Quem sou eu

O projeto "Longa jornada livro adentro: a análise de textos literários" visa incentivar a leitura e a interpretação de textos de diferentes épocas e estilos. O grupo fará oficinas quinzenais, aos sábados pela manhã, em que se debaterão obras, tendências e outros assuntos do mundo da literatura. Aqui, você confere os tópicos em pauta, os principais itens discutidos nas reuniões e a organização para os encontros futuros. As oficinas se realizarão no auditório da UFFS.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Quinta oficina: Dia da Língua Portuguesa, Dia de Luís de Camões.

      Em homenagem ao dia de Camões (10 de junho), a quinta oficina tratará do poeta que melhor concentrou em si o valor da língua portuguesa e de do seu conceito de nação lusitana. A se realizar no dia 02/06, às 08 horas, vai-se traçar um panorama de visões, influências e influenciados de Luís Vaz de Camões.
      Primeiramente, a obra máxima da língua portuguesa, Os Lusíadas, será apresentada em um episódio heróico e mitológico, o enfrentamento do Gigante Adamastor. Em seguida, vai-se entrar na lírica camoniana, com sonetos que versam sobre o papel do amor e dos infortúnios da vida, tendo como base a Bíblia. Em seguida, vai-se prestar homenagem ao bardo na voz de Carlos Drummond de Andrade e seu poema “História, Coração, Linguagem”. E, selecionando alguns poemas portugueses e brasileiros, finda-se a homenagem a ele que, como diz a trova: “Camões, poeta caolho,/ Grande Vate português./ Enxergava mais com um olho / do que nós todos, com três.”


Livro de Jó – Capítulo 3



Depois disso abriu Jó a sua boca, e amaldiçoou o seu dia. E Jó falou,
dizendo: Pereça o dia em que nasci, e a noite que se disse: Foi concebido um homem! Converta−se aquele dia em trevas; e Deus, lá de cima, não tenha cuidado dele, nem resplandeça sobre ele a luz. Reclamem-no para si as trevas e a sombra da morte; habitem sobre ele nuvens; espante-o tudo o que escurece o dia. Quanto àquela noite, dela se apodere a escuridão; e não se regozije ela entre os dias do ano; e não entre no número dos meses.
Eclipse nesse passo o Sol padeça




A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
A mãe ao próprio filho não conheça.



As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lagrimas no rosto, a cor perdida,



Cuidem que o mundo já se destruiu.



Ó gente temerosa, não te espantes,

Que este dia deitou ao Mundo a vida

Mais desgraçada que jamais se viu!



Livro de Gênesis – Capítulo 29

Ora, Labão tinha duas filhas; o nome da mais velha era Lia, e o da mais
moça Raquel. Jacó, porquanto amava a Raquel, disse: Sete anos te servirei para ter a Raquel, tua filha mais moça. Assim serviu Jacó sete anos por causa de Raquel; e estes lhe pareciam como poucos dias, pelo muito que a amava. Então Jacó disse a Labão: Dá-me minha mulher, porque o tempo já está cumprido; para que eu a tome por mulher. Reuniu, pois, Labão todos os homens do lugar, e fez um banquete. (...) Quando amanheceu, eis que era Lia; pelo que perguntou Jacó a Labão: Que é isto que me fizeste? Porventura não te servi em troca de Raquel? Por que, então, me enganaste? Respondeu Labão: Não se faz assim em nossa terra; não se dá a menor antes da primogênita. Cumpre a semana desta; então te daremos também a outra, pelo trabalho de outros sete anos que ainda me servirás. Assim fez Jacó, e cumpriu a semana de Lia; depois Labão lhe deu por mulher sua filha Raquel.


Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,

E a ela só por prêmio pretendia.




Em lugar de Raquel lhe dava Lia.





Lhe fora assi negada a sua pastora,

Como se a não tivera merecida;



Começa de servir outros sete anos,

Dizendo: – Mais servira, se não fora

Para tão longo amor tão curta a vida!

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades





Vendo o triste pastor que com enganos


Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Mostre o Mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar



Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança; 


O dia que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar 
Todo o Mundo é composto de mudança, 
Tomando sempre novas qualidades. 

Continuamente vemos novidades, 
Diferentes em tudo da esperança; 
Do mal ficam as mágoas na lembrança, 
E do bem, se algum houve, as saudades. 

