Quem sou eu

O projeto "Longa jornada livro adentro: a análise de textos literários" visa incentivar a leitura e a interpretação de textos de diferentes épocas e estilos. O grupo fará oficinas quinzenais, aos sábados pela manhã, em que se debaterão obras, tendências e outros assuntos do mundo da literatura. Aqui, você confere os tópicos em pauta, os principais itens discutidos nas reuniões e a organização para os encontros futuros. As oficinas se realizarão no auditório da UFFS.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

10ª oficina: A densidade do mínimo: minicontos/minipoemas

A Literatura é uma arte/ciência incrivelmente plástica, pois lida com um material incrivelmente instável: a Palavra. Assim, da mesma forma que existem monumentos literários como Os Lusíadas, A Divina Comédia ou Em busca do tempo perdido, existem textos literários compostos de pouco mais de uma centena de palavras. Ou até menos. Na décima oficina, a se realizar no dia 07/12, às 08 horas, no Auditório da UFFS, serão explorados aspectos formais e de conteúdo de algumas dessas pérolas mínimas, extraindo o máximo de sentidos de algumas poucas palavras.



"Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá" (Augusto Monterroso) 


Noites gélidas Merina

Rosto comprido, airosa, angelical, macia,
Por vezes, a alemã que eu sigo e que me agrada,
Mais alva que o luar de inverno que me esfria,
Nas ruas a que o gás dá noite de balada;
Sob os abafos bons que o Norte escolheria,
Com seu passarinho curto e em suas lãs forrada,
Recorda-me a elegância, a graça, a galhardia 
De uma ovelhinha branca, ingênua e delicada.



Sardenta

Tu, nesse corpo completo,
Ó láctea virgem dourada,
Tens o linfático aspecto
Duma camélia melada.
(Poemas de Cesário Verde)



 DA FELICIDADE
Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz!

DA DISCRIÇÃO
Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo do teu amigo
Possui amigos também...

DA OBSERVAÇÃO
Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...

SIMULTANEIDADE
- Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver!
- Você é louco?
- Não, sou poeta.

Do bem e do mal
Todos tem seu encanto: os santos e os corruptos.
Não há coisa na vida inteiramente má.
Tu dizes que a verdade produz frutos...
Já viste as flores que a mentira dá?




O pião (Kafka)
Um filósofo costumava circular onde brincavam crianças. E se via um menino que tinha um pião já ficava à espreita. Mal o pião começava a rodar, o filósofo o perseguia com a intenção de agarrá-lo. Não o preocupava que as crianças fizessem o maior barulho e tentassem impedi-lo de entrar na brincadeira; se ele pegava o pião enquanto este ainda girava, ficava feliz, mas só por um instante, depois atirava-o ao chão e ia embora. Na verdade, acreditava que o conhecimento de qualquer insignificância, por exemplo, o de um pião que girava, era suficiente ao conhecimento do geral. Por isso não se ocupava dos grandes problemas – era algo que lhe parecia antieconômico. Se a menor de todas as ninharias fosse realmente conhecida, então tudo estava conhecido; sendo assim só se ocupava do pião rodando. E sempre que se realizavam preparativos para fazer o pião girar, ele tinha esperança de que agora ia conseguir; e se o pião girava, a esperança se transformava em certeza enquanto corria até perder o fôlego atrás dele. Mas quando depois retinha na mão o estúpido pedaço de madeira, ele se sentia mal e a gritaria das crianças – que ele até então não havia escutado e agora de repente penetrava nos seus ouvidos – afugentava-o dali e ele cambaleava como um pião lançado com um golpe sem jeito da fieira.



( Finado Severino)
Tão perto, tão longe

 Aquele copo estava meio suspeito. Eu tive um mau pressentimento, mas estávamos em uma festa, entre amigos, o que podia dar errado?
Aqueles olhos ariscos fitaram-me pela primeira vez após meses.
– Tudo... Deu tudo errado. Aquele nojento! Desgraçado...
As lágrimas começaram a jorrar em abundância. Levantei-me para abraçá-la e, de imediato, fui repelido por um gesto brusco. Ela recolheu-se a um canto do sofá. O silêncio da sala tornou-se denso. O espaço entre nós, um deserto.

Pseudônimo: LF MG
 Fim

Era uma tarde como outra qualquer. Ninguém passava pela rua. Ninguém passava pela sua vida. Ouviu-se apenas um grito distante e um barulho cheirando à morte. Ela havia pulado do décimo quarto andar levando consigo apenas dezesseis anos de solidão e abandono. Os pais estavam do outro lado do mundo, a negócios.


( Quartzo Rosa)
 Caminhos Tortuosos

Era um menino bonito. Era inteligente. Foi crescendo. Conhecendo gente. Um dia, os amigos lhe apresentaram um bonde. Pegou o bonde errado. Eles faziam de tudo. Não cheiravam o olor das flores. Não aspiravam a brisa da manhã, a fumaça impedia. A pedra que conheciam não era a de Drummond. Levavam objetos alheios. Sentavam à margem da vida. Já não era mais bonito. A inteligência se perdera nos bolsos furados. Até que conheceu balas que não eram de hortelã.






CERÂMICA

Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara

Sem uso, 

ela nos espia do aparador.


DESCOBERTA

O dente morde a fruta envenenada

a fruta morde o dente envenenado

o veneno morde a fruta e morde o dente

o dente, se mordendo já descobre

a polpa deliciosíssima do nada.


CIDADEZINHA QUALQUER

Casas entre bananeiras

Mulheres entre laranjeiras

Pomar amor cantar

Um homem vai devagar.

Um cachorro vai devagar.

Um burro vai devagar.

Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.



Poemas  de Drummond.





quinta-feira, 7 de novembro de 2013

9ª Oficina: O ser de sonho e o ser de fato: Tabacaria, de Álvaro de Campos


Considerado o poema mais importante do século XX, segundo Antonio Tabucchi, o poema Tabacaria faz um percurso em profundidade no interior dos pensamentos/sonhos do poeta, contrapondo-se a um percurso panorâmico do exterior da rua em que mora. Na nona oficina, a se realizar no dia 09/11, às 08 horas, no auditório da UFFS, observar-se-á como se pode, ao mesmo tempo, "não ser nada" e "ter em si todos os sonhos do mundo".


           
                             TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) (ALBERTO CAEIRO)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, 15-1-1928





terça-feira, 15 de outubro de 2013

8ª oficina: A África em português: irmãos de sangue que falam além do mar

Do outro lado do Atlântico, no grande continente africano, há milhões de pessoas que compartilham o idioma português: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Timor Leste, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde. A sua compreensão de mundo, o seu resgate histórico, tudo é lançado, por meio da literatura, como pontes em busca da outra banda. Por isso, na oitava oficina, a se realizar no dia 19/10, às 08 horas, no Auditório da UFFS, vai-se mostrar como as histórias ancestrais africanas são reinventadas numa linguagem carregada de musicalidade. Em contos e poemas, nomes como Mia Couto, Agostinho Neto e Ondjaki vão mostrar que a água do Atlântico é facilmente transposta pela viagem literária.





