Quem sou eu

O projeto "Longa jornada livro adentro: a análise de textos literários" visa incentivar a leitura e a interpretação de textos de diferentes épocas e estilos. O grupo fará oficinas quinzenais, aos sábados pela manhã, em que se debaterão obras, tendências e outros assuntos do mundo da literatura. Aqui, você confere os tópicos em pauta, os principais itens discutidos nas reuniões e a organização para os encontros futuros. As oficinas se realizarão no auditório da UFFS.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Segunda oficina: "A aventura da linguagem em caminhos literários".

     A literatura se estabelece não somente na ideia de produzir histórias, ideias e pensamentos sobre algo, mas sobretudo como instrumento de estratégias textuais. A partir disso, o projeto Litera.UFFS fará sua segunda Oficina de Análise Literária sobre quatro textos que enfocam a construção poética, no dia 28/04, a partir das 8h na sala 8. Primeiramente, vão-se mostrar músicas de Chico Buarque ("Construção" e "Corrente") em seu caráter de "montagem" literária. Em seguida, o poema "Psicologia da composição", de João Cabral de Melo Neto, irá versar sobre o que é o poema, a poesia e a significação. Na continuação, vão-se observar dois contos do escritor moçambicano Mia Couto ("O menino que escrevia versos" e "A infinita fiadeira") em sua artesania poética. Por fim, em "Tapiiraiauara", um conto de João Guimarães Rosa, um dos maiores inovadores da linguagem literária em língua portuguesa, vai-se ver a importância da linguagem como método de salvação.


Segue os textos que analisar-se-à na segunda oficina:

Construção

Chico Buarque

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado

Por esse pão pra comer, por esse chão prá dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir,
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
Deus lhe pague


Corrente

Chico Buarque

Eu hoje fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho

Eu acho que o meu samba é uma corrente
E coerentemente assino embaixo

Hoje é preciso refletir um pouco
E ver que o samba está tomando jeito

Só mesmo embriagado ou muito louco
Pra contestar e pra botar defeito

Precisa ser muito sincero e claro
Pra confessar que andei sambando errado

Talvez precise até tomar na cara
Pra ver que o samba está bem melhorado

Tem mas é que ser bem cara de tacho
Não ver a multidão sambar contente

Isso me deixa triste e cabisbaixo
Por isso eu fiz um samba bem pra frente

Dizendo realmente o que é que eu acho
Eu acho que o meu samba é uma corrente

E coerentemente assino embaixo
Hoje é preciso refletir um pouco

E ver que o samba está tomando jeito
Só mesmo embriagado ou muito louco

Pra contestar e pra botar defeito
Precisa ser muito sincero e claro

Pra confessar que andei sambando errado
Talvez precise até tomar na cara

Pra ver que o samba está bem melhorado
Tem mais é que ser bem cara de tacho

Não ver a multidão sambar contente
Isso me deixa triste e cabisbaixo

Por isso eu fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho





Psicologia da composição- João Cabral de Melo Neto

1.
Saio de meu poema
como quem lava as mãos.

Algumas conchas tornaram-se,
que o sol da atenção
cristalizou; alguma palavra
que desabrochei, como a um pássaro.

Talvez alguma concha
dessas (ou pássaro) lembre,
côncava, o corpo do gesto
extinto que o ar já preencheu;

talvez, como a camisa
vazia, que despi.


2.
Esta folha branca
me proscreve o sonho,
me incita ao verso
nítido e preciso.

Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse.

Como não há noite
cessa toda fonte;
como não há fonte
cessa toda fuga;

como não há fuga
nada lembra o fluir
de meu tempo, ao vento
que nele sopra o tempo.


3.
Neste papel
pode teu sal
virar cinza;

pode o limão
virar pedra;
o sol da pele,
o trigo do corpo
virar cinza.

(Teme, por isso,
a jovem manhã
sobre as flores
da véspera.)

Neste papel
logo fenecem
as roxas, mornas
flores morais;
todas as fluidas
flores da pressa;
todas as úmidas
flores do sonho.

