Enquanto
o Modernismo eclodia no Brasil com uma voz de ruptura e negação das
tradições, Cecília Meireles optou por ser independente, negando
uma adesão passiva ao movimento. Fugiu a classificações restritas,
podendo ser neossimbolista, neoparnasiana, neoclássica, movendo-se
na própria maestria de seu texto poético. Por isso, na décima
terceira oficina, a se realizar no dia 10/11, às 08 horas, no
auditório da UFFS, Cecília se faça presente em variadas formas e
temáticas. Principiando pela poesia fluida, na qual a musicalidade é
a tônica, passa-se, então, a uma crônica em que a viagem sonhada
não é a viagem de fato. Depois, em carta ao poeta Armando
Côrtes-Rodrigues, ela se revela em sua ironia íntima. Por fim, no
Romanceiro da Inconfidência, os ecos de luta e história são
ouvidos e transmitidos pela poeta.
Cecilia
Meireles
Retrato
Eu
não tinha este rosto de hoje,
assim
calmo, assim triste, assim magro,
nem
estes olhos tão vazios,
nem
o lábio amargo.
Eu
não tinha estas mãos sem força,
tão
paradas e frias e mortas;
eu
não tinha este coração
que
nem se mostra.
Eu
não dei por esta mudança,
tão
simples, tão certa, tão fácil:
-
Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Juramento
Fácil é dizer: "
Minha alma..."
Difícil, saber o
que pode ser nosso
no mundo e além.
Difícil saber que
alma vemos, que alma existe,
a que alma dirigimos
o nosso amor.
Fácil é dizer:
"... eu te amo..."
Difícil saber que
amor sentimos,
damos, desejamos,
que poder é esse
que obriga o sangue, o pulso, a vida,
em que obscuras
direções.
Fácil é dizer:
"... para sempre..."
Difícil saber até
onde ressoa
tão grande
juramento.
E onde está para
nós a eternidade, o firme
bronze onde
inscreveremos nossa voz.
" Minha alma,
eu te amo para sempre..."
Letras de lágrimas
balbuciamos.
Timidez
Basta-me um pequeno
gesto,
feito de longe e de
leve,
para que venhas
comigo
e eu para sempre te
leve...
- mas só esse eu
não farei.
Uma palavra caída
das montanhas dos
instantes
desmancha todos os
mares
e une as terras mais
distantes...
- palavra que não
direi.
Para que tu me
adivinhes,
entre os ventos
taciturnos,
apago meus
pensamentos,
ponho vestidos
noturnos,
- que amargamente
inventei.
E, enquanto não me
descobres,
os mundos vão
navegando
nos ares certos do
tempo,
até não se sabe
quando...
e um dia me
acabarei.
Xadrez
Leva-me o tempo para
frente
Certo de sua direção
Pausado o passo
indiferente
(Peão.)
Que ímpeto me vem
de repente
E se esforça para
contrariá-lo?
Ó nervosa crina,
asa ardente?
(Cavalo.)
Talvez meu poder
aumente,
E o tempo invicto
alcance e toque...
Como, porém,
mudar-lhe a ação?
(Roque)
Leva-me o tempo para
frente,
Dizendo passo a
passo: “És minha!”
E acrescentando, por
piedade:
“Rainha!”
E apenas digo
debilmente
Como quem sonha e se
persuade:
“Tua, apenas tua,
serei...
Rei!”
Viajar I
Há as viagens que
se sonham e as viagens que se fazem – o que é muito diferente. O
sonho do viajante está lá longe, no fim da viagem, onde habitam as
coisas imaginadas. A realidade da viagem está em cada ponto do
caminho, nos algarismos do câmbio e no peso das malas, nos carimbos
dos passaportes e nos atestados de vacina. De modo que o prazer de
viajar se obscurece, de repente, sob essas pequenas mas implacáveis
obrigações que gastam o tempo e a sensibilidade do viajante
impaciente.
Portugal exige dos
viajantes atestado de vacina contra a febre amarela. Em vão, o
grande Osvaldo Cruz mandou policiar as águas; em vão os
mata-mosquitos percorrem os nossos quintais, espiando caixas, virando
latas, vigiando cada rego, cada tanque, matando os inocentes
peixinhos dos nossos aquários com suas drogas fulminantes. Em vão
exterminamos os nossos mosquitos: Portugal precisa ver por escrito
que estamos vacinados contra a febre amarela...
