Quem sou eu

O projeto "Longa jornada livro adentro: a análise de textos literários" visa incentivar a leitura e a interpretação de textos de diferentes épocas e estilos. O grupo fará oficinas quinzenais, aos sábados pela manhã, em que se debaterão obras, tendências e outros assuntos do mundo da literatura. Aqui, você confere os tópicos em pauta, os principais itens discutidos nas reuniões e a organização para os encontros futuros. As oficinas se realizarão no auditório da UFFS.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

8ª oficina: A África em português: irmãos de sangue que falam além do mar

Do outro lado do Atlântico, no grande continente africano, há milhões de pessoas que compartilham o idioma português: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Timor Leste, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde. A sua compreensão de mundo, o seu resgate histórico, tudo é lançado, por meio da literatura, como pontes em busca da outra banda. Por isso, na oitava oficina, a se realizar no dia 19/10, às 08 horas, no Auditório da UFFS, vai-se mostrar como as histórias ancestrais africanas são reinventadas numa linguagem carregada de musicalidade. Em contos e poemas, nomes como Mia Couto, Agostinho Neto e Ondjaki vão mostrar que a água do Atlântico é facilmente transposta pela viagem literária.





Raízes(1955-)
Mia Couto

Uma vez um homem deitou-se, todo, em cima da terra. A areia lhe servia de almofada. Dormiu toda a manhã e quando se tentou levantar não conseguiu. Queria mexer a cabeça: não foi capaz. Chamou pela mulher e pediu-lhe ajuda.
- “Veja o que me está a prender a cabeça”.
A mulher espreitou por baixo da nuca do marido, puxou-lhe levemente pela testa. Em vão. O homem não desgrudava do chão.
- “Então, mulher? Estou amarrado?
- “Não, mando, você criou raízes.
- “Raízes?”
Já se juntavam as vizinhanças. E cada um puxava sentença. O homem, aborrecido, ordenou à esposa:
- “Corta!
- “Corta, o quê?
- “Corta essa merda das raízes ou lá o que é”...
A esposa puxou da faca e lançou o primeiro golpe. Mas logo parou.
- “Dói-lhe?
- “Quase nem. Porquê me pergunta?
- “É porque está sair sangue”.
Já ela, desistida, arrumara o facão. Ele, esgotado, pediu que alguém o destroncasse dali. “Me ajudem”, suplicou. Juntaram uns tantos, gentes da terra. Aquilo era assunto de camponês. Começaram a escavar o chão, em volta. Mas as raízes que saíam da cabeça desciam mais fundo que se podia imaginar. Covaram o tamanho de um homem e elas continuavam para o fundo. Escavaram mais que as fundações de uma montanha e não se vislumbrava o fim das radiculações.
- “Me tirem daqui”, gemia o homem, já noite.
Revesaram-se os homens, cada um com sua pá mais uma enxada. Retiraram toneladas de chão, vazaram a fundura de um buraco que nunca ninguém vira. E laborou-se semanas e meses. Mas as raízes não só não se extinguiam como se ramificavam em mais redes e novas radículas. Até que já um alguém, sabedor de planetas, disse:
- “As raízes dessa cabeça dão a volta ao mundo”.
E desistiram. Um por um se retiraram. A mulher, dia seguinte, chamou os sábios. Que iria ela fazer para desprender o homem da inteira terra? Pode-se tirar toda a terra, sacudir as remanascentes areias, disse um. Mas um outro argumentou: assim teríamos que transmudar o planeta todo inteiro, acumular um monte de terra do tamanho da terra. E o enraizado, o que que se faria dele e de todas suas raízes? Até que falou o mais velho e disse:
- “A cabeça dele tem que ser transferida”.
E para onde, santos deuses? Se entreolharam todos, aguardando pelo parecer do mais velho.
- “Vamos plantar a cabeça dele lá!”
E apontou para cima, para as celestiais alturas. Os outros devolveram a estranheza. Que queria o velho dizer?
- “Lá, na lua”.
E foi assim que, por estreia, um homem passou a andar com a cabeça na lua. Nesse dia nasceu o primeiro poeta.




Identidade

Preciso ser um outro 
para ser eu mesmo 

Sou grão de rocha 
Sou o vento que a desgasta 

Sou pólen sem insecto 

Sou areia sustentando 
o sexo das árvores 

Existo onde me desconheço 
aguardando pelo meu passado 
ansiando a esperança do futuro 

No mundo que combato morro 
no mundo por que luto nasço 

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"




O BAIRRO DA MINHA INFÂNCIA
Mia Couto


Não são as criaturas que morrem.

É o inverso:
só morrem as coisas.

As criaturas não morrem
porque a si mesmas se fazem.

