Nome
máximo do Modernismo português, e do século XX, Fernando Pessoa
produziu uma vasta obra que até hoje encanta pela diversidade e pela
alta elaboração do seu projeto literário. Para dar conta de
diferentes estilos, ele criou o jogo dos heterônimos, isto é,
outros poetas que, cada qual com sua particularidade, teriam um “tom”
distinto dos demais. Para homenagear o poeta, a décima quarta
oficina, a se realizar no dia 24/11, às 08 horas, no auditório da
UFFS, vai mostrar um pouco da produção de cada um dos quatro poetas
“principais”: Principiando por Alberto Caeiro, considerado o
mestre dos demais, vai-se adentrar em sua inocência linguística e
profundidade de significados diante da realidade. Depois, com
Fernando Pessoa ele-mesmo, o pensamento e a racionalidade diante de
tudo será a tônica para compreender-se. Então, irão se contrapor
os dois poetas “contrários”: Ricardo Reis, que se volta para a
Antiguidade Clássica e prega o não-envolvimento, querendo não
sofrer; e Álvaro de Campos, que canta a Modernidade, com sua
velocidade, suas angústias e sua fragmentação.
Alberto Caeiro
I
- Eu Nunca Guardei Rebanhos
Eu
nunca guardei rebanhos,
Mas
é como se os guardasse.
Minha
alma é como um pastor,
Conhece
o vento e o sol
E
anda pela mão das Estações
A
seguir e a olhar.
Toda
a paz da Natureza sem gente
Vem
sentar-se a meu lado.
Mas
eu fico triste como um pôr de sol
Para
a nossa imaginação,
Quando
esfria no fundo da planície
E
se sente a noite entrada
Como
uma borboleta pela janela.
Mas
a minha tristeza é sossego
Porque
é natural e justa
E
é o que deve estar na alma
Quando
já pensa que existe
E
as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como
um ruído de chocalhos
Para
além da curva da estrada,
Os
meus pensamentos são contentes.
Só
tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque,
se o não soubesse,
Em
vez de serem contentes e tristes,
Seriam
alegres e contentes.
Pensar
incomoda como andar à chuva
Quando
o vento cresce e parece que chove mais.
Não
tenho ambições nem desejos
Ser
poeta não é uma ambição minha
É
a minha maneira de estar sozinho.
E
se desejo às vezes
Por
imaginar, ser cordeirinho
(Ou
ser o rebanho todo
Para
andar espalhado por toda a encosta
A
ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É
só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou
quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E
corre um silêncio pela erva fora.
Quando
me sento a escrever versos
Ou,
passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo
versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto
um cajado nas mãos
E
vejo um recorte de mim
No
cimo dum outeiro,
Olhando
para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou
olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E
sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E
quer fingir que compreende.
Saúdo
todos os que me lerem,
Tirando-lhes
o chapéu largo
Quando
me vêem à minha porta
Mal
a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os
e desejo-lhes sol,
E
chuva, quando a chuva é precisa,
E
que as suas casas tenham
Ao
pé duma janela aberta
Uma
cadeira predileta
Onde
se sentem, lendo os meus versos.
E
ao lerem os meus versos pensem
Que
sou qualquer cousa natural —
Por
exemplo, a árvore antiga
À
sombra da qual quando crianças
Se
sentavam com um baque, cansados de brincar,
E
limpavam o suor da testa quente
Com
a manga do bibe riscado.
II
- O Meu Olhar
O
meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho
o costume de andar pelas estradas
Olhando
para a direita e para a esquerda,
E
de, vez em quando olhando para trás...
E
o que vejo a cada momento
É
aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E
eu sei dar por isso muito bem...
Sei
ter o pasmo essencial
Que
tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse
que nascera deveras...
Sinto-me
nascido a cada momento
Para
a eterna novidade do Mundo...
Creio
no mundo como num malmequer,
Porque
o vejo. Mas não penso nele
Porque
pensar é não compreender ...
O
Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar
é estar doente dos olhos)
Mas
para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu
não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se
falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas
porque a amo, e amo-a por isso,
Porque
quem ama nunca sabe o que ama
Nem
sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar
é a eterna inocência,
E
a única inocência não pensar...