Creio que nos
submetemos à vacina só por amor a Portugal. É grande maçada, e,
na nossa opinião, uma exigência descabida: nenhum brasileiro
acredita mais em febre amarela, e os mosquitos para nós, já são
coisa de arqueologia... Então, por amor a Portugal, para vermos
Portugal, para ouvirmos as varinas e comermos doces de ovos no
Chiado, justificamos a exigência, e até achamos muito natural, e
dizemos que se trata de uma preocupação contra os mosquitos de
Dacar, não contra os nossos que, se
existissem,
seriam apenas amáveis músicos invisíveis de uma liliputiana banda.
Ah! os de Dacar,
sim, esses é que são os perigosos! – grandes mosquitos insidiosos
e vorazes, sentados à beira-mar, à espera dos viajantes distraídos,
afiando o seu aguilhão em negras pedras de amolar, que rodam dia e
noite, entre as ondas e as estrelas, preparando a morte bárbara com
venenos atrozes, nessas farpas de aços finíssimas...
Então, por amor a
Portugal, para vermos Portugal, com seus campos e suas colinas,
alistamo-nos com fervor nessa guerra santa contra os mosquitos de
Dacar – esses mouros fatídicos – e lá vamos para a nossa vacina
com uma certa auréola de beatitude – que sempre se ganha, com
qualquer fanatismo.
Pois, além da
auréola, ganhamos outras coisas mais: ganhamos a graça de penetrar
no palácio que foi da Marquesa de Santos, uma das senhoras mais
interessantes da nossa história, seja o que for que pensemos a seu
respeito. (Na verdade, que outra figura feminina lhe podemos
contrapor? Que infanta, que princesa, que imperatriz?)
Se dispusermos de
algum tempo, alguém nos mostrará nas janelas desse palácio, os
corações de vidro entrelaçados, símbolo bem poético da
fragilidade dos amores, mesmo – ou principalmente – imperiais.
Alguém nos
mostrará, também, numa parede, a famosa mosca que dizem ter sido
pintada por Pedro I, esse homem maravilhoso que, além de ter dado a
independência a um povo e encher a história do Brasil com a sua
turbulência amorosa, ainda conseguiu deixar fama de poeta, músico e
pintor...
Depois de tudo isso,
o mais amável funcionário do mundo nos conduzirá a uma sala onde o
mais amável dos médicos nos depositará sob a pele o mais amável
dos soros – que, sem sombra de febre ou de qualquer mal-estar –
nos fará rir dos mosquitos africanos, - postados à nossa espera, -
permitindo-nos, ao mesmo tempo, o gozo de todas as delícias
lusitanas, um pouco adiante, ali na esquina da Europa, onde o Tejo e
o céu brincam de jogar faíscas de ouro um para o outro.
Viajar é uma grande
coisa, naturalmente. E seria ainda maior sem vacinas, sem bagagem,
sem câmbio, sem carimbos nos passaportes...
Mas ah! sem os
mosquitos de Dacar, quem pensaria com ternura no nosso primeiro
imperador e na sua marquesa? Há uma grande distância entre o
compêndio em que se estuda e o palácio que se atravessa, que ainda
se pode sentir, com sua mosca pintada e seus vidros em forma de
coração, como abraçados pombos transparentes...
[1951]
LXII
Rio,
9 de Maio de 1947
Côrtes-Rodrigues: tão grandes são os meus
atrasos com a correspondência, que devia começar escrevendo uma
carta só de desculpas. Mas abrevio: estivemos todos mais ou menos
gripados, sendo que a minha gripe foi desse tipo que nem permite a
uma pessoa ficar deitada nem de pé. Resultado: custou muito a
passar. Temos tido dias de inverno extremamente húmidos, seguidos de
outros — como o de hoje — de verão intensíssimo. Não se sabe
mais nem o que vestir nem o que comer, nem o que pensar nem o que
dizer, — tudo anda maluco e nem ao menos se sabe para onde fugir,
pois por toda a parte parece a mesma coisa. Como já não pode ser
pior do que é, talvez daqui por diante comece a ficar melhor...