E quem de si nasce
à eternidade se condena.

Uma poeira de túmulo
me sufoca o passado
sempre que visito o meu velho bairro.

A casa morreu
no lugar onde nasci:
a minha infância
não tem mais onde dormir.

Mas eis que,
de um qualquer pátio,
me chegam silvestres risos
de meninos brincando.

Riem e soletram
as mesmas folias
com que já fui soberano
de castelos e quimeras.

Volto a tocar a parede fria
e sinto em mim o pulso
de quem para sempre vive.

A morte
é o impossível abraço da água.



O CHORO DE ÁFRICA 
Agostinho Neto


O choro durante séculos
nos seus olhos traidores pela servidão dos homens
no desejo alimentado entre ambições de lufadas românticas
nos batuques choro de África
nos sorrisos choro de África
nos sarcasmos no trabalho choro de África

Sempre o choro mesmo na vossa alegria imortal
meu irmão Nguxi e amigo Mussunda
no círculo das violências
mesmo na magia poderosa da terra
e da vida jorrante das fontes e de toda a parte e de todas as almas
e das hemorragias dos ritmos das feridas de África

e mesmo na morte do sangue ao contato com o chão
mesmo no florir aromatizado da floresta
mesmo na folha
no fruto
na agilidade da zebra
na secura do deserto
na harmonia das correntes ou no sossego dos lagos
mesmo na beleza do trabalho construtivo dos homens

o choro de séculos
inventado na servidão
em historias de dramas negros almas brancas preguiças
e espíritos infantis de África
as mentiras choros verdadeiros nas suas bocas

o choro de séculos
onde a verdade violentada se estiola no circulo de ferro
da desonesta forca
sacrificadora dos corpos cadaverizados
inimiga da vida

fechada em estreitos cérebros de maquinas de contar
na violência
na violência
na violência

O choro de África e' um sintoma

Nos temos em nossas mãos outras vidas e alegrias
desmentidas nos lamentos falsos de suas bocas - por nós!
E amor
e os olhos secos.




Comboio africano
Agostinho Neto

Um comboio
subindo de difícil vale africano
chia que chia
lento e caricato

Grita e grita

quem esforçou não perdeu
mas ainda não ganhou

Muitas vidas
ensoparam a terra
onde assenta os rails
e se esmagam sob o peso da máquina
e no barulho da terceira classe

Grita e grita

quem esforçou não perdeu
mas ainda não ganhou

Lento caricato e cruel
o comboio africano…



O Voo do Jika 
  Ondjaki

O Jika era o mais novo da minha rua. Assim: o Tibas era o mais velho, depois havia o Bruno Ferraz, eu e o Jika. Nós até às vezes lhe protegíamos doutros mais-velhos que vinham fazer confusão na nossa rua. Hoje pensar no Jika é lembrar-me dele com muita ternura. Por várias coisas.
O almoço na minha casa era perto do meio-dia. Às vezes quase à uma. Ao meio-dia e quinze, o Jika tocava à campainha.
- O Ndalu está? - perguntava à minha irmã ou ao camarada António.
- Sim, está.
- Chama só, faz favor.
Eu interrompia o que estivesse a fazer, descia.
- MôJika, comé?
- Ndalu, vinha te perguntar uma coisa.
- Diz.
- Hoje num queres me convidar pra almoçar na tua casa?
- Deixinda ir perguntar à minha mãe.
Entrei. O Jika ficou ansioso na porta, aguardando a resposta. Quase sempre a minha mãe dizia sim. Só se fosse mesmo maka de pouca comida, ou muita gente que já estava combinada para o almoço. Se a Avó Chica viesse, ia trazer também a Helda, e assim já não ia dar. Mas normalmente a minha mãe dizia mesmo «sim». E ficava a rir.
- A minha mãe disse que podes - eu disse também contente.
- Ah é? - ele pareceu surpreendido. - E a que horas é que vocês vão almoçar?
- Ao meio-dia e meia, Jika.
- Então vou pedir na minha mãe.
Deixei a porta aberta. O Jika devia voltar sem demora quase nenhuma. Ouvi ele gritar contente, cá de baixo, na direcção da janela do quarto da mãe dele:
- Maaaaãe!, a tia Sita me convidou pra almoçar na casa dela. Posso?
- Podes. Mas vem mudar essa camisa suada.
O Jika deu uma esquindiva, fingiu que já tinha mudado, veio a correr numa transpiração respirada. Contente. Olhos do miúdo que ele era. Fosse o melhor programa da semana dele. E eu, mesmo miúdo candengue, fiquei a pensar nas razões do Jika não gostar nada de almoçar na própria casa dele.
O Jikatava habituado a muita gasosa. Nesse tempo, se houvesse gasosa na minha casa era pra dividir. Como nós éramos três, eu e duas irmãs, quando o Jika vinha almoçar, até a divisão corria melhor. Ele por vezes queria fugir desse ritual:
- Tia Sita, posso beber uma gasosa sozinho?
- Sozinho bebes na tua casa - a minha mãe respondeu. - Aqui divide-se.
Depois do almoço, o Jika disse que ia a casa dele buscar «uma coisa». Eu fiquei à espera, no portão aberto. Prometeu não demorar. Voltou com a tal coisa escondida debaixo do braço, e entrámos rapidamente na minha casa. Subimos ao primeiro andar, fomos até ao quarto da minha irmã Tchi, e saltámos da varanda para uma espécie de telhado. Aproximámo-nos da berma. Lá em baixo estava a relva verde do jardim. O Jika abriu um muito, muito pequenino guarda-chuva azul.
- Põe a mão aqui - ensinou-me. - Agora podemos saltar.
- Tens a certeza? - olhei lá para baixo.
- Vamos só.
E saltámos.
Hoje lembrar isso faz-me cair num brilho de lágrimas antigas e sorriso tipo cacimbo sonhado ou algo que fosse igual a isso mesmo. A infância é tão bonita. Caímos juntos na relva, magoamo-nos um bocadinho, mas sobretudo rimos. Mas o Jika teve outra ideia.
- Calmo só, môNdalu. Vou na minha casa buscar um maior.
- Não, Jika, desculpa lá. Vais saltar sozinho, eu já num vou saltar mais de guarda-chuva.
- Nem num bem grande que tenho, daqueles da praia, anti-sol e tudo, colorido tipo arco-íris?
- Nem esse!
O Jika ficou desanimado. Sem outras propostas para brincadeiras perigosas, decidiu ir pra casa. Ao cruzar o portão, falou ainda:
- Posso te perguntar uma coisa?
- Diz,Jika.
- Amanhã num queres me convidar pra almoçar na tua casa?




