quem passou a vida adulando DEUS irá para o inferno para deixar de ser imbecil. Eu farei a derrubada: em vez de Anjinhos, os capetinhas; em vez de Santos, os demônios. Tudo será a mesma coisa, mas exatamente o contrário. Não precisarei nem modificar as religiões. Só mudar uma palavra nos Livros Santos: onde estiver “não”, escrever “sim”, onde estiver “pecado”, escrever “virtude”. E o mundo tocará para frente. Vocês não seguirão a minha Lei, assim como nunca seguiram e não seguem a DELE; não importa, será sempre a Lei.

- Eu me sentia atordoado. Percebi que lá fora, na rua, as lâmpadas se apagavam e murmurei: já são seis horas! – Bebu falava com um ar de desconsolo:

- Mas não pense nisto. Aquele patife, o teu DEUS, está firme. É possível depô-lo? Não! É impossível! Impossível! . .

- Olhei a sua cara. Dentro de seus olhos, no fundo deles, muito longe, havia um brilho. Era uma pequena, miserável esperança, muito distante. Mas, todavia irredutível. Senti pena do Bebu. É estranho, eu não posso olhar uma pessoa assim, no fundo dos olhos, sem sentir pena. Fui consolando:

- Enfim, meu caro Bebu, não adiantaria coisa alguma. Você como está, vai bem. Tem seu prestigio. . .

- É - Eu estou bem? Canalha! Retrucou-me! – Pensa que, quando me revoltei, foi à toa? Conhece o meu Programa de Governo? Sabe qual foram os ideais que me levaram a luta? Pode explicar por que, através de todos os séculos e séculos, desde que o mundo não era mundo até hoje, até sempre, fui eu, Lúcifer, o único que teve peito pra se revoltar? Você sabe que, modéstia a parte, eu era o melhor da Turma? Eu era o mais brilhante, o mais feliz, o mais puro, era feito de Luz. Por que é que me levantei contra ELE, arriscando tudo? O Governo atual diz que eu fui movido pela ambição e pela vaidade. Mas todos os Governos do mundo dizem isto de todos os revolucionários fracassados! Olhe, você é tão burro que eu vou lhe dizer. Esta joça não ficava assim não. Eu podia lhe contar o meu Programa de Governo; não conto, não conto porque não sou nenhum desses políticos idiotas que vivem salvando a pátria com suas plataformas e o povo mais imbecil ainda – pois acredita! Mas reflita um pouco, meu animal. DEUS me derrotou, me esmagou, e nunca nenhum vencedor foi mais infame para com um vencido. Mas pelo amor que você tem a esse canalha, diga-me: o que é que ele fez até agora? A vida que ele organizou e que ele dirige não é uma miséria? – uma porca miséria? Você sabe perfeitamente disto. Os homens não sofrem, não se matam, não vivem fazendo burradas? É impossível esconder o fracasso. DEUS fracassou, fracassou mi-se-ra-vel-men-te! Vocês - os homens o fizeram fracassar! E agora, vamos, por pior que eu fosse, acha possível camarada, acha possível que eu organizasse um mundo tão ridículo, tão sujo, com homens dessa natureza – fazendo o que querem e o que lhes convêm?

- Não respondi a Bebu. Esvaziamos em silêncio o último copo de cerveja. Eu ia pedir outra, mas refleti amargamente que não tinha mais dinheiro no bolso. Ele, por sua vez, constatou o mesmo. Saímos. Lá fora já era dia:

- Puxa vida! Que sol claro, Bebu! Isto deve ser sete horas. Andamos até a esquina da Avenida.

- Ele me perguntou?

- Onde é que você vai?

- Respondi-lhe – vou dormir. E você?

- Bebu me olhou com seus olhos escuros e respondeu com um sorriso de anjo:

- Vou à missa. . . 




ANJO GABRIEL – CRUZ E SOUZA




Na calma irradiação das noites estreladas

Alto e claro aparece, alto, aparece, claro,

Alvo, claro, no luar das estrelas prateadas,

No triunfal esplendor celestemente raro.




O seu busto de Excelso, a sua graça fina,

A linha de harpa ideal do seu perfil augusto,

Estremecem de luz, de uma luz peregrina,

Do secreto fulgor de um sentimento justo.




Serenidade e glória e paz do Paraíso

Flutuam-lhe na face alvorecida e doce

E quando ele sorri é como se o sorriso

Claros astros semear por todo o espaço fosse.




Leve, loura, .radial, a soberba cabeça

Eleva-se da flor do níveo colo louro

E não há outro sol que tanto resplandeça

Como o sol virginal dessa cabeça de ouro.