Raízes(1955-)
Mia Couto

Uma vez um homem deitou-se, todo, em cima da terra. A areia lhe servia de almofada. Dormiu toda a manhã e quando se tentou levantar não conseguiu. Queria mexer a cabeça: não foi capaz. Chamou pela mulher e pediu-lhe ajuda.
- “Veja o que me está a prender a cabeça”.
A mulher espreitou por baixo da nuca do marido, puxou-lhe levemente pela testa. Em vão. O homem não desgrudava do chão.
- “Então, mulher? Estou amarrado?
- “Não, mando, você criou raízes.
- “Raízes?”
Já se juntavam as vizinhanças. E cada um puxava sentença. O homem, aborrecido, ordenou à esposa:
- “Corta!
- “Corta, o quê?
- “Corta essa merda das raízes ou lá o que é”...
A esposa puxou da faca e lançou o primeiro golpe. Mas logo parou.
- “Dói-lhe?
- “Quase nem. Porquê me pergunta?
- “É porque está sair sangue”.
Já ela, desistida, arrumara o facão. Ele, esgotado, pediu que alguém o destroncasse dali. “Me ajudem”, suplicou. Juntaram uns tantos, gentes da terra. Aquilo era assunto de camponês. Começaram a escavar o chão, em volta. Mas as raízes que saíam da cabeça desciam mais fundo que se podia imaginar. Covaram o tamanho de um homem e elas continuavam para o fundo. Escavaram mais que as fundações de uma montanha e não se vislumbrava o fim das radiculações.
- “Me tirem daqui”, gemia o homem, já noite.
Revesaram-se os homens, cada um com sua pá mais uma enxada. Retiraram toneladas de chão, vazaram a fundura de um buraco que nunca ninguém vira. E laborou-se semanas e meses. Mas as raízes não só não se extinguiam como se ramificavam em mais redes e novas radículas. Até que já um alguém, sabedor de planetas, disse:
- “As raízes dessa cabeça dão a volta ao mundo”.
E desistiram. Um por um se retiraram. A mulher, dia seguinte, chamou os sábios. Que iria ela fazer para desprender o homem da inteira terra? Pode-se tirar toda a terra, sacudir as remanascentes areias, disse um. Mas um outro argumentou: assim teríamos que transmudar o planeta todo inteiro, acumular um monte de terra do tamanho da terra. E o enraizado, o que que se faria dele e de todas suas raízes? Até que falou o mais velho e disse:
- “A cabeça dele tem que ser transferida”.
E para onde, santos deuses? Se entreolharam todos, aguardando pelo parecer do mais velho.
- “Vamos plantar a cabeça dele lá!”
E apontou para cima, para as celestiais alturas. Os outros devolveram a estranheza. Que queria o velho dizer?
- “Lá, na lua”.
E foi assim que, por estreia, um homem passou a andar com a cabeça na lua. Nesse dia nasceu o primeiro poeta.




Identidade

Preciso ser um outro 
para ser eu mesmo 

Sou grão de rocha 
Sou o vento que a desgasta 

Sou pólen sem insecto 

Sou areia sustentando 
o sexo das árvores 

Existo onde me desconheço 
aguardando pelo meu passado 
ansiando a esperança do futuro 

No mundo que combato morro 
no mundo por que luto nasço 

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"




O BAIRRO DA MINHA INFÂNCIA
Mia Couto


Não são as criaturas que morrem.

É o inverso:
só morrem as coisas.

As criaturas não morrem
porque a si mesmas se fazem.

E quem de si nasce
à eternidade se condena.

Uma poeira de túmulo
me sufoca o passado
sempre que visito o meu velho bairro.

A casa morreu
no lugar onde nasci:
a minha infância
não tem mais onde dormir.

Mas eis que,
de um qualquer pátio,
me chegam silvestres risos
de meninos brincando.

Riem e soletram
as mesmas folias
com que já fui soberano
de castelos e quimeras.

Volto a tocar a parede fria
e sinto em mim o pulso
de quem para sempre vive.

A morte
é o impossível abraço da água.



O CHORO DE ÁFRICA 
Agostinho Neto


O choro durante séculos
nos seus olhos traidores pela servidão dos homens
no desejo alimentado entre ambições de lufadas românticas
nos batuques choro de África
nos sorrisos choro de África
nos sarcasmos no trabalho choro de África

Sempre o choro mesmo na vossa alegria imortal
meu irmão Nguxi e amigo Mussunda
no círculo das violências
mesmo na magia poderosa da terra
e da vida jorrante das fontes e de toda a parte e de todas as almas
e das hemorragias dos ritmos das feridas de África

e mesmo na morte do sangue ao contato com o chão
mesmo no florir aromatizado da floresta
mesmo na folha
no fruto
na agilidade da zebra
na secura do deserto
na harmonia das correntes ou no sossego dos lagos
mesmo na beleza do trabalho construtivo dos homens

o choro de séculos
inventado na servidão
em historias de dramas negros almas brancas preguiças
e espíritos infantis de África
as mentiras choros verdadeiros nas suas bocas

o choro de séculos
onde a verdade violentada se estiola no circulo de ferro
da desonesta forca
sacrificadora dos corpos cadaverizados
inimiga da vida

fechada em estreitos cérebros de maquinas de contar
na violência
na violência
na violência

O choro de África e' um sintoma

Nos temos em nossas mãos outras vidas e alegrias
desmentidas nos lamentos falsos de suas bocas - por nós!
E amor
e os olhos secos.




Comboio africano
Agostinho Neto

Um comboio
subindo de difícil vale africano
chia que chia
lento e caricato

Grita e grita

quem esforçou não perdeu
mas ainda não ganhou

Muitas vidas
ensoparam a terra
onde assenta os rails
e se esmagam sob o peso da máquina
e no barulho da terceira classe

Grita e grita

quem esforçou não perdeu
mas ainda não ganhou

Lento caricato e cruel
o comboio africano…



O Voo do Jika 
  Ondjaki

O Jika era o mais novo da minha rua. Assim: o Tibas era o mais velho, depois havia o Bruno Ferraz, eu e o Jika. Nós até às vezes lhe protegíamos doutros mais-velhos que vinham fazer confusão na nossa rua. Hoje pensar no Jika é lembrar-me dele com muita ternura. Por várias coisas.
O almoço na minha casa era perto do meio-dia. Às vezes quase à uma. Ao meio-dia e quinze, o Jika tocava à campainha.
- O Ndalu está? - perguntava à minha irmã ou ao camarada António.
- Sim, está.
- Chama só, faz favor.
Eu interrompia o que estivesse a fazer, descia.
- MôJika, comé?
- Ndalu, vinha te perguntar uma coisa.
- Diz.
- Hoje num queres me convidar pra almoçar na tua casa?
- Deixinda ir perguntar à minha mãe.
Entrei. O Jika ficou ansioso na porta, aguardando a resposta. Quase sempre a minha mãe dizia sim. Só se fosse mesmo maka de pouca comida, ou muita gente que já estava combinada para o almoço. Se a Avó Chica viesse, ia trazer também a Helda, e assim já não ia dar. Mas normalmente a minha mãe dizia mesmo «sim». E ficava a rir.
- A minha mãe disse que podes - eu disse também contente.
- Ah é? - ele pareceu surpreendido. - E a que horas é que vocês vão almoçar?
- Ao meio-dia e meia, Jika.
- Então vou pedir na minha mãe.
Deixei a porta aberta. O Jika devia voltar sem demora quase nenhuma. Ouvi ele gritar contente, cá de baixo, na direcção da janela do quarto da mãe dele:
- Maaaaãe!, a tia Sita me convidou pra almoçar na casa dela. Posso?
- Podes. Mas vem mudar essa camisa suada.
O Jika deu uma esquindiva, fingiu que já tinha mudado, veio a correr numa transpiração respirada. Contente. Olhos do miúdo que ele era. Fosse o melhor programa da semana dele. E eu, mesmo miúdo candengue, fiquei a pensar nas razões do Jika não gostar nada de almoçar na própria casa dele.
O Jikatava habituado a muita gasosa. Nesse tempo, se houvesse gasosa na minha casa era pra dividir. Como nós éramos três, eu e duas irmãs, quando o Jika vinha almoçar, até a divisão corria melhor. Ele por vezes queria fugir desse ritual:
- Tia Sita, posso beber uma gasosa sozinho?
- Sozinho bebes na tua casa - a minha mãe respondeu. - Aqui divide-se.
Depois do almoço, o Jika disse que ia a casa dele buscar «uma coisa». Eu fiquei à espera, no portão aberto. Prometeu não demorar. Voltou com a tal coisa escondida debaixo do braço, e entrámos rapidamente na minha casa. Subimos ao primeiro andar, fomos até ao quarto da minha irmã Tchi, e saltámos da varanda para uma espécie de telhado. Aproximámo-nos da berma. Lá em baixo estava a relva verde do jardim. O Jika abriu um muito, muito pequenino guarda-chuva azul.
- Põe a mão aqui - ensinou-me. - Agora podemos saltar.
- Tens a certeza? - olhei lá para baixo.
- Vamos só.
E saltámos.
Hoje lembrar isso faz-me cair num brilho de lágrimas antigas e sorriso tipo cacimbo sonhado ou algo que fosse igual a isso mesmo. A infância é tão bonita. Caímos juntos na relva, magoamo-nos um bocadinho, mas sobretudo rimos. Mas o Jika teve outra ideia.
- Calmo só, môNdalu. Vou na minha casa buscar um maior.
- Não, Jika, desculpa lá. Vais saltar sozinho, eu já num vou saltar mais de guarda-chuva.
- Nem num bem grande que tenho, daqueles da praia, anti-sol e tudo, colorido tipo arco-íris?
- Nem esse!
O Jika ficou desanimado. Sem outras propostas para brincadeiras perigosas, decidiu ir pra casa. Ao cruzar o portão, falou ainda:
- Posso te perguntar uma coisa?
- Diz,Jika.
- Amanhã num queres me convidar pra almoçar na tua casa?