A televisão mais bonita do mundo

Sempre que era para ir a algum lugar de demorar, o tio Chico dizia que íamos à «casa andeia». Nunca percebi aquilo. Era uma dica dos mais-velhos. Nem mesmo a tia Rosa fazia só o favor de me explicar. Nada. Todos riam e eu apanhava do ar. Nessa noite tio Chico falou:
-Dalinho, vamos à casa andeia.
Deviam ser umas sete da noite e fazia frio de cacimbo fresco.
Isso da «casa andeia» muitas vezes era entrão ficarmos sentados num bar com os mais-velhos a beber um monte de cerveja e a comer quase nada. Se havia outras crianças eu ainda ia brincar mas normalmente nem já isso. Os homens conversavam, a tia Rosa também bebia mas ficava muito tempo calada. Eu brincava um pouco se houvesse jardim ou mesmo na rua. Depois sentava-me no colo da tia Rosa e começava a «encher o saco», como dizia o tio Chico. Começava a perguntar se já íamos embora, dizia que tinha sono e fome, mas só me respondiam que estava quase a chegar a hora de irmos. E vinham mais cervejas. Muitas mais.
A cerveja era a bebida preferida do tio Chico. A cerveja em muita quantidade, para dizer bem as coisas. O tio Chico era uma pessoa que podia beber muita cerveja e não ficava bêbado, podia mesmo conduzir o carro dele nas calmas. Só não podia misturar. Um dia o tio Chico misturou vinho e whisky e depois mandou parar o carro que o filho dele ia a conduzir, começou a me abraçar e a falar à toa. Eu fiquei com vontade de chorar mas a tia Rosa veio me dizer que aquilo era normal. Mas se fosse só cerveja, acho que ninguém aguentava o tio Chico. Um dia, num desses lanches de fim de tarde, enquanto eu comia, ele, o amigo dele e a tia Rosa varreram assim uns trinta e nove copos de cerveja.
Desta vez o tio Chico disse que íamos à «casa andeia» mas era só a brincar. No caminho eu ouvi ele dizer à tia Rosa que íamos à casa do Lima buscar umas cadeiras para o quintal. O Lima era um senhor muito magrinho que também bebia bem, tinha os olhos sempre a brilhar e a boca sempre a sorrir. Era simpático o Lima, e devia ser amigo do tio Chico porque o tio Chico gostava de lhe chamar «o sacana do Lima». Chegámos à casa do sacana do Lima numa rua bem escura que era preciso cuidado quando andávamos para não pisar nas poças de água nem na dibinga dos cães. Eu ainda avisei a tia Rosa, «cuidado com as minas», ela não sabia que «minas» era o código para o cocó quando estava assim na rua pronto a ser pisado.
O Lima veio abrir a porta, os olhos dele brilhavam muito e trazia já na mão uma nocal bem gelada. Passou a garrafa para a mão esquerda e apertou a mão de todo o mundo, mesmo da tia Rosa, e a mão dele estava muito gelada. Isso era bom na casa do Lima, as bebidas estavam sempre a estalar, eu assim me imaginei já a saborear uma fanta bem gelada. E me deram mesmo.
Ainda estávamos no quintal, o Lima mostrou ao tio Chico as tais cadeiras encomendadas. O Lima vendia mobílias muito feias, com um aspecto assim de cadeiras que os mais-velhos adormecem quando estão na casa de alguém com um funeral e o morto também. Eu não gostava dos móveis que o Lima vendia, mas aquelas cadeirasaté eram fixes, pintadas de uma cor clara com fitas assim de um plástico verde. Da cor da cadeira comprida, verde também, que estava sempre no quintal da minha casa. Mas o tio Chico não gostou muito, disso que estavam mal soldadas e que aquilo era perigoso. O Lima riu, mas o tio Chico não estava a brincar.