(Espera, por isso,
que a jovem manhã
te venha revelar
as flores da véspera.)


4.
O poema, com seus cavalos,
quer explodir
teu tempo claro; rompendo
seu branco fio, seu cimento
mudo e fresco.

(O descuido ficara aberto
de par em par;
um sonho passou, deixando
fiapos, logo árvores instantâneas
coagulando a preguiça.)


5.
Vivo com certas palavras,
abelhas domésticas.

Do dia aberto
(branco guarda-sol)
esses lúcidos fusos retiram
o fio de mel
(do dia que abriu
também como flor)

que na noite
(poço onde vai tombar
a aérea flor)
persistirá: louro
sabor, e ácido
contra o açúcar do podre.


6.
Não a forma encontrada
como uma concha, perdida
nos frouxos areais
como cabelos;

não a forma obtida
em lance santo ou raro,
tiro nas lebres de vidro
do invisível;

mas a forma atingida
como a ponta do novelo
que a atenção, lenta,
desenrola,

aranha; como o mais extremo
desse fio frágil, que se rompe
ao peso, sempre, das mãos
enormes.


7.
É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.

São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.

É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.

É mineral, por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza

da palavra escrita.


8.
Cultivar o deserto
como um pomar às avessas.

(A árvore destila
a terra, gota a gota;
a terra completa
caiu, fruto!

Enquanto na ordem
de outro pomar
a atenção destila
palavras maduras.)

Cultivar o deserto
como um pomar às avessas:

então, nada mais
destila; evapora;
onde foi maçã
resta uma fome;

onde foi palavra
(potros ou touros
contidos) resta a severa
forma do vazio.



O menino que escrevia versos

Mia Couto


De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?

(VERSOS DO MENINO QUE FAZIA VERSOS)



— Ele escreve versos!
Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.— Há antecedentes na família?

— Desculpe doutor?
O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:— Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.


Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.
— São meus versos, sim.O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?

Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.
— O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.

Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
— Dói-te alguma coisa?

—Dói-me a vida, doutor.

O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
— E o que fazes quando te assaltam essas dores?

— O que melhor sei fazer, excelência.
— E o que é?

— É sonhar.
Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.

O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:
— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica psiquiátrica.A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.

Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendi dos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.
— Não continuas a escrever?— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase a meio.O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.— Não importa — respondeu o doutor.Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.

Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:

— Não pare, meu filho. Continue lendo...


A infinita fiadeira


(A aranha ateia
diz ao aranho na teia:
o nosso amor
está por um fio!)



A aranha, aquela aranha, era tão única: não parava de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo. Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs.
E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com belezas de cacimbo gotejando, rendas e rendilhados. Tudo sem fim nem finalidade. Todo o bom aracnídeo sabe que a teia cumpre as fatais funções: lençol de núpcias, armadilha de caçador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em suas distraiçoeiras funções.
Para a mãe-aranha aquilo não passava de mau senso. Para quê tanto labor se depois não se dava a indevida aplicação? Mas a jovem aranhiça não fazia ouvidos. E alfaiatava, alfinetava, cegava os nós. Tecia e retecia o fio, entrelaçava e reentrelaçava mais e mais teia. Sem nunca fazer morada em nenhuma. Recusava a utilitária vocação da sua espécie.
- Não faço teias por instinto.
- Então, faz porquê?
- Faço por arte.
Benzia-se a mãe, rezava o pai. Mas nem com preces. A filha saiu pelo mundo em ofício de infinita teceloa. E em cantos e recantos deixava a sua marca, o engenho da sua seda. Os pais, após concertação, a mandaram chamar. A mãe:
- Minha filha, quando é que assentas as patas na parede?
E o pai:
- Já eu me vejo em palpos de mim...
Em choro múltiplo, a mãe limpou as lágrimas dos muitos olhos enquanto disse:
- Estamos recebendo queixas do aranhal.
- O que é que dizem, mãe?
- Dizem que isso só pode ser doença apanhada de outras criaturas.
Até que se decidiram: a jovem aranha tinha que ser reconduzida aos seus mandos genéticos. Aquele devaneio seria causado por falta de namorado. A moça seria até virgem, não tendo nunca digerido um machito. E organizaram um amoroso encontro.
- Vai ver que custa menos que engolir mosca - disse a mãe.
E aconteceu. Contudo, ao invés de devorar o singelo namorador, a aranha namorou e ficou enamorada. Os dois deram-se os apêndices e dançaram ao som de uma brisa que fazia vibrar a teia. Ou seria a teia que fabricava a brisa?
A aranhiça levou o namorado a visitar a sua colecção de teias, ele que escolhesse uma, ficaria prova de seu amor.
A família desiludida consultou o Deus dos bichos, para reclamar da fabricação daquele espécime.
Uma aranha assim, com mania de gente? Na sua alta teia, o Deus dos bichos quis saber o que poderia fazer. Pediram que ela transitasse para humana. E assim sucedeu: num golpe divino, a aranha foi convertida em pessoa. Quando ela, já transfigurada, se apresentou no mundo dos humanos logo lhe exigiram a imediata identificação. Quem era, o que fazia?
- Faço arte.
- Arte?
E os humanos se entreolharam, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? Até que um, mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que já se perdera memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e os poucos que teimavam em criar esses pouco rentáveis produtos - chamados de obras de arte - tinham sido geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava bem em que bichos. Aranhas, ao que parece.