Além da gripe, atrasei-me com as minhas
famosas peças, com visitas, e com dois artigos longos, que me
pediram dos EE.UU., para uma revista da Califórnia, sobre Brinquedos
Infantis e Festas Populares do Brasil. Junto com isso — e como o
signo era de amontoar trabalho — o pessoal do Turismo, onde
trabalho, e que dorme e ronca o ano inteiro, acordou de repente, para
me pedir um prospecto de propaganda que tem de ser feito do seguinte
modo: não pode levar fotografias, porque não as possuem, nem
literatura, porque teria de ser traduzida, e não há verba. Nessas
condições, o aconselhável seria um pedaço grande de papel em
branco, oferecido aos viajantes para que eles aí deixassem sua
opinião a respeito do Turismo nacional. Mas isso também não pode
ser. E esta é a incumbência sobre a qual me plantam como se eu
tivesse poderes para realizar impossíveis!
Mas entre todas as coisas que lhe conto, uma
existe mais importante: deu-me um ataque de tédio tão profundo, tão
mortal que eu — criatura a que ninguém socorre — se não tivesse
corrido por mim mesma para uns vidros de Fitina, já estaria morta,
enterrada, com um corvo em cheia da sepultura explicando aos amigos:
Morreu de enjoo humano... Pede muitas desculpas."
Chegou-me hoje o seu boneco do 1° de Maio. Ai
de nós, que não temos maios por aqui.1
Mas a minha amiga Beata, que está em Bruxelas, também pensou em
mim, e mandou-me um raminho de muguê, que ainda cheira, para que eu
— diz o cartão — também tivesse o meu "brin de muguet".
Um dia vocês se encontrarão todos no céu, com as suas flores e
seus bonecos. Mas não sei se me acharão por lá, porque eu ando tão
cansada de tudo que nem anjo pretendo ser: peço a Deus que me dê
aposentadoria total na criação, com direito a sono profundo, sem
recordações, sem sonhos, sem mais nada.
Hoje é o primeiro dia de certa folga, depois
de tantos acontecimentos. Venho da cidade, onde fui deixar os artigos
para a América, pois nem isso existe quem faça. Faz um calor
pavoroso. Todos andam muito irritados, por motivos econômicos e
políticos. E eu também, mas sem ser nem por uns nem por outros.
Recebi carta do Osório2,
que vem breve para o Brasil. Parece que já está completamente
restabelecido. É o que diz na carta. Vem fazer filmes. Vocês ainda
não fizeram nenhum filme sobre os Açores?
É uma vergonha, mas ainda não fiz a revisão
da cópia das peças que lhe destino. E veja isto: passei agora por
uma livraria, à procura de literatura russa, e encontrei um conto de
Tchékov que se chama "A dama de espadas". De modo que a
minha peça "O ás de ouros" já começa a me desgostar.
Vou traduzir agora do inglês, para tentar
representar com marionetes, uma peçazinha em estilo japonês, muito
linda, que se chama “O filho obediente”. Creio que é época de
postura de versos, pois tenho a mesa cheia de livros novos. E a minha
preguiça é tão imensa que nem estender a mão para alcançá-los
me é possível.
Já lhe disse que as fotografias da moça
polonesa ainda não resolveram o meu problema fotogênico? Pois não.
Talvez o seu marido, o Matos Sequeira tenha mais prática. Mas é que
a minha cara é mesmo impossível. Se fico de perfil, pareço um
judeu na miséria. De três quartos, sou uma cigana voluntariosa, ou
uma cartomante abastada. De frente, uma baiana supernutrida. Na vida
real, também: se me enfeito, pareço logo uma Salomé; se não me
enfeito, pareço uma aristocrata banida, com montes de dívidas às
costas. Ah! estou enjoada de mim. Queria ser cavalo ou passarinho.