V
- Há Metafísica Bastante em Não Pensar em Nada
Há
metafísica bastante em não pensar em nada.
O
que penso eu do mundo?
Sei
lá o que penso do mundo!
Se
eu adoecesse pensaria nisso.
Que
idéia tenho eu das cousas?
Que
opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que
tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E
sobre a criação do Mundo?
Não
sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E
não pensar. É correr as cortinas
Da
minha janela (mas ela não tem cortinas).
O
mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O
único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem
está ao sol e fecha os olhos,
Começa
a não saber o que é o sol
E
a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas
abre os olhos e vê o sol,
E
já não pode pensar em nada,
Porque
a luz do sol vale mais que os pensamentos
De
todos os filósofos e de todos os poetas.
A
luz do sol não sabe o que faz
E
por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica?
Que metafísica têm aquelas árvores?
A
de serem verdes e copadas e de terem ramos
E
a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A
nós, que não sabemos dar por elas.
Mas
que melhor metafísica que a delas,
Que
é a de não saber para que vivem
Nem
saber que o não sabem?
"Constituição
íntima das cousas"...
"Sentido
íntimo do Universo"...
Tudo
isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É
incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É
como pensar em razões e fins
Quando
o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um
vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar
no sentido íntimo das cousas
É
acrescentado, como pensar na saúde
Ou
levar um copo à água das fontes.
O
único sentido íntimo das cousas
É
elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não
acredito em Deus porque nunca o vi.
Se
ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem
dúvida que viria falar comigo
E
entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me,
Aqui estou!
(Isto
é talvez ridículo aos ouvidos
De
quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não
compreende quem fala delas
Com
o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas
se Deus é as flores e as árvores
E
os montes e sol e o luar,
Então
acredito nele,
Então
acredito nele a toda a hora,
E
a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E
uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas
se Deus é as árvores e as flores
E
os montes e o luar e o sol,
Para
que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe
flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque,
se ele se fez, para eu o ver,
Sol
e luar e flores e árvores e montes,
Se
ele me aparece como sendo árvores e montes
E
luar e sol e flores,
É
que ele quer que eu o conheça
Como
árvores e montes e flores e luar e sol.
E
por isso eu obedeço-lhe,
(Que
mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe
a viver, espontaneamente,
Como
quem abre os olhos e vê,
E
chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E
amo-o sem pensar nele,
E
penso-o vendo e ouvindo,
E
ando com ele a toda a hora.
IX
- Sou um Guardador de Rebanhos
Sou
um guardador de rebanhos.
O
rebanho é os meus pensamentos
E
os meus pensamentos são todos sensações.
Penso
com os olhos e com os ouvidos
E
com as mãos e os pés
E
com o nariz e a boca.
Pensar
uma flor é vê-la e cheirá-la
E
comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por
isso quando num dia de calor
Me
sinto triste de gozá-lo tanto.
E
me deito ao comprido na erva,
E
fecho os olhos quentes,
Sinto
todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei
a verdade e sou feliz.
XXIV
- O que Nós Vemos
O
que nós vemos das cousas são as cousas.
Por
que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por
que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se
ver e ouvir são ver e ouvir?
O
essencial é saber ver,
Saber
ver sem estar a pensar,
Saber
ver quando se vê,
E
nem pensar quando se vê
Nem
ver quando se pensa.
Mas
isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso
exige um estudo profundo,
Uma
aprendizagem de desaprender
E
uma seqüestração na liberdade daquele convento
De
que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E
as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas
onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem
as flores senão flores.
Sendo
por isso que lhes chamamos estrelas e flores.
Eros e Psique
...E assim vedes, meu Irmão, que as verdades
que vos foram dadas no Grau de Neófito, e
aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto
Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.
(Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio
Na Ordem Templária De Portugal)
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino –
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
Liberdade
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...
Parte superior do formulário
O Menino da Sua Mãe
NO PLAINO abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
- Duas, de lado a lado -,
Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe.»
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.
Odes de Ricardo Reis
Ouvi contar que outrora
Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na
Cidade E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.
À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário.
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.
Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez.
Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.
Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.
Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indif'rentes.
Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida.
Os haveres tranqüilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.
Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.
Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranqüila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.
O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.
A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.