Tapiiraiauara

                       Dera-se que Iô Isnar trouxera-me a caçar a anta, na rampa da serra. Sobre sua trilha postávamo-nos em ponto, à espera, por onde havia de descer, batida pelos cães. Sabia-se, a anta com o filhote. Acima, a essa hora, ela pastava, na chapada.
                       Vistosa, seca manhã, entre lamas, a fim de assassinato; Iô Isnar se regozijava, duro e mau como uma quina de mesa. Eu olhava os topos das árvores. Fizera-me vir. Era o velho desgraçado.
                       - “A carne é igual à da vaca: lombo, o coração, fígado…” Matava-a, por distração, suponha-se; para esquecer-se do espírito. Iô Isnar tinha problema. – “Ecô”! – deu a soltada dos cachorros, aplicados rumo arriba.

                       - “Mora no beira-córrego, em capão de mato. Faz um fuxico, ali, uns ramos; nesseenredado, elas dormem.” A anta, que ensina o filhote a nadar: coça-o leve com os dentes, alongando o trombigo.
                       - “Sai dos brejos, antes do sol. Sobe, para vir arrancar folhas novas de palmeiras, catar frutinhas caídas, roer cascas do ipê, angico, peroba…”
                       O problema de Iô Isnar era noutro nível de dó e circunstância, viril compungência. Seu filho achava-se em cidade, no serviço militar. – “Haverá mais guerra? O Brasil vai?...”perguntara, muito, expondo a balda.

                       A anta, e o filhote – zebrado riscado branco como em novos eles são – tão gentil.
                       - “Ah, o couro é cabedal bom, rijo, grosso. Dá para rédeas, chicotes, coisas de arreios…”
                       Sobre lá, a mil passos, a boa alimária fuçava ariticuns e mangabas do chão, muricis, a vagem da faveira. Ao meio-dia buscava outros pântanos, lagoas, donde comia os brotos de taquarile rilhava o coco do buriti, deixada nua a semente. Com pouco ia desastrar-se com os cães, feia a sungar a afilada cabeça, sua cara aguda, aventando-lhes o assumar.
                       Eram horas episódicas.

                       De tocaia, aqui, no rechego, a peitavento, Iô Isnar comodamente guardava-a, rês, para tiro por detrás da orelha, o melhor, de morte. Dava osga, a desalma. Moeu-me. Merecia maldição mansamente lançada. Iô Isnar, apurado, ladino no passatempo.
                       Havendo que o obstar?
                       Levantavam-na quiçá já os cães anteriores afirmados, cruza de perdigueiros e cabeçudos. Acossada, prende às vezes o cachorro com o pé, e morde-o; despistava-os?
                       “É peta, qualquer cachorrinho prático segura uma anta!”