O tempo cobre o chão de verde manto, 
Que já coberto foi de neve fria, 
E em mim converte em choro o doce canto. 

E, afora este mudar-se cada dia, 
Outra mudança faz de mor espanto: 
Que não se muda já como soía.




Ao desconcerto do Mundo




Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.




Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.




História, Coração, Linguagem
Carlos Drummond de Andrade

Dos heróis que cantaste, que restou
se não a melodia do teu canto?
As armas em ferrugem se desfazem,
os barões nos jazigos dizem nada.


E teu verso, teu rude e teu suave
balanço de consoantes e vogais,
teu ritmo de oceano sofreado
que os lembra ainda e sempre lembrará.


Tu és a história que narraste, não
o simples narrador. Ela persiste
mais em teu poema que no tempo neutro,
universal sepulcro da memória.


Bardo, foste os deuses mais as ninfas,
as ondas em furor, céus em delírio,
astúcias, pragas, guerras e cobiças,
lodoso material fundido em ouro.


Multissexual germinador de assombros,
na folha branca vieste demonstrando
e que ao homem, na luta contra o fado,
cabe tentar, cabe vencer, perder,
e nisto se resume a irresumível
humana condição no eterno jogo
sem sentido maior que o de jogar.


E quando de altos feitos te entedias
e voltas ao comum sofrer pedestre
do desamado, não te vejo a ti
perdido de saudades e desdéns.


Luís, homem estranho, que pelo verbo
és, mais que amador, o próprio amor
latejante, esquecido, revoltado,
submisso, renascente, reflorindo
em cem mil corações multiplicado.


Es a linguagem. Dor particular
deixa de existir para fazer-se
dor de todos os homens, musical,
na voz de órfico acento, peregrina.


Que pássaro lascivo se intercala
no queixume subtil de tua estrofe
e não se sabe mais se é dor, delícia,
e espinho, afago, e morte, renascença?
Volúpia de gemer, e do gemido
destilar a canção consoladora
a quantos de consolo careciam
e jamais a fariam por si mesmos?
(Amaldiçoado dia de nascer
que em bênçãos para nós se converteu!)
Já tenho uma palavra pré-escrita
que tudo exprime quanto em mim se turva.


Pelos antigos e pelos vindouros,
foste discurso de geral amor.
Camões — oh som de vida ressoando
em cada tua sílaba fremente
de amor e guerra e sonho entrelaçados!


in A Paixão Medida, 1980
e Camões, nos 2/3, Set. a Dez. de 1980, Ed. Caminho
(Comemorações do 4º Centenário da Morte de Camões)










Gigante Adamastor
Luís Vaz de Camões
CANTO V
37
"Porém já cinco Sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca doutrem navegados,
Prósperamente os ventos assoprando,
Quando uma noite estando descuidados,
Na cortadora proa vigiando,
Uma nuvem que os ares escurece
Sobre nossas cabeças aparece.

38
"Tão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo;
Bramindo o negro mar, de longe brada
Como se desse em vão nalgum rochedo.
- "Ó Potestade, disse, sublimada!
Que ameaço divino, ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?" -

39
"Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura,
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida,
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.

40
"Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-te, que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo:
Com um tom de voz nos fala horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo:
Arrepiam-se as carnes e o cabelo
A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.

41
"E disse: — "Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas,
E navegar meus longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca arados d'estranho ou próprio lenho:

42
- "Pois vens ver os segredos escondidos
Da natureza e do úmido elemento,
A nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de imortal merecimento,
Ouve os danos de mim, que apercebidos
Estão a teu sobejo atrevimento,
Por todo o largo mar e pela terra,
Que ainda hás de sojugar com dura guerra.

43
- "Sabe que quantas naus esta viagem
Que tu fazes, fizerem de atrevidas,
Inimiga terão esta paragem
Com ventos e tormentas desmedidas.
E da primeira armada que passagem
Fizer por estas ondas insofridas,
Eu farei d'improviso tal castigo,
Que seja mor o dano que o perigo.

44
- "Aqui espero tomar, se não me engano,
De quem me descobriu, suma vingança.
E não se acabará só nisto o dano
Da vossa pertinace confiança;
Antes em vossas naus vereis cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte.