Ah! sob as sombras que sem qu'rer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.
Álvaro
de Campos
Insônia
Não
durmo, nem espero dormir.
Nem
na morte espero dormir.
Espera-me
uma insônia da largura dos astros,
E um
bocejo inútil do comprimento do mundo.
Não
durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não
posso escrever quando acordo de noite,
Não
posso pensar quando acordo de noite —
Meu
Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!
Ah,
o ópio de ser outra pessoa qualquer!
Não
durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o
meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam
por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas
aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam
por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas
aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam
por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E
até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.
Não
tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito
a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá
fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um
grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra
ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.
Estou
escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos
a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos
a teimar em dizer isso,
Versos,
versos, versos, versos, versos...
Tantos
versos...
E a
verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!
Tenho
sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou
uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma
abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo
o necessário para sentir consciência,
Salvo
— sei lá salvo o quê... Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que
grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que
grande sono em tudo exceto no poder dormir!
Ó
madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem,
inutilmente,
Trazer-me
outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem
trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque
sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo
a velha literatura das sensações.
Vem,
traz a esperança, vem, traz a esperança.
O
meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me
as costas de não estar deitado de lado.
Se
estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de
lado.
Vem,
madrugada, chega! Que horas são? Não sei.
Não
tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não
tenho energia para nada, para mais nada...
Só
para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim,
escritos no dia seguinte.
Todos
os versos são sempre escritos no dia seguinte.
Noite
absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz
em toda a Natureza.
A
Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exatamente.
A
Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma
dizer-se isto.
A
Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas
mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exatamente.
Mas não durmo
Lisbon
Revisited (1923)
NÃO:
Não quero nada.
Já
disse que não quero nada.
Não
me venham com conclusões!
A
única conclusão é morrer. Não me tragam estéticas!
Não
me falem em moral! Tirem-me daqui a metafísica!
Não
me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das
ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das
ciências, das artes, da civilização moderna!
Que
mal fiz eu aos deuses todos?
Se
têm a verdade, guardem-na!
Sou
um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora
disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com
todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não
me macem, por amor de Deus!
Queriam-me
casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me
o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se
eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim,
como sou, tenham paciência!
Vão
para o diabo sem mim,
Ou
deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para
que havemos de ir juntos? Não me peguem no braço!
Não
gosto que me peguem no braço.
Quero
ser sozinho.
Já
disse que sou sozinho!
Ah,
que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ó
céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna
verdade vazia e perfeita!
Ó
macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena
verdade onde o céu se reflete!
Ó
mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada
me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me
em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E
enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
Grandes
são os desertos
Grandes
são os desertos, e tudo é deserto.
Não
são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que
disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes
são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas
porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes
porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
Grandes
são os desertos, minha alma!
Grandes
são os desertos.
Não
tirei bilhete para a vida,
Errei
a porta do sentimento,
Não
houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje
não me resta, em vésperas de viagem,
Com
a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado
na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje
não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão
saber isto:
Grandes
são os desertos, e tudo é deserto.
Grande
é a vida, e não vale a pena haver vida,
Arrumo
melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que
com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo
o cigarro para adiar a viagem,
Para
adiar todas as viagens.
Para
adiar o universo inteiro.
Volta
amanhã, realidade!
Basta
por hoje, gentes!
Adia-te,
presente absoluto!
Mais
vale não ser que ser assim.
Comprem
chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E
tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.
Mas
tenho que arrumar mala,
Tenho
por força que arrumar a mala,
A
mala.
Não
posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim,
toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas
também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas
empilhadas,
A
ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.
Tenho
que arrumar a mala de ser.
Tenho
que existir a arrumar malas.
A
cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho
para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei
só que tenho que arrumar a mala,
E
que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E
qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.
Ergo-me
de repente todos os Césares.
Vou
definitivamente arrumar a mala.
Arre,
hei de arrumá-la e fechá-la;
Hei
de vê-la levar de aqui,
Hei
de existir independentemente dela.
Grandes
são os desertos e tudo é deserto,
Salvo
erro, naturalmente.
Pobre
da alma humana com oásis só no deserto ao lado!
Mais
vale arrumar a mala.
Fim.