                       Valesse-lhe, nem, andar escondida nos matos, ressabiando os descampados. Sem longe, sem triz, ao grado de um Iô Isnar, em sórdido folguedo: condenada viva.
                       Mas,que, então, algum azar o impedisse – Anhangá o transtornasse!
                       Só árvores através de árvores. Doer-se de um bicho, é graça. De ainda aurora, a anta passara fácil por aquí, subindo o rio, de seu brejo-de-buritis, dita vereda.
Marcava-se o bruto rastro: aos quatro e três dedos, dos cascos, calcados no sulco fundo do carreiro, largo, no barro bem amarelo, cor que abençoa. Havia urgência.
                        Podia-se uma ideia.
                        À mão de linguagem. A de maneá-lo, agi-lo, nesse propósito, em farsamento, súbito estudo, por equivalência de afetos, no dói-lhe-dói, no tintim da moeda! Iô Isnar, carrasco, jeito abjeto, temente ao diabo. A pingo de palavras, com inculcações, em ordem a atordoá-lo, emprestar-lhe minha comichão. Correr aposta.
                        Ponteiro menor, a anta; ponteiro grande, os cães.
                        E dependi daquilo.
                        - “Sim, o Brasil mandará tropas…” – deixei-lhe; conforme a teoria. Sem o fitar: mas ao raro azul entre folhagens de árvores.
                        - “Cruz!?” – ele fez, encolhera elétrico os ombros.
                        Eu, mais, numa ciciota: - “É grave…” Luta distante, contra malinos pagões, cochinchins, indochins: que martirizavam os prisioneiros, miudamente matavam. Guerra de durar anos…
Iô Isnar, voz ingrata, já ele tem outras oscilações: - “Deveras?” – coçou a nuca, conquanto. Acelerava seu sentir; pôs-se cinco rugas na testa, como uma pauta de música. Vi o capinzal, baixas ervas, o meigo amarelo do lameiro, uma lama aprofundada. Ele era um retrato.
            Tomei uns momentos.
            Devagar, a ministrar com opinião de martelo e prego: - “Seu filho único…” Disse. Do ominoso e torvo, de desgraçados sucessos, o parar em morte, os suplícios mais asiáticos. – “Se a sorte sair em preto…” – o tema fundamental.
            Iô Isnar – a boca aberta ainda maior, porque levantara a cabeça – e um olhar omicida. Malhava-me fogo?
            Só futuras sombras não logravam porém o desandamento de um cru caçador, seu coração a desarrazoar-se. Talvez a menção prática  de providências vingasse sacudi-lo: - “Ajudo-o… Mas tem de vir comigo à cidade…” – propinei.
            Iô Isnar sumiu a cor do rosto, perdera o conselho; o queixo trêmulo. Valha-o a braca! Opereva, o método. Vinha-lhe ao extremo dos dedos o pânico, das epidermes psíquicas. Ele estava de um metal. Ele era maquinalmente meu. Obra de uns dez minutos.
            No súbito.
            A alarida, a pouco e pouco, o re-eco – trupou um galope, em direitura, à abalada, dava vento,    E foi que: mal coube em olhos: vulto, bruno-pardo, patas, pelo estreito passadouro – tapiruçu, grã-besta, tapiira… - o coto de cauda. Com os cães lhe atrás.
            Iô Isnar falhara, a cilada, o tiro; desexercera-se de mãos, não afirmara a vista.
            Travavam-se, em estafa, os cães, com latidos soluçados.
            Embaixo, lá a anta soltara o estridente longo grito – de ao se atirarem à água, o filhote e ela – de em salvo.
            Refez-se a tranquilidade.
            Iô Isnar rezava, feito se morimbundo, se derrubado, tripudiado pelo tapir, que defeca mesmo quando veloz no desembesto: seu esterco no chão parecia o de um cavalo.



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