49
"Mais ia por diante o monstro horrendo
Dizendo nossos fados, quando alçado
Lhe disse eu: — Quem és tu? que esse estupendo
Corpo certo me tem maravilhado.-
A boca e os olhos negros retorcendo,
E dando um espantoso e grande brado,
Me respondeu, com voz pesada e amara,
Como quem da pergunta lhe pesara:

50
- "Eu sou aquele oculto e grande Cabo,
A quem chamais vós outros Tormentório,
Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,
Plínio, e quantos passaram, fui notório.
Aqui toda a Africana costa acabo
Neste meu nunca visto Promontório,
Que para o Pólo Antarctico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende.

51
- "Fui dos filhos aspérrimos da Terra,
Qual Encélado, Egeu e o Centimano;
Chamei-me Adamastor, e fui na guerra
Contra o que vibra os raios de Vulcano;
Não que pusesse serra sobre serra,
Mas conquistando as ondas do Oceano,
Fui capitão do mar, por onde andava
A armada de Netuno, que eu buscava.

52
- "Amores da alta esposa de Peleu
Me fizeram tomar tamanha empresa.
Todas as Deusas desprezei do céu,
Só por amar das águas a princesa.
Um dia a vi coas filhas de Nereu
Sair nua na praia, e logo presa
A vontade senti de tal maneira
Que ainda não sinto coisa que mais queira.

53
- "Como fosse impossível alcançá-la
Pela grandeza feia de meu gesto,
Determinei por armas de tomá-la,
E a Doris este caso manifesto.
De medo a Deusa então por mim lhe fala;
Mas ela, com um formoso riso honesto,
Respondeu: — "Qual será o amor bastante
De Ninfa que sustente o dum Gigante?

54
- "Contudo, por livrarmos o Oceano
De tanta guerra, eu buscarei maneira,
Com que, com minha honra, escuse o dano."
Tal resposta me torna a mensageira.
Eu, que cair não pude neste engano,
(Que é grande dos amantes a cegueira)
Encheram-me com grandes abondanças
O peito de desejos e esperanças.

55
- "Já néscio, já da guerra desistindo,
Uma noite de Dóris prometida,
Me aparece de longe o gesto lindo
Da branca Tétis única despida:
Como doido corri de longe, abrindo
Os braços, para aquela que era vida
Deste corpo, e começo os olhos belos
A lhe beijar, as faces e os cabelos.

56
- "Ó que não sei de nojo como o conte!
Que, crendo ter nos braços quem amava,
Abraçado me achei com um duro monte
De áspero mato e de espessura brava.
Estando com um penedo fronte a fronte,
Que eu pelo rosto angélico apertava
Não fiquei homem não, mas mudo e quedo,
E junto dum penedo outro penedo.

57
- "Ó Ninfa, a mais formosa do Oceano,
Já que minha presença não te agrada,
Que te custava ter-me neste engano,
Ou fosse monte, nuvem, sonho, ou nada?
Daqui me parto irado, e quase insano
Da mágoa e da desonra ali passada,
A buscar outro inundo, onde não visse
Quem de meu pranto e de meu mal se risse,

58
- "Eram já neste tempo meus irmãos
Vencidos e em miséria extrema postos;
E por mais segurar-se os Deuses vãos,
Alguns a vários montes sotopostos:
E como contra o Céu não valem mãos,
Eu, que chorando andava meus desgostos,
Comecei a sentir do fado inimigo
Por meus atrevimentos o castigo.

59
- "Converte-se-me a carne em terra dura,
Em penedos os ossos sefizeram,
Estes membros que vês e esta figura
Por estas longas águas se estenderam;
Enfim, minha grandíssima estatura
Neste remoto cabo converteram
Os Deuses, e por mais dobradas mágoas,
Me anda Tétis cercando destas águas." -

60
"Assim contava, e com um medonho choro
Súbito diante os olhos se apartou;
Desfez-se a nuvem negra, e com um sonoro
Bramido muito longe o mar soou.
Eu, levantando as mãos ao santo coro
Dos anjos, que tão longe nos guiou,
A Deus pedi que removesse os duros
Casos, que Adamastor contou futuros.