Por falar nisso, o Merlim parece que vai ser
padre: caíram-lhe as peninhas da cabeça, e ficou de coroa. Calcule
que a Matilde, no domingo passado arranjou-lhe uma noiva horrorosa,
de rabo amarelo, com uma cara muito reles de passarinho comedor de
fruta de quintal. O Merlim teve um acesso de indiferença e de tédio
só comparável aos meus. Olhava para ela e para mim. Quando ela ia
para um poleiro, saltava para o outro. Depois de lhe dar todas as
demonstrações de desprezo, acompanhadas de um silêncio
constrangedor, foi para um canto, muito desconfiado. Só faltou mesmo
abrir a porta e convidá-la a sair. O que, decerto, como meu amigo, e
portanto "gentleman" apesar de passarinho, não seria capaz
de fazer. Então, pedi à minha doida filha que retirasse o monstro
da gaiola, e ela assim fez, voltando tudo à normalidade, com os
beijinhos do costume e as grandes festas em redor do ovo cozido.
Diga-me se sempre vai fazer o seu teatro de
bonecos. Seria uma grande iniciativa. Poderia representar Gil
Vicente, fazer peças regionais... Aqui, o Luiz Cosme está musicando
o arranjo da Nau Catarineta que lhe hei-de mandar por estes dias.
Agradeço-lhe muito todas aquelas versões que teve a paciência de
me enviar.
Essas papinhas de milho com canela por cima,
etc., aqui chamam "mingau". Davam-me muito disso em
pequena, tanto de milho (o que você chama carolo
deve ser o que por aqui se diz fubá)
como de arroz, de maizena, de tanta coisa, sempre com a canela por
cima. Uma tia minha, do lado paterno, até me deu um prato antigo, de
linda porcelana, com um casal de príncipes no fundo, para me abrir o
apetite... Essa me entendia, pois eu, para que os príncipes
aparecessem, era mesmo capaz de comer a papa toda...
Sabe o que desejava agora? Meter-me num barco e
navegar. Mas não há barcos, não há dinheiro, não há liberdade,
não há nada... Tanto mar, à-toa!
Escrevo-lhe muito sem ritmo, desta vez. Com um
grande cansaço, apesar de V. dizer de mim tantas coisas
maravilhosas! Há tempos, tive uma ideia que nunca me abandona:
arranjar um iate, meter dentro os amigos, e andar por aí, só com
poesia. Quando os amigos desiludissem, deitava-os à água, ou
abandonava-os em alguma praia. Mas para isso era preciso que Deus, o
próprio Deus, se fizesse "manager" dessa dispendiosa
aventura. E Ele lá se importa comigo!
Vou deixá-lo. e prometo mandar-lhe breve
muitas coisas. Quando as cartas demorarem, mande-me prana, calhaus de
prana comprimido, porque eu estou mesmo como as aranhas quando se
dependuram do fio...
Já lhe agradeci os livros e revistas, com as
fotografias e guias turísticos? Chegou tudo bem. Um destes dias
escrevo àquele senhor dos frutos sem flor. Meu marido agradece-lhe a
revista. Ele está às voltas com assuntos fabulosos, 90% da
humanidade existe só para atrapalhar os 10% que trabalham
precisamente para esses miseráveis. Tenho vontade de ser cavalo,
como lhe dizia. Cavalo com muitas patas. Ou touro. Touro era melhor.
Com muitos chifres. Fazia um sarilho medonho. Mas por enquanto tenho
de ser isto mesmo: uma criatura boba.
Lembranças à sua Irmã e à sua Filha. E uma
festinha à menina loura que lhe segura o prato. Que sibarita V. está
ficando!
Saudades da
Cecília
____________________
1
“Em Portugal foram muito apreciadas as maias, nome que
evidentemente significa cânticos à Primavera”. Este costume veio
do paganismo e conserva-se em algumas freguesias. Maias se chamavam
também as flores de giesta que predominavam nas grinaldas que era e
ainda é uso porem-se às portas e janelas em várias aldeias,
dizendo as velhas aos pequenos que é “para não entrar o Maio em
casa” (Maio foi primitivamente consagrado à Maia, mãe de
Mercúrio, deus da eloqüência, do comércio e dos ladrões, ele
próprio ladrão emérito, segundo as proezas que lhe atribui a
Mitologia).
2
José Osório de Oliveira.
____________________
Romanceiro da Inconfidência
Romance XIV ou da Chica da Silva
(Isso foi lá para os lados
do Tejuco, onde os diamantes
transbordavam do cascalho.)
Que andor se atavia
naquela varanda?
É a Chica da Silva:
é a Chica-que-manda!
Cara cor da noite,
olhos cor de estrela.
Vem gente de longe
para conhecê-la.