A televisão mais bonita do mundo

Sempre que era para ir a algum lugar de demorar, o tio Chico dizia que íamos à «casa andeia». Nunca percebi aquilo. Era uma dica dos mais-velhos. Nem mesmo a tia Rosa fazia só o favor de me explicar. Nada. Todos riam e eu apanhava do ar. Nessa noite tio Chico falou:
-Dalinho, vamos à casa andeia.
Deviam ser umas sete da noite e fazia frio de cacimbo fresco.
Isso da «casa andeia» muitas vezes era entrão ficarmos sentados num bar com os mais-velhos a beber um monte de cerveja e a comer quase nada. Se havia outras crianças eu ainda ia brincar mas normalmente nem já isso. Os homens conversavam, a tia Rosa também bebia mas ficava muito tempo calada. Eu brincava um pouco se houvesse jardim ou mesmo na rua. Depois sentava-me no colo da tia Rosa e começava a «encher o saco», como dizia o tio Chico. Começava a perguntar se já íamos embora, dizia que tinha sono e fome, mas só me respondiam que estava quase a chegar a hora de irmos. E vinham mais cervejas. Muitas mais.
A cerveja era a bebida preferida do tio Chico. A cerveja em muita quantidade, para dizer bem as coisas. O tio Chico era uma pessoa que podia beber muita cerveja e não ficava bêbado, podia mesmo conduzir o carro dele nas calmas. Só não podia misturar. Um dia o tio Chico misturou vinho e whisky e depois mandou parar o carro que o filho dele ia a conduzir, começou a me abraçar e a falar à toa. Eu fiquei com vontade de chorar mas a tia Rosa veio me dizer que aquilo era normal. Mas se fosse só cerveja, acho que ninguém aguentava o tio Chico. Um dia, num desses lanches de fim de tarde, enquanto eu comia, ele, o amigo dele e a tia Rosa varreram assim uns trinta e nove copos de cerveja.
Desta vez o tio Chico disse que íamos à «casa andeia» mas era só a brincar. No caminho eu ouvi ele dizer à tia Rosa que íamos à casa do Lima buscar umas cadeiras para o quintal. O Lima era um senhor muito magrinho que também bebia bem, tinha os olhos sempre a brilhar e a boca sempre a sorrir. Era simpático o Lima, e devia ser amigo do tio Chico porque o tio Chico gostava de lhe chamar «o sacana do Lima». Chegámos à casa do sacana do Lima numa rua bem escura que era preciso cuidado quando andávamos para não pisar nas poças de água nem na dibinga dos cães. Eu ainda avisei a tia Rosa, «cuidado com as minas», ela não sabia que «minas» era o código para o cocó quando estava assim na rua pronto a ser pisado.
O Lima veio abrir a porta, os olhos dele brilhavam muito e trazia já na mão uma nocal bem gelada. Passou a garrafa para a mão esquerda e apertou a mão de todo o mundo, mesmo da tia Rosa, e a mão dele estava muito gelada. Isso era bom na casa do Lima, as bebidas estavam sempre a estalar, eu assim me imaginei já a saborear uma fanta bem gelada. E me deram mesmo.
Ainda estávamos no quintal, o Lima mostrou ao tio Chico as tais cadeiras encomendadas. O Lima vendia mobílias muito feias, com um aspecto assim de cadeiras que os mais-velhos adormecem quando estão na casa de alguém com um funeral e o morto também. Eu não gostava dos móveis que o Lima vendia, mas aquelas cadeirasaté eram fixes, pintadas de uma cor clara com fitas assim de um plástico verde. Da cor da cadeira comprida, verde também, que estava sempre no quintal da minha casa. Mas o tio Chico não gostou muito, disso que estavam mal soldadas e que aquilo era perigoso. O Lima riu, mas o tio Chico não estava a brincar.
-Ó meu sacana, já viste se eu sento aí a minha sogra e ela cai no chão, como é que tu vais ficar quando eu te der a noticia?
O Lima transpirava. Passou a mão na testa, olhou a cadeira.
-A malta dá um jeito nisso depois, não te preocupes. Entra, Chico.
Entrámos todos, mas até tenho que dizer aqui uma coisa. Nessa altura, em Luanda, não apareciam muitos brinquedos nem coisas assim novas. Então nós crianças, tínhamos sempre o radar ligado para qualquer coisa nova. Mal entrámos no quintal, vi uma caixa de papelão bem grande e restos de esferovite no chão. Isso só podia significar uma coisa: havia material novo naquela casa, podia ser fogão, geleira ou outra coisa qualquer, e mesmo acho que a razão de estão toda a gente com bebidas na mão. Eu tinha pensado isso tudo, mas calado e, quando entrámos, entendi; na estante, havia uma televisão nova tipo um bebe daqueles acabados de nascer. Os olhos do Lima brilharam mais ainda:
-Olha lá esta maravilha, Chico.
Foi buscar com a mão ainda fresca da cerveja um manual de instruções dentro de um plástico que cheirava a novo. Eu já nem liguei mais à gasosa, fiquei a olhar a estante com bué fotos da família do Lima.
Mandaram-nos sentar. O Lima carregou no botão e nada. Ele transpirava. Ficou triste de repente. Mexeu na tomada, acendeu e apagou a luz da sala. O tio Chico com a cerveja dele. A tia Rosa de braços cruzados. Eu à espera da imagem a qualquer momento. Olhei o cinzento da televisão e umas três luzes apareceram de repente como se fossem um semáforo maluco e tive a certeza que aquela era mesmo a televisão mais bonita do mundo. Fez um ruído tipo animal a respirar e acendeu devagarinho. Não consegui ficar calado e disse bem alto: «chéeeeeee, essa televisão é bem esculú!» e todos riram do meu espanto assim sincero: era a primeira televisão a cores que eu via na minha vida.
A imagem apareceu bem nítida e cheia de cores. Era lindo e eu nunca tinha reparado que um apresentador de televisão podia vestir uma roupa com tantas cores. Lembro-me ainda hoje: estava a dar o noticiário em língua nacional tchokwe. Ninguém entendia nada, baixaram o som. A tia Rosa disse-me «fecha a boca, vai entrar mosca», e todos riram outra vez. Não me importei.
Falaram de novo das cadeiras. O Lima dizia tudo que sim, que podia ser resolvido. Mexeu nos botões da televisão e a cor ficou ainda mais viva. Na imagem tudo já estava misturado, parecia um quadro molhado com aguarelas bem exageradas. Pensei nos meus primos, e essa hora lá na casa de Praia do Bispo, com a televisão da avó Agnette a preto-e-branco, e aquele plástico azul que até hoje não sei para que servia. Quando eu contasse da televisão a cores exageradas na casa do Lima, os primos iam me acreditar, ou será que todos iam rir e me chamar mentiroso com força?