61
"Já Flegon e Piróis vinham tirando
Com os outros dois o carro radiante,
Quando a terra alta se nos foi mostrando,
Em que foi convertido o grão Gigante.
Ao longo desta costa, começando
Já de cortar as ondas do Levante,
Por ela abaixo um pouco navegamos,
Onde segunda vez terra tomamos.

62
"A gente que esta terra possuía,
Posto que todos Etíopes eram,
Mais humana no trato parecia
Que os outros, que tão mal nos receberam.
Com bailos e com festas de alegria
Pela praia arenosa a nós vieram,
As mulheres consigo e o manso gado
Que apascentavam, gordo e bem criado.








José Saramago

Epitáfio para Luís de Camões

Que sabemos de ti, se só deixaste versos,
Que lembrança ficou no mundo que tiveste?
Do nascer ao morrer ganhaste os dias todos?
Ou perderam-te a vida os versos que fizeste?


Poema para Luís de Camões



Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
Quem pudera dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho pára,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
E a ardência das pedras, a dura combustão
Dos corpos percutidos como sílex,
E as grutas do pavor, onde as sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes, repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta,
E depois, verticais, as labaredas
Ateadas nas frontes como espadas,
E os corpos levantados, as mãos presas,
E o instante dos olhos que se fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as estrelas.

Eram estas as grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.




CAMÕES E A TENÇA - Sophia de Mello Breyner Andresen



Irás ao paço. Irás pedir que a tença
seja paga na data combinada
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce

Em tua perdição se conjuraram
calúnias desamor inveja ardente
e sempre os inimigos sobejaram
a quem ousou seu ser inteiramente

E aqueles que invocaste não te viram
porque estavam curvados e dobrados
pela paciência cuja mão de cinza
tinha apagado os olhos no seu rosto

Irás ao paço irás pacientemente
pois não te pedem canto mas paciência

Este país te mata lentamente

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Quarta oficina: De latidos e miados, os animais pedem a palavra



O homem tenta atribuir sentido a tudo. Por ser um animal racional, empresta suas palavras aos demais seres, expressando em linguagem humana os sentimentos dos restantes animais. Tendo como tema a visão humana sobre os bichos, a quarta oficina, a ser realizada no dia 26/05, às 08 horas, vai adentrar nos latidos, miados, piados, guinchos e diferentes vozes animalizadas. Inicialmente, com o conto de Graciliano Ramos, vai-se acompanhar os últimos momentos de “Baleia”, uma cadela no sertão nordestino. Em seguida, embalados pela música e as ondas, vai-se embarcar na “Arca de Noé” de Vinícius de Moraes. Como contraponto à luz e leveza dos textos anteriores, chega-se à morbidez e penumbra de poemas de Augusto dos Anjos e morcegos, corvos e cães. Finalizando, no conto de Miguel Torga, “Mago”, surge um gato dividido entre a fidelidade que deve à sua dona e as sensações de liberdade que todo gato vadio possui.




BALEIA - Graciliano Ramos




A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.

Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa nas base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.

Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.

Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que advinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:



- Vão bulir com a Baleia?

Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo.

Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se difereciavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiquiro das cabras.

Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas sinhá vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.

Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.

Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.

Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como sinhá Vitória tinha relaxado os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:

- Capeta excomungado.

Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.

Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.

Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto era impossível, levantou um pedaço da cabeça.

Fabiano percorreu o alpendre, olhando as baraúna e as porteiras, açulando um cão invisível contra animais invisíveis:

-Ecô! ecô!

Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a e esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos de Baleia, que se pôs latir desesperadamente.

Ouvindo o tiro e os latidos, sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na caca chorando alto. Fabiano recolheu-se.

E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí por um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.

Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.

Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha as folhas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros. Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteira, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-­se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas. Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latina: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tomavam-se quase imperceptíveis.

Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra.

Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava­-se.

Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.


Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinha fugido.


Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.


O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.


Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera. Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.


Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.


Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a importância em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades.


Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinhá Vitória guardava o cachimbo.


Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.



Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil no barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.


Provavelmente estava no cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.


A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do outro peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.


Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.


Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.

Textos "A Arca de Noé":

A Arca de Noé

Sete em cores, de repente
O arco-íris se desata
Na água límpida e contente
Do ribeirinho da mata.

O sol, ao véu transparente
Da chuva de ouro e de prata
Resplandece resplendente
No céu, no chão, na cascata.

E abre-se a porta da arca
Lentamente surgem francas
A alegria e as barbas brancas
Do prudente patriarca.