-Ó meu sacana, já viste se eu sento aí a minha sogra e ela cai no chão, como é que tu vais ficar quando eu te der a noticia?
O Lima transpirava. Passou a mão na testa, olhou a cadeira.
-A malta dá um jeito nisso depois, não te preocupes. Entra, Chico.
Entrámos todos, mas até tenho que dizer aqui uma coisa. Nessa altura, em Luanda, não apareciam muitos brinquedos nem coisas assim novas. Então nós crianças, tínhamos sempre o radar ligado para qualquer coisa nova. Mal entrámos no quintal, vi uma caixa de papelão bem grande e restos de esferovite no chão. Isso só podia significar uma coisa: havia material novo naquela casa, podia ser fogão, geleira ou outra coisa qualquer, e mesmo acho que a razão de estão toda a gente com bebidas na mão. Eu tinha pensado isso tudo, mas calado e, quando entrámos, entendi; na estante, havia uma televisão nova tipo um bebe daqueles acabados de nascer. Os olhos do Lima brilharam mais ainda:
-Olha lá esta maravilha, Chico.
Foi buscar com a mão ainda fresca da cerveja um manual de instruções dentro de um plástico que cheirava a novo. Eu já nem liguei mais à gasosa, fiquei a olhar a estante com bué fotos da família do Lima.
Mandaram-nos sentar. O Lima carregou no botão e nada. Ele transpirava. Ficou triste de repente. Mexeu na tomada, acendeu e apagou a luz da sala. O tio Chico com a cerveja dele. A tia Rosa de braços cruzados. Eu à espera da imagem a qualquer momento. Olhei o cinzento da televisão e umas três luzes apareceram de repente como se fossem um semáforo maluco e tive a certeza que aquela era mesmo a televisão mais bonita do mundo. Fez um ruído tipo animal a respirar e acendeu devagarinho. Não consegui ficar calado e disse bem alto: «chéeeeeee, essa televisão é bem esculú!» e todos riram do meu espanto assim sincero: era a primeira televisão a cores que eu via na minha vida.
A imagem apareceu bem nítida e cheia de cores. Era lindo e eu nunca tinha reparado que um apresentador de televisão podia vestir uma roupa com tantas cores. Lembro-me ainda hoje: estava a dar o noticiário em língua nacional tchokwe. Ninguém entendia nada, baixaram o som. A tia Rosa disse-me «fecha a boca, vai entrar mosca», e todos riram outra vez. Não me importei.
Falaram de novo das cadeiras. O Lima dizia tudo que sim, que podia ser resolvido. Mexeu nos botões da televisão e a cor ficou ainda mais viva. Na imagem tudo já estava misturado, parecia um quadro molhado com aguarelas bem exageradas. Pensei nos meus primos, e essa hora lá na casa de Praia do Bispo, com a televisão da avó Agnette a preto-e-branco, e aquele plástico azul que até hoje não sei para que servia. Quando eu contasse da televisão a cores exageradas na casa do Lima, os primos iam me acreditar, ou será que todos iam rir e me chamar mentiroso com força?

Fiquei com inveja dos filhos do Lima que todos os dias iam ver cores naquela televisão a core: a telenovela Bem-Amado com o Odorico e o Zeca Diabo, o Verão Azul com o Tito e o Piranha, os bonecos animados do Mitchi, o Gostavo com três fios de cabelo e até a Pantera Cor-de-Rosa com o cigarro bem comprido. «Tudo a cores, com uma aguarela bem bonita», pensei, enquanto a tia Rosa me fazia festinhas na cabeça.








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