Fiquei com inveja dos filhos do Lima que todos os dias iam ver cores naquela televisão a core: a telenovela Bem-Amado com o Odorico e o Zeca Diabo, o Verão Azul com o Tito e o Piranha, os bonecos animados do Mitchi, o Gostavo com três fios de cabelo e até a Pantera Cor-de-Rosa com o cigarro bem comprido. «Tudo a cores, com uma aguarela bem bonita», pensei, enquanto a tia Rosa me fazia festinhas na cabeça.








quarta-feira, 25 de setembro de 2013

7ª Oficina: Cavaleiros e mia senhor fremosa: a sonorosa Idade Média

Nos primeiros séculos da literatura de língua portuguesa (XIII-XV), o idioma ainda se construía como galaico-português, e orbitava assuntos da corte, de reis e heróis. Como sétima oficina, a se realizar no dia 28/09, às 08h, no Auditório da UFFS, vai-se fazer uma viagem no tempo passado, saboreando a linguagem e formas da Idade Média. Inicialmente, pela pena de Fernão Lopes, episódios de reis e heróis tomarão parte. Depois, as cantigas trovadorescas embalarão amores e escárnios. Em seguida, mostrar-se-á o ciclo arturiano, com a Demanda do Santo Graal. Por fim, nas alegorias de Gil Vicente, os tipos sociais e religiosos desfilarão para ligar-se à realidade.


CAPITULO XLIV - Como foi trasladada Dona Ignez para o mosteiro de Alcobaça, e da morte d'el-rei Dom Pedro.

   Porque semelhante amor, qual el-rei Dom Pedro houve a Dona Ignez, raramente é achado em alguma pessoa, porém disseram os antigos que nenhum é tão verdadeiramente achado, como aquelle cuja morte não tira da memoria o grande espaço do tempo. E se algum disser que muitos foram já, que tanto e mais que elle amaram, assim como Adriana, e Dido, e outras que não nomeamos, segundo se lê em suas epistolas, responde-se que não falamos em amores compostos, os quaes alguns autores abastados de eloquencia, e florescentes em bem ditar, ordenaram segundo lhes prouve, dizendo em nome de taes pessoas razões que nunca nenhuma d'ellas cuidou; mas falamos d'aquelles amores que se contam e lêem nas historias, que seu fundamento teem sobre verdade.
  Esse verdadeiro amor houve el-rei Dom Pedro a Dona Ignez, como se d'ella namorou sendo casado e ainda infante, de guisa que, pero d'ella no começo perdesse vista e fala, sendo alongado, como ouvistes, que é o principal azo de se perder o amor, nunca cessava de lhe enviar recados, como em seu logar tendes ouvido. Quanto depois trabalhou pela haver, e o que fez por sua morte, e quaes justiças n'aquelles que em ella foram culpados, indo contra seu juramento, bem é testemunho do que nós dizemos.

            E sendo lembrado de lhe honrar seus ossos, pois lhe já mais fazer não podia, mandou fazer um moimento de alva pedra, todo mui subtilmente obrado, pondo elevada sobre a campa de cima a imagem d'ella, com corôa na cabeça, como se fôra rainha. E este moimento mandou pôr no mosteiro de Alcobaça, não á entrada, onde jazem os reis, mas dentro na egreja, á mão direita, a cerca da capella-mór.
     E fez trazer o seu corpo do mosteiro de Santa Clara de Coimbra, onde jazia, o mais honradamente que se fazer pode, cá ella vinha em umas andas, muito bem corrigidas para tal tempo, as quaes traziam grandes cavalleiros, acompanhadas de grandes fidalgos, e muita outra gente, e donas, e donzellas e muita clerezia.
      Pelo caminho estavam muitos homens com cirios nas mãos, de tal guisa ordenados, que sempre o seu corpo foi, por todo o caminho, por entre cirios accesos; e assim chegaram até ao dito mosteiro, que eram d'alli dezesete leguas, onde com muitas missas e grão solemnidade foi posto seu corpo n'aquelle moimento. E foi esta a mais honrada trasladação que até áquelle tempo em Portugal fôra vista.
     Semelhavelmente mandou el-rei fazer outro tal moimento, e tambem obrado, para si, e fêl-o pôr a cerca do seu d'ella, para quando acontecesse de morrer o deitarem n'elle.
      E estando el-rei em Estremoz, adoeceu de sua postremeira dôr, e jazendo doente, lembrou-se como, depois da morte de Alvaro Gonçalves e Pero Coelho, elle fôra certo que Diogo Lopes Pacheco não fôra em culpa da morte de Dona Ignez, e perdoou-lhe todo queixume que d'elle havia, e mandou que lhe entregassem todos seus bens: e assim o fez depois el-rei Dom Fernando, seu filho, que lh'os mandou entregar todos, e lhe alçou a sentença, que el-rei seu padre contra elle passára, quanto com direito poude.
        E mandou el-rei em seu testamento, que lhe tivessem em cada um anno, para sempre, no dito mosteiro, seis capellães que cantassem por elle cada dia uma missa officiada, e sairem sobre ella com cruz e agua benta. E el-rei Dom Fernando, seu filho, por se isto melhor cumprir, e se cantarem as ditas missas, deu depois ao dito mosteiro, em doação por sempre, o logar que chamam as Paredes, termo de Leiria, com todas as rendas e senhorio que n'elle havia.

            E deixou el-rei Dom Pedro, em seu testamento, certos legados, a saber: á infante Dona Beatriz, sua filha, para casamento, cem mil libras; e ao infante Dom João, seu filho, vinte mil libras; e ao infante Dom Diniz, outras vinte mil; e assim a outras pessoas.

            E morreu el-rei Dom Pedro uma segunda-feira de madrugada, dezoito dias de janeiro da era de mil e quatrocentos e cinco annos, havendo dez annos e sete mezes e vinte dias, que reinava, e quarenta e sete annos e nove mezes e oito dias de sua idade. E mandou-se levar áquelle mosteiro que dissemos, e lançar em seu moimento, que está junto com o de Dona Ignez.
        E porquanto o infante Dom Fernando, seu primogenito filho, não era então ahi, foi el-rei detido e não levado logo, até que o infante veiu; e á quarta-feira foi posto no moimento.
       E diziam as gentes, que taes dez annos nunca houve em Portugal, como estes que reinára el-rei Dom Pedro.


CRÔNICA DE D. PEDRO I
CAPITULO XXXI - Como Diogo Lopes Pacheco escapou de ser preso, e foram entregues os outros, e logo mortos cruelmente.

 (...)      Quando el-rei de Castella soube que Diogo Lopes não fôra tomado, houve grão queixume e não poude mais fazer: então enviou Alvaro Gonçalves e Pero Coelho, bem presos e arrecadados, a el-rei de Portugal, seu tio, segundo era ordenado entres elles. E quando chegaram ao extremo, acharam ahi Mem Rodriguez Tenorio, e os outros castelhanos, que lhe el-rei Dom Pedro enviava. E alli dizia depois Diogo Lopes, falando n'esta historia, que se fizera o troco de burros por burros.