As mãos esculturais, de ebúrnea transparência,

De divina feitura e de divino encanto,

Lembram flores sutis de sonhadora essência

Da etérea languidez e de etéreo quebranto.




Das madeixas reais largo deslumbramento

Num flavo jorro cai, com sagrado abandono...

E sai do Anjo o quer que é de vago e de nevoento

Que lembra o despertar sonâmbulo de um sono...




De alto a baixo, do Azul, desfilando das brumas,

Abre todo ele em flor como nevado lírio,

Belo, branco, eteral, do candor das espumas,

Banhado nos clarões e cânticos do Empíreo.




Maravilhoso e nobre ergue no braço ovante

Um gládio singular que rútilo cintila...

Enquanto o seu olhar de mágico diamante

Aflora em plenilúnio através da pupila.




Que o seu olhar, então, esse, recorda tudo

O quanto há de tranqüilo e luminoso e casto.

Maio de ouro a florir meigos céus de veludo

E a neve a cintilar sobre o monte mais vasto.




Do puro albor astral das asas majestosas,

Desprendem-se no Azul mistérios de harmonia...

Entre as angelicais suavidades radiosas

Parece o Anjo Gabriel o alto Enviado do Dia!




Na chama virginal de tão rara beleza

Brilha a força de um Deus e a mística doçura...

E sai das seduções de tamanha pureza

Toda a melancolia errante da ternura.




Do suntuoso agitar das delicadas vestes

Tecidas de jasmins, de rosas, de açucenas,

Vem o aroma cristão dos aromas celestes,

Todas as imortais emanações serenas...




Transfigurado, excelso, agigantado, imenso,

Na candidez hostial das formas impecáveis,

Fica parado no ar, levemente suspenso

De raios siderais, de fluidos inefáveis.




Mas quando o seu perfil nas amplidões floresce

E das asas se lhe ouve a música sonora

Quando ele agita o gládio e as madeixas, parece

Que vai noctambular pelo Infinito afora.




E alto, branco, de pé, destacado no Espaço,

Eleito das Regiões de estranhas Primaveras,

Traça, com o gládio no ar, alevantando o braço,

Uma cruz de Perdão na mudez das Esferas!




A IGREJA DO DIABO - Machado de Assis


CAPÍTULO I
DE UMA IDÉIA MIRÍFICA


Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

-Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.



II

ENTRE DEUS E O DIABO



Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

-Que me queres tu? perguntou este.

-Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

-Explica-te.

-Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...

-Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

-Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?

-Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor,

-Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

-Vai

-Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

-Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

-Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê- las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...

-Velho retórico! murmurou o Senhor.

-Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu o Diabo.

-Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

-Já vos disse que não.

-Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

-Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

-Negas esta morte?

-Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...

-Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!

Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.





III

A BOA NOVA AOS HOMENS



Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

-Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.





IV

FRANJAS E FRANJAS



A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:

-Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.



AUTO DA BARCA DO INFERNO

Gil Vicente




Vem um Onzeneiro, e pergunta ao Arrais do Inferno, dizendo:

ONZENEIRO    Pera onde caminhais?

DIABO    Oh! que má-hora venhais,

    onzeneiro, meu parente!

    Como tardastes vós tanto?

ONZENEIRO    Mais quisera eu lá tardar...

    Na safra do apanhar

    me deu Saturno quebranto.

DIABO    Ora mui muito m'espanto

    nom vos livrar o dinheiro!...

ONZENEIRO    Solamente para o barqueiro

    nom me leixaram nem tanto...

DIABO    Ora entrai, entrai aqui!

ONZENEIRO    Não hei eu i d'embarcar!

DIABO    Oh! que gentil recear,

    e que cousas pera mi!...

ONZENEIRO    Ainda agora faleci,

    leixa-me buscar batel!

DIABO    Pesar de Jam Pimentel!

    Porque não irás aqui?...

ONZENEIRO    E pera onde é a viagem?

DIABO    Pera onde tu hás-de ir.

ONZENEIRO    Havemos logo de partir?

DIABO    Não cures de mais linguagem.

ONZENEIRO    Mas pera onde é a passagem?

DIABO    Pera a infernal comarca.

ONZENEIRO    Dix! Nom vou eu tal barca.

    Estoutra tem avantagem.

Vai-se à barca do Anjo, e diz:

    Hou da barca! Houlá! Hou!

    Haveis logo de partir?

ANJO    E onde queres tu ir?

ONZENEIRO    Eu pera o Paraíso vou.

ANJO    Pois cant'eu mui fora estou

    de te levar para lá.

    Essoutra te levará;

    vai pera quem te enganou!

ONZENEIRO    Porquê?

ANJO    Porque esse bolsão

    tomará todo o navio.