(Por baixo da cabeleira,
tinha a cabeça rapada
e até dizem que era feia.)
Vestida de tisso,
de raso e de holanda
- é a Chica da Silva:
- é a Chica-que-manda!
Escravas, mordomos
seguem, como um rio,
a dona do dono
do Serro do Frio.
(Doze negras em redor,
- como as horas, nos relógios.
Ela, no meio, era o sol!)
Um rio que, altiva,
dirige e comanda
a Chica da Silva,
a Chica-que-manda.
Esplendem as pedras
por todos os lados:
são flechas em selvas
de leões marchetados.
(Diamantes eram, sem jaça,
por mais que muitos quisessem
dizer que eram pedras falsas.)
Mil luzeiros chispam,
à flexão mais branda
da Chica da Silva,
da Chica-que-manda!
E curvam-se, humildes,
fidalgos farfantes,
à luz dessa incrível
festa de diamantes.
(Olhava para os reinóis
e chamava-os “marotinhos”!
Quem viu desprezo maior?)
Gira a noite, gira,
dourada ciranda
da Chica da Silva,
da Chica-que-manda.
E em tanque de assombro
veleja o navio
da dona do dono
do Serro do Frio.
(Dez homens o tripulavam,
para que a negra entendesse
como andam barcos nas águas.)
Aonde o leva a brisa
sobre a vela panda?
- À Chica da Silva:
à Chica-que-manda.
À Vênus que afaga,
soberba e risonha
as luzentes vagas
do Jequitinhonha.
(À Rainha de Sabá
num vinhedo de diamantes
poder-se-ia comparar.)
Nem Santa Ifigênia,
toda em festa acesa,
brilha mais que a negra,
na sua riqueza.
Contemplai, branquinhas,
na sua varanda,
a Chica da Silva,
a Chica-que-manda!
(Coisa igual nunca se viu.
Dom João Quinto, rei famoso,
não teve mulher assim!)
Romance XV ou das cismas da Chica da Silva
Na sua cama dourada,
Chica da Silva não dorme.
Pensa nas falas do Conde,
pensa no ouro, e desta sorte
aconselha a João Fernandes:
- Hoje, todo o mundo corre,
Senhor, atrás de riquezas:
nem é doutro mal que sofre
esse vosso falso amigo,
esse Conde de má morte.
Quem sabe o que o traz tão longe?
Quais serão as suas ordens?
E o Contratador responde
(imagino o que dizia):
- O Conde de Valadares
de mágoa e pesar definha,
por ter a família ausente
e a nobre Casa em ruínas.
Aqueles folhelhos de ouro
iluminaram-lhe a vista.
Se é de pobreza que sofre,
que custa, dar-lhe alegria?
Não se há de dizer que a um nobre
não deram socorro as Minas...
Responde a Chica da Silva
(assim dizem que pensava):
- Estes marotos do Reino
só chegam por estas lavras
para recolher o fruto
das grotas e das gupiaras.
Eles gastando na corte,
e a Morte aqui pelas catas,
desmoronando barrancos,
engrossando as enxurradas...
Não sei que tem este Conde:
não gosto da sua cara!
E assim vão passando os dias.
E o Conde de Valadares,
que chegara tão sombrio
- pela liberalidade
do Contratador Fernandes
vai perdendo seus pesares.
Em caçadas e passeios,
galga serras, desce vales,
manda lapidar diamantes
por flamengo lapidário,
e - ao ter a fortuna feita
adeus, formosos lugares!
E diz a Chica da Silva
ao ricaço do Tejuco:
- Eu neste Conde não creio;
com seus modos não me iludo;
detrás de suas palavras,
anda algum sentido oculto.
Os homens, à luz do dia,
olham bem, mas não vêem muito:
dentro de quatro paredes,
as mulheres sabem tudo.
Deus me perdoe, mas o Conde
vem cá por outros assuntos.
Assim murmurava a Chica.
E as mulheres não se enganam.
João Fernandes escutava-a
mais simples do que uma criança.
Iam girando as bateias,
ia crescendo a abundância,
iam subindo as gupiaras:
braço, almocafre, alavanca
reviravam pela terra
a sementeira de chamas
para as futuras florestas
de fogo que se levantam...