            E foram levados a Sevilha, onde el-rei então estava, aquelles fidalgos que já nomeámos, e alli os mandou el-rei matar a todos.

            A Portugal foram trazidos Alvaro Gonçalves e Pero Coelho, e chegaram a Santarem, onde el-rei era. El-rei, com prazer de sua vinda, porém mal magoado porque Diogo Lopes fugira, os saiu fóra a receber, e, sanha cruel, sem piedade os fez por sua mão metter a tormento, querendo que lhe confessassem quaes foram na morte de Dona Ignez culpados, e que era que seu padre tratava contra elle, quando andavam desavindos por azo da morte d'ella. E nenhum d'elles respondeu a taes perguntas cousa que a el-rei prouvesse.

            E el-rei, com queixume, dizem que deu um açoute no rosto a Pero Coelho, e elle se soltou então contra el-rei em deshonestas e feias palavras, chamando-lhe traidor, á fé perjuro, algoz e carniceiro dos homens. E el-rei, dizendo que lhe trouxessem cebola, vinagre, e azeite para o coelho, enfadou-se d'elles, e mandou-os matar.

            A maneira de sua morte, sendo dita pelo miudo, seria mui estranha e crua de contar, cá mandou tirar o coração pelos peitos a Pero Coelho, e a Alvaro Gonçalves pelas espaduas. E quaes palavras houve e aquelle que lh'o tirava, que tal officio havia pouco em costume, seria bem dorida cousa de ouvir. Emfim, mandou-os queimar. E tudo feito ante os paços onde elle pousava, de guisa que comendo olhava quanto mandava fazer.

            Muito perdeu el-rei de sua boa fama por tal escambo como este, o qual foi havido, em Portugal e em Castella, por mui grande mal, dizendo todos os bons que o ouviam, que os reis erravam mui muito indo contra suas verdades, pois que estes cavalleiros estavam, sobre segurança, acoutados em seus reinos.





A dona fremosa do Soveral
Lopo Lias

Outrossitrobou a ũa dona, que nom havia prez de mui salva; e el disse que lhi dera de seus dinheiros por preit'atal que fezesse por elalgũa cousa, e pero nom quis por el fazer nada; por en fez estes cantares de maldizer.

A dona fremosa do Soveral
há de mi dinheiros per preit'atal:
queveess'a mi, u nomhouvess'al,
um dia talhado, a cas Dom Corral;
e é perjurada,
canom fez en nada;
e baratou mal,
ca desta negada
será penhorada
quedobr'o sinal.

Se m'ela crever, cuido-m'eu, dar-lh'-ei
o melhor conselho que hoj'eu sei:
dê-mi meu haver e gracir-lho-ei;
[e] se mi o nom der, penhorá-la-ei:
ca mi o tem forçado,
docorp'alongado,
nomlho sofrerei;
mais, polo meu grado,
dar-mi-á bem dobrad'o
sinal que lh'eu dei.



A maior coita que eu no mund'hei
Airas Carpancho

A maior coita que eu no mund'hei:
[a] meu amigo nom lh'ouso falar;
é amigo que nunca desejar
soub'outra rem, senom mi, eu o sei;
e, se o eu por mi leixar morrer,
serágramtort', e nom hei de fazer,

que lh'eu quisesse, bem, de coraçom,
qual a mim quer o meu, des que me viu;
enulh'amor nunca de mim sentiu
e foi coitado por mi desentom;
e, se o eu por mi leixar morrer,
serágramtort', e nom hei de fazer,

quelhi quisesse, bem - qual a mim quer
o meu, que tammuit'há que desejou
meu bem fazer, e nunca lhi prestou,
e será morto, se lh'eu nom valer,
e, se o eu por mi leixar morrer,
serágramtort', e nom hei de fazer

o maior torto que pode seer:
leixar dona seu amigo morrer.



Ando coitado por ver
João Lopes de Ulhoa

Ando coitado por veer
um home que aqui chegou,
que dizem que viu mia senhor;
edirá-me se lhe falou.
E falarei com elmuit'i
emquammuit'há que a nom vi.

Por amor de Deus, quen'o vir,
diga-lhe que sa prol será
de me veer. E veê'-l'-ei
porque a viu, e falar-mi-á.
 E falarei com elmuit'i
emquammuit'há que a nom vi.

Ca muito per há gram sabor,
quem senhor ama, de falar
en'ela, se acha com quem;
e por en vou aquel buscar!
E falarei com elmuit'i
emquammuit'há que a nom vi.

Pero sei eu dela, de pram,
canom m'enviou rem dizer,
mas do hom'hei eu gram sabor,
porque a viu, de o veer.
       E falarei com elmuit'i
      emquammuit'há que a nom vi.

Ca nunca vi, des que a vi,
outro prazer, se a nom vi.



Ciclo Arturiano
Demanda do Santo Graal
(século XIII)

25. Como os da mesa redonda tiveram agraça do Santo Graal
Grande foi a alegria e o prazer que os cavaleirosda távola redonda tiveram aqueledia, quando se viram todos reunidos. Esabei que, desde que a Távola Redondacomeçou, nunca todos assim foram reunidos, masaquele dia, sem falha, aconteceu queestavam lá todos, mas depois, nunca denovo estiveram.
Contra a noite, depois de vésperas, quandose assentaram às mesas, ouviram virum trovão tão grande e tão espantoso,que lhes pareceu que todo o castelo caía.E logo depois que o trovão deu, entrouuma tão grande claridade, que tornou ocastelo duas vezes mais claro que era antes.E quantos no palácio estavam sentados,logo todos foram repletos da graçado Espírito Santo e começaram a olharuns aos outros, e viram-se muito maisformosos, muito mais do que costumavamser, e maravilharam-se muito do queaconteceu e não houve quem pudessefalar por muito grande tempo, antes estavamcalados e olhavam-se uns aos outros.E eles assim estando sentados, entrouno castelo o santo Graal, coberto de um
veludo branco; mas não houve um quevisse quem o trazia. E assim que entrou,foi o palácio todo repleto de bom odor,como se todos os perfumes do mundo láestivessem. E ele foi para o meio do paço,de uma parte e da outra, ao redor dasmesas. E por onde passava, logo todas asmesas ficavam repletas de tal alimento,qual em seu coração desejava cada um.E depois que teve cada um o de que houve mister a seu prazer, saiu o santo Graal do palácioque ninguém soube o que fora dele,nem por qual porta saíra. E os que antesnão podiam falar, falaram então. E deramgraças a Nosso Senhor, que lhes fazia tãogrande honra e os confortara e abundarada graça do Santo Vaso. Mas sobre todosaqueles que alegres estavam, mais oestava rei Artur, porque maior graça lhemostrara Nosso Senhor que a nenhum reique antes reinasse em Grã-Bretanha.Disto foram maravilhados quantos lá estavam,porque bem lhes pareceu quese lembrara Deus deles, e falaram muitodisso. E o rei disse aos que perto dele estavam:
– Com certeza, amigos, muito devíamosestar alegres, que Deus nos mostrou tãogrande sinal de amor, que em tão boa festacomo hoje, de Pentecostes, nos deu acomer de seu santo celeiro.

26. Como Galvão começou a demanda do santo Graal
Galvão que sentava diante do rei, disse:
- Senhor, ainda há outra cousa que não imaginais. Sabei que não há cavaleiro no paço que não houvesse de comer o que pensou cada um em seu coração. E isto nunca houve em nenhuma corte, senão na casa do reiPeles. Mas tanto fomos enganados que o não vimos senão coberto. Quanto em mim é, prometo agora a Deus e a toda cavalaria que, de manhã, se me Deus quiser atender, entrarei na demanda do santo Graal, assim que a manterei um ano e um dia e, porventura mais; e ainda mais digo: jamais voltarei à corte, por cousa que aconteça, até que melhor e mais a meu prazer veja o que ora vi; mas se não puder ser, voltarei então.