Vendo ao longe aquela serra
E as planícies tão verdinhas
Diz Noé: que boa terra
Pra plantar as minhas vinhas.

Ora vai, na porta aberta
De repente, vacilante
Surge lenta, longa e incerta
Uma tromba de elefante.

E de dentro do buraco
De uma janela aparece
Uma cara de macaco
Que espia e desaparece.

"Os bosques são todos meus!"
Ruge soberbo o leão
"Também sou filho de Deus!"
Um protesta; e o tigre — "Não!"

A Arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Aos pulos da bicharada
Toda querendo sair.

Afinal com muito custo
Em longa fila, aos casais
Uns com raiva, outros com susto
Vão saindo os animais.

Os maiores vêm à frente
Trazendo a cabeça erguida
E os fracos, humildemente
Vêm atrás, como na vida.

Longe o arco-íris se esvai
E desde que houve essa história
Quando o véu da noite cai
Erguem-se os astros
em glória

Enchem
o céu de seus caprichos.
Em meio à noite calada
Ouve-se a fala dos bichos
Na terra repovoada.




São Francisco

Lá vai São Francisco
Pelo caminho
De pé descalço
Tão pobrezinho
Dormindo à noite
Junto ao moinho
Bebendo a água
Do ribeirinho.

Lá vai São Francisco
De pé no chão
Levando nada
No seu surrão
Dizendo ao vento
Bom-dia, amigo
Dizendo ao fogo
Saúde, irmão.

Lá vai São Francisco
Pelo caminho
Levando ao colo
Jesuscristinho
Fazendo festa
No menininho
Contando histórias
Pros passarinhos.



A Menininha

Menininha do meu coração
Eu só quero você
A três palmos do chão
Menininha não cresça mais não
Fique pequenininha na minha canção
Senhorinha levada
Batendo palminha
Fingindo assustada
Do bicho-papão

Menininha, que graça é você
Uma coisinha assim
Começando a viver
Fique assim, meu amor
Sem crescer
Porque o mundo é ruim, é ruim e você
Vai sofrer de repente
Uma desilusão
Porque a vida é somente
Teu bicho-papão

Fique assim, fique assim
Sempre assim
E se lembre de mim
Pelas coisas que eu dei
Também não se esqueça de mim
Quando você souber enfim
De tudo o que eu amei.



Corujinha

Corujinha, corujinha
Que peninha de você
Fica toda encolhidinha
Sempre olhando não sei que
O teu canto de repente
Faz a gente estremecer

Corujinha, pobrezinha
Todo mundo que te vê
Diz assim, ah! coitadinha
Que feinha que é você

Quando a noite vem chegando
Chega o teu amanhecer
E se o sol vem despontando
Vais voando te esconder
Hoje em dia andas vaidosa
Orgulhosa com quê
Toda noite tua carinha
Aparece na TV
Corujinha, corujinha
Que feinha que é você!



A Foca

Quer ver a foca
Ficar feliz?
É por uma bola
No seu nariz.

Quer ver a foca
Bater palminha?
É dar a ela
Uma sardinha.

Quer ver a foca
Comprar uma briga?
É espetar ela
Na barriga!
Lá vai a foca
Toda arrumada
Dançar no circo
Pra garatoda.
Lá vai a foca
Subindo a escada
Depois descendo
Desengonçada.
Quanto trabalha
A coitadinha
Pra garantir
Sua sardinha.
 

O MORCEGO – Augusto dos anjos


Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.


"Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!



Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!


A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!



ASA DE CORVO – Augusto dos Anjos

Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre ás vezes
O telhado de nossa própria casa...


Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto á brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!


E com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza...


E ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte - a costureira funerária
- Cose para o homem a última camisa!


VERSOS A UM CÃO – Augusto dos Anjos

Que força pôde adstrita e embriões informes,
Tua garganta estúpida arrancar
Do segredo da célula ovular
Para latir nas solidões enormes?!

Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
Suficientíssima é, para provar
A incógnita alma, avoenga e elementar
Dos teus antepassados vermiformes.

Cão! - Alma de inferior rapsodo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
A escala dos latidos ancestrais...


E irás assim, pelos séculos, adiante,
Latindo a esquisitíssima prosódia
Da angustia hereditária dos teus pais!