ONZENEIRO    Juro a Deus que vai vazio! ANJO    Não já no teu coração.

ONZENEIRO    Lá me fica, de rondão,

    minha fazenda e alhea.

ANJO    Ó onzena, como és fea

    e filha de maldição!

Torna o Onzeneiro à barca do Inferno e diz:

ONZENEIRO    Houlá! Hou! Demo barqueiro!

    Sabês vós no que me fundo?

    Quero lá tornar ao mundo

    e trazer o meu dinheiro.

    que aqueloutro marinheiro,

    porque me vê vir sem nada,

    dá-me tanta borregada

    como arrais lá do Barreiro.

DIABO    Entra, entra, e remarás!

    Nom percamos mais maré!

ONZENEIRO    Todavia...

DIABO    Per força é!

    Que te pês, cá entrarás!

    Irás servir Satanás,

    pois que sempre te ajudou.

ONZENEIRO    Oh! Triste, quem me cegou?

DIABO    Cal'te, que cá chorarás.

Entrando o Onzeneiro no batel, onde achou o Fidalgo embarcado, diz tirando o barrete:

ONZENEIRO    Santa Joana de Valdês!

    Cá é vossa senhoria?

FIDALGO    Dá ò demo a cortesia!

DIABO    Ouvis? Falai vós cortês!

    Vós, fidalgo, cuidareis

    que estais na vossa pousada?

    Dar-vos-ei tanta pancada

    com um remo que renegueis!







Vem Joane, o Parvo, e diz ao Arrais do Inferno:

PARVO    Hou daquesta!

DIABO    Quem é?

PARVO    Eu soo.

    É esta a naviarra nossa?

DIABO    De quem?

PARVO    Dos tolos.

DIABO    Vossa.

    Entra!

PARVO    De pulo ou de voo?

    Hou! Pesar de meu avô!

    Soma, vim adoecer

    e fui má-hora morrer,

    e nela, pera mi só.

DIABO    De que morreste?

PARVO    De quê?

    Samicas de caganeira.

DIABO    De quê?

PARVO    De caga merdeira!

    Má rabugem que te dê!

DIABO    Entra! Põe aqui o pé! PARVO    Houlá! Nom tombe o zambuco!

DIABO    Entra, tolaço eunuco,

    que se nos vai a maré!

PARVO    Aguardai, aguardai, houlá!

    E onde havemos nós d'ir ter?

DIABO    Ao porto de Lucifer.

PARVO    Ha-á-a...

DIABO    Ó Inferno! Entra cá!

PARVO    Ò Inferno?... Eramá...

    Hiu! Hiu! Barca do cornudo.

    Pêro Vinagre, beiçudo,

    rachador d'Alverca, huhá!

    Sapateiro da Candosa!

    Antrecosto de carrapato!

    Hiu! Hiu! Caga no sapato,

    filho da grande aleivosa!

    Tua mulher é tinhosa

    e há-de parir um sapo

    chantado no guardanapo!

    Neto de cagarrinhosa!

    Furta cebolas! Hiu! Hiu!

    Excomungado nas erguejas!

    Burrela, cornudo sejas!

    Toma o pão que te caiu!

    A mulher que te fugiu

    per'a Ilha da Madeira!

    Cornudo atá mangueira,

    toma o pão que te caiu!

    Hiu! Hiu! Lanço-te üa pulha!

    Dê-dê! Pica nàquela!

    Hump! Hump! Caga na vela!

    Hio, cabeça de grulha!

    Perna de cigarra velha,

    caganita de coelha,

    pelourinho da Pampulha!

    Mija n'agulha, mija n'agulha!

Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz:

PARVO    Hou da barca!

ANJO    Que me queres?

PARVO    Queres-me passar além?

ANJO    Quem és tu?

PARVO    Samica alguém.

ANJO    Tu passarás, se quiseres;

    porque em todos teus fazeres

    per malícia nom erraste.

    Tua simpreza t'abaste

    pera gozar dos prazeres.

    Espera entanto per i:

    veremos se vem alguém,

    merecedor de tal bem,

    que deva de entrar aqui.





Vem um Frade com üa Moça pela mão, e um broquel e üa espada na outra, e um casco debaixo

do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa, começou de dançar, dizendo:

FRADE    Tai-rai-rai-ra-rã; ta-ri-ri-rã;

    ta-rai-rai-rai-rã; tai-ri-ri-rã:

    tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhá!

DIABO    Que é isso, padre?! Que vai lá?

FRADE    Deo gratias! Som cortesão.

DIABO    Sabês também o tordião?

FRADE    Porque não? Como ora sei!