27. Como os da mesa redonda começaram a demanda do santo Graal
Quando os cavaleiros da távola redonda ouviram que aquele era Galvão e viram o que disse, pararam até de comer; mas assim que as mesas foram tiradas, foram todos ante o rei e fizeram aquela promessa que fizera Galvão, e disseram que jamais deixariam de andar até que vissem a tal mesa e tão saborosos manjares e tão bem preparados, como eram aqueles que aquele dia comeram, se era cousa que lhes outorgada fosse por dificuldade e por esforço que sofrer pudessem.


109. Como a filha do rei Brutos começou a amar Galaaz
Aquele castelo tinha onome Brut e seria bem assentado, se tivesse provisão de água. E o senhor daquelecastelo era rei e tinha o nome Brutos, por amor daquele que o povoara primeiro. E sabeique o domínio daquele castelo se estendia por todos os lados uma jornada. AqueleBrutos, que então reinava, era um dos bons cavaleiros do mundo e muito rico àmaravilha, e havia muito conquistado por sua cavalaria, e tinha uma filha de quinzeanos que era a mais formosa donzela do reino de Logres. E naquele momento que oscavaleiros vieram, estava o rei encostado a uma janela em seu palácio. E quando os viuassim armados vir e sem companhia, viu que eram cavaleiros andantes, e ficou muitoalegre com eles, porque muito amara sempre a cavalaria e aqueles que a ela sededicavam. Então lhes mandou dizer por dois cavaleiros que vieram com ele pousar,porque não queria que pousassem com outrem. Quando Galaaz e Boorz ouviram seurecado, consideraram que era ensinado a boa barba e agradeceram-lho muito e foramcom os cavaleiros. E depois que estavam dentro e foram desarmados, o rei os fezassentar perto de si e fez-lhes muita honra e começou a perguntar de seus feitos.E eleslhe disseram um pouco de algumas coisas. E a filha do rei Brutos, que era muitoformosa, olhou muito tempo Galaaz e parecia tão formoso e tão perfeito que o amouentranhadamente, como nunca amou tanto nada no mundo, que não tirava dele os olhos;e quanto mais o olhava, mais gostava dele e mais o amava.


110. Como a ama perguntou à donzela porque chorava
Assim amou a donzelaGalaaz, mas nunca o vira nem soubera que coisa era amor, e olhava Galaaz e prezava-otanto em seu coração, mais que todas as coisas e como nunca mulher homem prezou; epor isso lhe parecia que, se o não tivesse à sua vontade, morreria. E por isto o cuidavaela conseguir muito facilmente, porque o cavaleiro era muito jovem e muito formoso. Eela cuidava que de bom grado concordaria com tal coisa, porque ela era das maisformosas mulheres do reino de Logres. E isto a confortava, porque ele era cavaleirojovem. E por isso cuidava acabar mais cedo seu desejo. Mas estava em seu íntimo tãotriste porque, se fizesse algum intento de que o queria amar, isto lhe seria tomado pormal, se o soubesse; e, se alguma coisa não fizesse para ter aquilo que desejava, o nãopoderia suportar. Isto imaginou a donzela, enquanto seu pai estava falando com oscavaleiros. E depois pensou tanto que não pôde mais, foi para a câmara e deixou-se cairem seu leito e começou a fazer tão grande lamentação, como se tivesse seu pai mortodiante de si. Mas não gritava, chorava tão intimamente que maravilha era. E ela assimfazendo seu lamento, entrou sua ama, que era mulher de grande experiência, que acriara desde pequena e a amava como se fosse sua filha. E quando viu a donzela chorartão sentidamente, maravilhou-se. E disse:
— Ai, senhora! O que tendes? Alguém vos fez algum pesar? Dizei, minhasenhora, por que chorais, e eu vos darei algum conselho, por que nunca estarei alegre,enquanto estiverdes triste.
(...)
— Eu amo tanto um destes cavaleiros andantes que aqui estão que, se o não tiverà minha vontade, não chegarei a amanhã, antes matarei com minhas mãos.
Quando a mulher ouviu isto, teve tão grande pesar que não soube o que fizesse,porque bem sabia que, se a donzela tivesse o cavaleiro à sua vontade, não podia ser queo rei não soubesse, cedo ou tarde; e quando soubesse que o cavaleiro com ela estava,eleera tão bravo que mataria a donzela e quantos a ajudassem nisso.

112. Como a ama disse à donzela que tivesse juízo
Então lhe disse a mulher:
— Ai, louca, mesquinha e infeliz, se é isto que me dizeis, ou perdestes o juízo,ou estais encantada, porque sois donzela de alta posição e sois tão formosa, e pondesvosso coração em tão pobre cavaleiro estranho, que não conheceis. E se esta noite aquiestiver, não sucederá assim aqui de manhã, nem ficará aqui, por lhe dar vosso pai todasua terra. Guardai o que dizeis e o que pensais e o que vos poderá acontecer. Ai, louca, ecomo ousastes isto pensar? Certamente, se vosso pai souber, todo o mundo não vos
poderá valer, que vos não corte a cabeça.
Quando a donzela ouviu isto, ficou tão espantada que bem quisera estar morta,porque do cavaleiro não podia livrar o coração de modo algum, antes se esforçaria parater de todo o modo o que pensava. De novo, desconfortava-a muito a braveza de seu pai.A donzela, que nestas coisas pensava, chorava ainda. E quando falou, disse:
— Ai, desgraçada, infeliz e a mais maldita coisa do mundo, maldita seja a horaem que eu nasci!
— Ora, dizei-me – disse a ama -, parece-vos bom conselho o que vos dei delivrardes vosso coração daquele cavaleiro?
— Sim – disse ela – a quem pudesse fazer de seu coração o que quer.
— Convém – disse ela – que o façais, se não quereis ser ludibriada.
— Dona – disse – eu o farei, pois vejo que outra coisa não se prepara agora paraacontecer.

113. Como a donzela fala consigo em amor por Galaaz
Assim disse a donzelapara se encobrir, mas outra coisa tinha no coração e mostrou aquela tarde. Depois queambos os cavaleiros numa câmara, a donzela, que bem cuidava que já dormiam e quesabia o leito de Galaaz, saiu de seu leito em trajes de dormir, embora muito vergonhosae com grande pesar de que havia de fazer contra sua vontade o que o amor lhe mandava,porque, por sua má sorte, tinha a donzela de rogar o cavaleiro. E depois que ela veio àcâmara onde eles deitavam, entrou e ficou tão espantada que não soube o que fazer. Mastornou em seu primeiro pensar que o amor lhe aconselhava e esforçou-se tanto, contrasua vontade, que a foi a Galaaz e ergueu o cobertor e deitou-se ao lado dele. E Galaaz,que dormia muito pesadamente, pelo trabalho que tivera, não despertou. Quando adonzela viu que dormia, não soube o que fizesse, porque, se o despertasse, tê-lo-ia porloucura e que assim costumava fazer aos outros que aí vinham, e haveria nisso maiorsanha, quando visse que assim se denodava, sem rogo. Então disse dentro de si, em vozbaixa:
— Infeliz, ludibriada sou e aviltada e nunca terei honra em nada que faça,quando, para meu pecado e para meu feito e sem pedir, vim deitar com este cavaleiroestranho, que não sabe nada da minha vida.
Depois disse:
— Ai, louca e néscia, que é isto que dizes? Tu não poderás fazer nada por essecavaleiro que não te sejas vergonha e desonra.
E ela cuidava que, depois que fosse deitar ao lado dele, cumpriria ele seu intento;e de modo algum não cuidava, pois ela era tão formosa e de tão alta posição, que elefosse tão vilão, que não cumprisse sua vontade. Então chegou-se a ele mais que antes epôs a mão nele muito devagar para desperta-lo; mas, quando sentiu a estamenha que ocavaleiro vestia, porque sem estamenha nunca ele estava nem de noite nem de dia, elaficou tão espantada que disse logo:
— Ai, infeliz, que é isso que vejo? Não é ele cavaleiro dos cavaleiros andantes,que dizem que são namorados, mas é daqueles cuja vida e alegria está sempre empenitência, pela qual lhes advém grande bem para o outro mundo, e perdoa Deusaqueles que erro tiverem feito contra ele. E por nada – disse ela – posso acabar com eleo que queria. E como quer que este cavaleiro seja alegre para parecer, grande é osofrimento de sua carne e mostra bem que o seu coração pensa em coisa diferente doque a minha carne mesquinha infeliz já pensava. Este é dos verdadeiros cavaleiros dademanda do santo Graal e em má hora foi tão formoso para mim.Então começou a chorar e fazer seu lamento o mais baixo que pôde, para quenão a ouvissem.