MAGO - Miguel Torga

Mago respirou fundo. Abriu o nariz e encheu o peito de ar ou de luar, não podia saber ao certo, porque a noite era clara como o dia e parada como uma montanha. Mas fosse de frescura ou de luz a onda que bebera num trago, de tal modo o inundou, que em todo o corpo lhe correu logo um frêmito de vida nova. Esticou-se então por inteiro, firmado nas quatro patas, arqueou o lombo, e deixando-se ficar assim por alguns instantes, só músculos, tendões e nervos, com os ossos a ranger de cabo a rabo. Arre, que não podia mais! Aquele mormaço da sala dava cabo dele. Deixava-o sem ação, bambo, mole e morno como o cobertor de papa onde dormia. A que baixezas a gente pode chegar! Ah, mas tinha que acabar semelhante degradação! Não pensasse lá agora a senhora D. Maria da Glória Sância que estava disposto a deixar-se perder para sempre no seu regaço macio de solteirona. Não faltava mais nada! E, se lhe restavam dúvidas, reparasse no que estava a acontecer naquele momento: ela a ressonar sozinha, na cama fofa, enquanto ele enchia os pulmões de oxigênio e de liberdade. É certo que a deixara primeiro adormecer, e só então, brandamente, deslizara de seus braços para o tapete e do tapete para a rua, através do postigo da cozinha. Uma questão de delicadeza, apenas. Porque, afinal, não havia vantagem nenhuma em fazer as coisas à bruta e ofender quem só lhe queria bem... Que diabo, sempre a senhora D. Maria Sância, a que até um fio de oiro lhe comprara para o pescoço! Que, considerando bem, por essas e por outras é que chegara àquela linda situação...

- Ouvi dizer que já nem sardinhas comes?!

- Essa agora! É todos os dias...


- E que nunca mais caçaste?


- Ainda esta manhã...



Piadinhas do Lambão. É claro que os mimos de D. Sância lhe haviam deformado o gosto... Metia-lhe os petiscos ao focinho, tentava-se! E havia por onde escolher, de mais a mais! Quanto a ratos, que necessidade tinha de perder o tempo, debruçado três horas sobre um buraco, sem mexer sequer a menina dos olhos, à espera dum pobre diabo qualquer que ressonava lá no fundo? Deixá-los viver! As coisas são o que são. Em todo o caso, ainda comia a sua pescada crua e deitava honradamente a mão a uma ou outra borboleta branca, sem falar nas andorinhas novas e nos pardalecos que filava por desfastio na primavera. Que demónio!

- Mas que não saias de casa, sempre agarrado às saias...

Na verdade, saía pouco. Outros tempos, outros hábitos. Banqueteava-se e ficava-se pelas almofadas... Digestões difíceis, vinha-lhe um migalho de sonolência... Às vezes tentava reagir. Mas o raio da velha, mal o via pôr o pé na soleira da porta, perdia a cabeça! Parecia uma sineta!

- Mago! Mago! Bicho, bichinho!

Regressava aos lençóis, claro. Contrariado, evidentemente. Mas quê! Era o pão... O pãozinho na boca! Que remédio senão torcer caminho e, com as unhas discretamente recolhidas, continuar as carícias de algodão em rama no cachaço da dona...

- E que deixaste a Faísca!...

- Eu?

- Que anda metida com o Zimbro... Pelo menos é o que consta. Que teve até cinco pequenos dele...

- Meus! Muito meus! Do meu sangue!

Pantominice. Um triste chanato na honra do convento. Paleio de chavelhudo manso... a ninhada pertencia inteirinha ao Zimbro. Até pela pinta se via. Todos com o mesmo olhinho remelão... O que ele era era um parrana, um infeliz, embora o não confessasse. Os mimos de D. Sância tinham-no desgraçado. Ah, mas a coisa ia mudar de figura! Estava farto de ser desfeiteado. Ainda há pouco... chegara-se ao pé da mulher, disposto a impor sua autoridade.

- Ouve lá: disseram-se que mos andas a pôr para aí com todo mundo?

E recebe esta pelas ventas:

- Bem haja eu!



- Bem hajas tu?!

- Nunca guardei respeito a maricas!

Só a tiro! Mas a verdade é que a Faísca tinha razão. Lá de ano a ano é que vinha procurá-la, e isso de gado fêmeo quer assistência.