Romance XVI ou da traição do Conde
Já chega um próprio de longe:
já chega um próprio a cavalo,
por entre nuvens de poeira
e montanhas de cascalho,
e a negrada que se volve
de almocafres levantados
e a algazarra de protesto
dos grandes cães alarmados
sob o espanto dos tropeiros,
e a alegria dos vassalos
que esperam novas da Vila.
Chega e apeia-se de um salto.
À porta de João Fernandes,
pára, em demanda do Conde.
Sacode o chapéu e as botas,
conta mentiras de longe,
enquanto o cavalo bebe,
na água, as nuvens do horizonte.
Que novas serão chegadas?
Que novas traz aquele homem?
O Conde a andar pela sala,
com um fundo sulco na fronte.
Soam-lhe os passos nas tábuas
como passadas de bronze.
Mas, entre as doze mulatas
que a servem, resmunga a Chica:
“Oxalá não traga o próprio
más novidades da Vila.
Tenho o coração parado
como se não fosse viva.
Que este maroto, do Reino
ao Tejuco, não viria,
senão por algum segredo,
por alguma fina intriga.
Vamos a ver se minha alma
fala verdade ou mentira.”
Na sala passeia o Conde,
para trás e para diante.
- Por que me levais, amigo?
(Era a voz de João Fernandes.)
Dei-vos o ouro que quisestes;
ouro vos dei, mais diamantes,
para a Casa dos Meneses
de Castelo Branco e Abranches
não soçobrar arruinada
enquanto andáveis distante.
Como me levais agora
a prestar contas com os Grandes?
Fala o Conde de má morte:
- Ordens são, que hoje recebo...
Fala o Conde mui fingido:
- Padece por vós meu zelo:
de um lado, o dever de amigo,
mas, de outro, a lealdade ao Reino...
João Fernandes não responde:
ouve e recorda em silêncio
o que lhe dissera a Chica,
em tom de pressentimento.
Como as palavras se torcem,
conforme o interesse e o tempo!
(Como se fazem de honrados
os Condes, de bolsos cheios!)
Romance XVII ou das lamentações no Tejuco
Ai, que rios caudalosos,
e que montanhas tão altas!
Ai, que perdizes nos campos,
e que rubras madrugadas!
Ai, que rebanhos de negros,
e que formosas mulatas!
Ai, que chicotes tão duros,
e que capelas douradas!
Ai, que modos tão altivos,
e que decisões tão falsas...
Ai, que sonhos tão felizes...
que vidas tão desgraçadas!
E lá seguiu para a Corte
o dono do Serro Frio.
Com suas doze mucamas,
ficava a Chica em suspiros.
Grossas vagas tenebrosas
nascem no humano destino!
Uns, ali, nas rudes catas,
a apodrecerem nos rios,
- e outros, ao longe, com os lucros
dessas minas de martírio.
Ai, que o coração não mente!
Maldito o Conde, e maldito
esse ouro que faz escravos,
esse ouro que faz algemas,
que levanta densos muros
para as grades das cadeias,
que arma nas praças as forcas,
lavra as injustas sentenças,
arrasta pelos caminhos
vítimas que se esquartejam!
(Doze mucamas em volta
gemiam com surda pena.
Pranto e diamantes caídos
era tudo um mar de estrelas.)
Romance XVIII ou dos velhos do Tejuco
Ainda vai chegar o dia
de nos virem perguntar:
- Quem foi a Chica da Silva,
que viveu neste lugar?
(Que tudo passa...
O prazer é um intervalo
na desgraça...)
Já vereis noutro navio,
levado por homens grandes,
igual a um negro fugido,
o Contratador Fernandes.
(Que tudo acaba!
Quem diz que montanha de ouro
não desaba?)
Se o vento dá no Tejuco,
leva coluna e varanda,
leva a pompa, leva o luxo
e mais a Chica-que-manda.
(Que tudo engana.
Gente, só a morte, mesmo,
é soberana!)
Nós aqui movendo as águas
e as pedras, desta maneira!
- Pois não deixaremos nada:
nem o nome da caveira.
(Que a nossa vida
é a mesma coisa que a morte,
- noutra medida...)
Mas os homens e as mulheres
vivem neste desvario...
Não há febre como a febre
que corta o Serro do Frio...
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