114. Como dom Galaaz achou a donzela consigo no leito
Ao cabo de algumtempo, despertou-se Galaaz e virou-se para a donzela, e, quando a sentiu, maravilhou-see abriu os olhos. E quando viu que era donzela, espantou-se e ficou muito sanhudo eafastou-se dela quanto lhe o leito permitiu, persignou-se e disse:
— Ai,donzela! Quem voz mandou aqui certamente mau conselho vos deu; e eucuidava que de outra natureza éreis vós. E rogo-vos, por cortesia e por vossa honra, quevos vades daqui, por que, com certeza, o vosso louco pensar não entenderei eu, se Deusquiser, pois mais devo recear perigo de minha alma do que fazer vossa vontade.

115. Como a donzela ameaçava Galaaz
Quando a donzela ouviu isto teve tãogrande pesar que não soube o que fizesse, porque a resposta de Galaaz que ela amavasobejo lhe fez perder o senso e todo o ânimo. E ele lhe disse:
— Ai, donzela! Desatinada estais; lembrai-vosde vossa situação e olhai a altura de vossa linhagem ede vosso pai e fazei que não tomem desonra por vós.
Quando a donzela ouviu isto, respondeu comomulher fora do juízo:
— Senhor, não há necessidade disso, pois quetão pouco me prezais, que de modo algum não quereissenão matar-me. E a morte está comigo logo, porqueme matarei com minha mãos e terei por isto maiorpecado do que se me tivésseis convosco, porque sois arazão de minha morte, e vós ma podeis impedir, sequiserdes.
E Galaaz não soube o que dissesse, e disse àdonzela que, se se matasse como dizia e por tal razão,bem entendesse que não daria nada por sua morte; epor outro lado lhe disse que, se fosse a mais formosaque Nosso Senhor tivesse feito, ele não olharia maispara ela; e disse-lhe que mais lhe valeria ficar emvirgindade, porque se lhe os outros fizesse tanto comoele, bem poderia ser que morresse virgem. E a donzelaque estava toda paralisada, quando viu que de Galaaznão poderia ter seu prazer, disse:
— Como? cavaleiro, ainda quereis ser tão vilãoque me não quereis outra coisa fazer?
— Não – disse ele.
— Bem vos digo, e bem estai seguro, por boa-fé – disse ela – isto será loucura,porque morrereis antes que daqui saias.
— Não sei – disse ele – o que será; mas se fosse isso, antes eu quereria morrerfazendo lealdade do que escapar e cometer um erro, o que não quereria.

116. Como a donzela se matou por amor de Galaaz
Depois que ouviu isto, nãoesperou mais, antes saiu do leito e foi correndo à espada de Galaaz, que pendia à entradada porta da câmara, e sacou-lhe da bainha e pagou-a com ambas as mãos e disse aGalaaz:
— Senhor cavaleiro, vedes aqui o engano que havia nos meus primeiro amores.E mau dia fostes tão formoso que tão caro me convirá comprar vossa beleza.
Quando Galaaz viu que ela já tinha a espada na mão e que se queria ferir com ela,saiu do leito todo espantado e gritou-lhe:
— Ai, boa donzela! Tem um pouco de paciência e não te mates assim, que fareitodo teu prazer.
E ela, que estava tão aflita que não poderia mais, respondeu com raiva:
— Senhor cavaleiro, tarde mo dissestes.Então ergueu a espada e feriu-se com toda a sua força por meio do peito demodo que a espada atravessou. E caiu por terra morta, que não falou mais nada.