DIABO    Pois entrai! Eu tangerei

    e faremos um serão.

    Essa dama é ela vossa?

FRADE    Por minha la tenho eu,

    e sempre a tive de meu,

DIABO    Fezestes bem, que é fermosa!

    E não vos punham lá grosa

    no vosso convento santo?

FRADE    E eles fazem outro tanto!

DIABO    Que cousa tão preciosa...

    Entrai, padre reverendo!

FRADE    Para onde levais gente?

DIABO    Pera aquele fogo ardente

    que nom temestes vivendo.

FRADE    Juro a Deus que nom t'entendo!

    E este hábito no me val?

DIABO   Gentil padre mundanal,

    a Berzebu vos encomendo!

FRADE    Corpo de Deus consagrado!

    Pela fé de Jesu Cristo,

    que eu nom posso entender isto!

    Eu hei-de ser condenado?!...

    Um padre tão namorado

    e tanto dado à virtude?

    Assi Deus me dê saúde,

    que eu estou maravilhado!

DIABO    Não curês de mais detença.

    Embarcai e partiremos:

    tomareis um par de ramos.

FRADE    Nom ficou isso n'avença.

DIABO    Pois dada está já a sentença!





Tanto que o Frade foi embarcado, veio üa Alcoviteira, per nome Brízida Vaz, a qual chegando

à barca infernal, diz desta maneira:

BRÍZIDA    Hou lá da barca, hou lá!

DIABO    Quem chama?

BRÍZIDA    Brízida Vaz.

DIABO    E aguarda-me, rapaz?

    Como nom vem ela já?

COMPANHEIRO    Diz que nom há-de vir cá

    sem Joana de Valdês.

DIABO    Entrai vós, e remarês.

BRÍZIDA    Nom quero eu entrar lá.

DIABO    Que sabroso arrecear!

BRÍZIDA    No é essa barca que eu cato.

DIABO    E trazês vós muito fato?

BRÍZIDA    O que me convém levar.

Día.    Que é o que havês d'embarcar?

BRÍZIDA    Seiscentos virgos postiços

    e três arcas de feitiços

    que nom podem mais levar.

    Três almários de mentir,

    e cinco cofres de enlheos,

    e alguns furtos alheos,

    assi em jóias de vestir,

    guarda-roupa d'encobrir,

    enfim - casa movediça;

    um estrado de cortiça     com dous coxins d'encobrir.

    A mor cárrega que é:

    essas moças que vendia.

    Daquestra mercadoria

    trago eu muita, à bofé!

DIABO   Ora ponde aqui o pé...

BRÍZIDA   Hui! E eu vou pera o Paraíso!

DIABO   E quem te dixe a ti isso?

BRÍZIDA   Lá hei-de ir desta maré.

    Eu sô üa mártela tal!...

    Açoutes tenho levados

    e tormentos suportados

    que ninguém me foi igual.

    Se fosse ò fogo infernal,

    lá iria todo o mundo!

    A estoutra barca, cá fundo,

    me vou, que é mais real.

  Chegando à Barca da Glória diz ao Anjo:

    Barqueiro mano, meus olhos,

    prancha a Brísida Vaz.

ANJO:   Eu não sei quem te cá traz...

BRÍZIDA   Peço-vo-lo de giolhos!

    Cuidais que trago piolhos,

    anjo de Deos, minha rosa?

    Eu sô aquela preciosa

    que dava as moças a molhos,

    a que criava as meninas

    pera os cónegos da Sé...

    Passai-me, por vossa fé,

    meu amor, minhas boninas,

    olho de perlinhas finas!

    E eu som apostolada,

    angelada e martelada,

    e fiz cousas mui divinas.

    Santa Úrsula nom converteu

    tantas cachopas como eu:

    todas salvas polo meu

    que nenhüa se perdeu.

    E prouve Àquele do Céu

    que todas acharam dono.

    Cuidais que dormia eu sono?

    Nem ponto se me perdeu!

 ANJO    Ora vai lá embarcar,

    não estês importunando.

BRÍZIDA   Pois estou-vos eu contando

    o porque me haveis de levar.

 ANJO    Não cures de importunar,

    que não podes vir aqui.

BRÍZIDA  E que má-hora eu servi,

    pois não me há-de aproveitar!...

Torna-se Brízida Vaz à Barca do Inferno, dizendo: BRÍZIDA   Hou barqueiros da má-hora,

    que é da prancha, que eis me vou?

    E já há muito que aqui estou,

    e pareço mal cá de fora.

DIABO    Ora entrai, minha senhora,

    e sereis bem recebida;

    se vivestes santa vida,

    vós o sentirês agora...







Em breve os demais textos.

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