O VELHO DA HORTA (Gil Vicente)
Esta seguinte farsa é o seu argumento que um homem honrado e muito rico, já velho, tinha uma horta: e andando uma manhã por ela espairecendo, sendo o seu hortelão fora, veio uma moça de muito bom parecer buscar hortaliça, e o velho em tanta maneira se enamorou dela que, por via de uma alcoviteira, gastou toda a sua fazenda. A alcoviteira foi açoitada, e a moça casou honradamente. Entra logo o velho rezando pela horta. Foi representada ao mui sereníssimo rei D. Manuel, o primeiro desse nome. Era do Senhor de M.D.XII.
VELHO: Pater noster criador, Qui es in coelis, poderoso, Santificetur, Senhor, nomen tuum vencedor, nos céu e terra piedoso. Adveniat a tua graça, regnum tuum sem mais guerra; voluntas tua se faça sicut in coelo et in terra. Panem nostrum, que comemos, cotidianum teu é; escusá-lo não podemos; inda que o não mereceremos tu da nobis. Senhor, debita nossos errores, sicut et nos, por teu amor, dimittius qualquer error, aos nosso devedores. Et ne nos, Deus, te pedimos, inducas, por nenhum modo, in tentationem caímos porque fracos nos sentimos formados de triste lodo. Sed libera nossa fraqueza, nos a malo nesta vida; Amen, por tua grandeza, e nos livre tua alteza da tristeza sem medida.
Entra a MOÇA na horta e diz o VELHO:
 Senhora, benza-vos Deus,
MOÇA: Deus vos mantenha, senhor.
VELHO: Onde se criou tal flor? Eu diria que nos céus.
MOÇA: Mas no chão.
VELHO: Pois damas se acharão que não são vosso sapato!
 MOÇA: Ai! Como isso é tão vão, e como as lisonjas são de barato!
VELHO: Que buscais vós cá, donzela, senhora, meu coração?
MOÇA: Vinha ao vosso hortelão, por cheiros para a panela.
VELHO: E a isso vinde vós, meu paraíso. Minha senhora, e não a aí?
MOÇA: Vistes vós! Segundo isso, nenhum velho não tem siso natural.
VELHO :Ó meus olhinhos garridos, mina rosa, meu arminho!
MOÇA: Onde é vosso ratinho? Não tem os cheiros colhidos?
VELHO: Tão depressa vinde vós, minha condensa, meu amor, meu coração!
MOÇA: Jesus! Jesus! Que coisa é essa? E que prática tão avessa da razão!
VELHO: Falai, falai doutra maneira! Mandai-me dar a hortaliça. Grão fogo de amor me atiça, ó minha alma verdadeira!
MOÇA: E essa tosse? Amores de sobreposse serão os da vossa idade; o tempo vos tirou a posse.
VELHO: Mas amo que se moço fosse com a metade.
MOÇA: E qual será a desastrada que atende vosso amor?
VELHO: Oh minha alma e minha dor, quem vos tivesse furtada!
MOÇA: Que prazer! Quem vos isso ouvir dizer cuidará que estais vivo, ou que estai para viver!
VELHO: Vivo não no quero ser, mas cativo!
MOÇA:Vossa alma não é lembrada que vos despede esta vida?
VELHO: Vós sois minha despedida, minha morte antecipada.
MOÇA: Que galante! Que rosa! Que diamante! Que preciosa perla fina!
VELHO: Oh fortuna triunfante! Quem meteu um velho amante com menina! O maior risco da vida e mais perigoso é amar, que morrer é acabar e amor não tem saída, e pois penado, ainda que amado, vive qualquer amador; que fará o desamado, e sendo desesperado de favor?
MOÇA: Ora, dá-lhe lá favores! Velhice, como te enganas!
VELHO: Essas palavras ufanas acendem mais os amores.
MOÇA: Bom homem, estais às escuras! Não vos vedes como estais?
VELHO: Vós me cegais com tristuras, mas vejo as desaventuras que me dais.
MOÇA: Não vedes que sois já morto e andais contra a natura?
VELHO: Oh flor da mor formosura! Quem vos trouxe a este meu horto? Ai de mim! Porque, logo que vos vi, cegou minha alma, e a vida está tão fora de si que, partindo-vos daqui, é partida.
MOÇA: Já perto sois de morrer. Donde nasce esta sandice que, quanto mais na velhice, amais os velhos viver? E mais querida, quando estais mais de partida, é a vida que deixais?
VELHO: Tanto sois mais homicida, que, quando amo mais a vida, ma tirais. Porque meu tempo d’agora vai vinte anos dos passados; pois os moços namorados a mocidade
os escora. Mas um velho, em idade de conselho, de menina namorado... Oh minha alma e meu espelho!
MOÇA: Oh miolo de coelho mal assado!
VELHO: Quanto for mais avisado quem de amor vive penando, terá menos siso amando, porque é mais namorado. Em conclusão: que amor não quer razão, nem contrato, nem cautela, nem preito, nem condição, mas penar de coração sem querela.
MOÇA: Onde há desses namorados? A terra está livre deles! Olho mau se meteu neles! Namorados de cruzados, isso si!...
VELHO: Senhora, eis-me eu aqui, que não sei senão amar. Oh meu rosto de alfeni! Que em hora má eu vos vi.
MOÇA: Que velho tão sem sossego!
VELHO: Que garridice me viste?
MOÇA: Mas dizei, que me sentiste, remelado, meio cego?
VELHO: Mas de todo, por mui namorado modo, me tendes, minha senhora, já cego de todo em todo.
MOÇA: Bem está, quando tal lodo se namora.
VELHO: Quanto mais estais avessa, mais certo vos quero bem.
MOÇA: O vosso hortelão não vem? Quero-me ir, que estou com pressa.
VELHO: Que fermosa! Toda a minha horta é vossa.
MOÇA: Não quero tanta franqueza.
VELHO: Não pra me serdes piedosa, porque, quanto mais graciosa, sois crueza. Cortai tudo, é permitido, senhora, se sois servida. Seja a horta destruída, pois seu dono é destruído.
MOÇA: Mana minha! Julgais que sou a daninha? Porque não posso esperar, colherei alguma coisinha, somente por ir asinha e não tardar.
VELHO: Colhei, rosa, dessas rosas! Minhas flores, colhei flores! Quisera que esses amores foram perlas preciosas e de rubis o caminho por onde is, e a horta de ouro tal, com lavores mui sutis, pois que Deus fazer-vos quis angelical. Ditoso é o jardim que está em vosso poder. Podeis, senhora, fazer dele o que fazeis de mim.
MOÇA: Que folgura! Que pomar e que verdura! Que fonte tão esmerada!
 VELHO: N’água olhai vossa figura: vereis minha sepultura ser chegada.
(....)
Vem uma MOCINHA à horta e diz:
Vedes aqui o dinheiro? Manda-me cá minha tia, que, assim como no outro dia, lhe
mandeis a couve e o cheiro. Está pasmado?
VELHO: Mas estou desatinado.
MOCINHA: Estais doente, ou que haveis?
VELHO: Ai! Não sei! Desconsolado, que nasci desventurado!
MOCINHA: Não choreis! Mais mal fadada vai aquela!
VELHO :Quem
MOCINHA: Branca Gil.
VELHO: Como?
MOCINHA: Com cem açoites no lombo, uma carocha por capela, e atenção! Leva tão bom coração, como se fosse em folia. Que pancadas que lhe dão! E o triste do pregão – porque dizia: “Por mui grande alcoviteira e para sempre degredada”, vai tão desavergonhada, como ia a feiticeira. E, quando estava, uma moça que passava na rua, para ir casar, e a coitada que chegava a folia começava de cantar:
“ua moça tão fermosa que vivia ali à Sé...”
VELHO: Oh coitado! A minha é!



QUEM TEM FARELOS?( Gil Vicente)

Vai-se o Escudeiro e fica a Velha dizendo à filha:
Isabel tu fazes isto
tudo isto sai de ti
Isabel guar-te de mi
que tu tens a culpa disto.
Isabel: Pois si. Eu o fui chamar.
Velha :Ai Maria Maria rabeja.
Isabel: Trama a quem o deseja
nem espera desejar.
Velha: Que dirá a vezinhança?
Dize má molher sem siso
Isabel: Que tenho eu de ver co isso?
Velha: Como tens tam má criança.
Isabel :Algum demo valho eu
e algum demo mereço
e algum demo pareço
pois que cantam polo meu.
Vós quereis que me despeje
vós quereis que tenha modos
que pareça bem a todos
e ninguém nam me deseje?
Vós quereis que mate a gente
de fermosa e avisada
quereis que nam fale nada
nem ninguém em mi atente?
Quereis que creça e que viva
e nam deseje marido
quereis que reine Copido
e eu seja sempre esquiva?
Quereis que seja discreta
e que nam saiba d’amores
quereis que sinta primores
mui guardada e mui secreta?
Velha: Tomade-a lá. Ui Isabel
quem te deu tamanho bico
rostinho de cerolico
és tu moça ou bacharel?
Nam deprendeste tu assi
o verbo d’Anima Christe
que tantas vezes ouviste.
Isabel: Isso nam é pera mi.
Velha: E pois quê?
Isabel: Eu vo-lo direi:
ir ameúde ao espelho
e poer do branco e vermelho
e outras cousas que eu sei.
Pentear curar de mi
e poer a ceja em dereito
e morder por meu proveito
estes beicinhos assi.
Ensinar-me a passear
pera quando for casada
nam digam que fui criada
em cima d’algum tear.
Saber sentir um recado
e responder emproviso
e saber fingir um riso
falso e bem dissimulado.
Velha: E o lavrar Isabel?
Isabel: Faz a moça mui mal feita
corcovada contrafeita
de feição de meo anel.
E faz muito mau carão
e mau costume d’olhar.
Velha: Ui pois jeita-te ao fiar
estopa ou linho ou algodão.
Ou tecer se vem à mão.
Isabel: Isso é pior que lavrar.
Velha: Enjeitas tu o fiar?
Isabel: Que nam hei de fiar nam
eu sou filha de moleira
em roca me falais vós?
Ora assi me salve Deos
que tendes forte cenreira.
Velha: Aprende logo a tecer
entam bolir c’o fiado.
Isabel: Achais outro mais honrado
ofício pera eu saber?
Tecedeira viu alguém
que nam fosse boliçosa
cantadeira presuntuosa
e nam tem nunca vintém.
E quando lhe quebra o fio
renega coma beleguim.
Mãe deixai-me vós a mim
vereis como me atavio.
Isto vai sendo de dia
eu quero mãe almoçar.
Velha: Eu te farei amassar.
Isabel: Essa é outra fantesia.
E com isto se recolhem e fenece esta primeira farsa.
Finis.