Além disso, pesadão, desconsolado. E até esquecido dos ganidos dessas horas... Uma vergonha!

- Aparece logo à noite, pelo Tinoco... Há reunião. E adeusinho...

- Adeus, Lambão.

Foi no quintal, à tarde, quando a D. Sância dormia a sesta. O Lambão, empoleirado no muro, rondava a cozinha da vizinhança, onde assavam carapaus. Por acaso chegara à janela nesse momento, vira-o e fizera-lhe sinal. E o outro, de boa ou má fé, abrira o saco. Mas há males que vêm por bem. Depois da conversa, pensara maduramente no caso, e ali estava agora disposto a ressuscitar daquela vida perdida em que o destino o metera.

Sim, ali estava, a dois passos do Tinoco, o clube da gataria de meia-idade. Bem situado, com saída para dois bairros da cidade, fora fundado pelo maior valdevinos da geração: o Hilário. Era um telhado corrido, quase plano, amplo, alto, mas de onde se podia cair de qualquer maneira numa aflição. Um achado. Como a casa servia de armazém, o Hilário viu de relance as condições do local. E logo no outro dia, os beijos, as mordedelas, os arranhões e os queixumes do cio foram ali.

Bons tempos esses! Namorava então a Boneca, uma gatinha borralheira de a gente se perder.

- Ora viva!

- Miiau...

- Seja bem aparecida, a minha bonequinha!

- Miiau...

Mimo da cabeça aos pés. Mas um rebuçadinho! Depois enrodilhara-se com a Moira-Negra, um coiro velho, curtido e batido. Cada guincho que abria a noite!

- Cala-te lá com isso, mulher!



Isso calava ela! Acabou por se aborrecer. Por fim veio a lambisgóia da Perricha... Uns trabalhos. Ciúmes, fraqueza, dores de cabeça, o diabo!

- Matas-te, filho, arruinas-te...

Palavras sensatas da mãe.

- Muda de vida, homem! Essa excomungada leva-te à sepultura.

Mas quê! O vício pode muito.

Até que a mãe morreu de velhice e desgosto, a Perricha desapareceu do bairro e ele foi cair por acaso no quintal da D. Sância.

- O bichinho está doente. Se calhar é fome...

E a ternura da senhora nunca mais o largou. A princípio ainda tentou reagir, mas, por fim, o corpo, o miserável corpo, acostumou-se ao ripanço. A parva da santanaria cuidava que era amor correspondido. Palerma! Amizade sincera não é com gatos. Simplesmente, quem brinca aos afogados, afoga-se. Com o andar do tempo, a moleza foi tomando conta dele... E pronto. Quando reparou, estava perdido. Às vezes tinha tentações do inferno. Infelizmente, as vidas iam ruins. Virava-se um balde de restos, e não se aproveitava uma espinha. Que remédio, pois, senão contemporizar... Mas cara aposentadoria! Considerando bem, melhor fora que o estafermo de solteirona nunca lhe tivesse aparecido. Mais valia andar pelado e a cair de fome e ser capaz de responder ao pé da letra aos sarcasmos que agora lhe atiravam.

- Olha o Mago!... Olha o milionário!...

O patife do Tareco. Era de o derreter logo ali! A desgraça é que não podia passar da mansa indignação que o roía. Nem forças, nem coragem para mais. E, logo por azar, com o clube à cunha! Parecia de propósito. Raios partissem a D. Sância, e mais quem lhe gabava as almofadas! Por causa delas, pouco faltava para lhe cuspirem na cara!

- Com que então de visita aos bairros pobres? Obra de assistência ao desvalidos, não?

Até o bandido do Zimbro. Vejam lá! O engraçado! Não contente de lhe roubar a mulher, de lhe pregar um par deles do tamanho duma procissão, vinha ainda com provocações à vista de toda a gente. Ah, mas estava redondamente enganado, se cuidava que não recebia o troco devido.

- O cavalheiro seja mais delicado...



- Reparem nas falinhas dele... A tratar os amigos por cavalheiros!

- Amigos? Eu não tenho amigos da sua laia!

- Pesam-lhe na testa, coitado!

Desembestou. Cego da cabeça aos pés, atirou-se ao abismo. Infelizmente as ensanchas do Zimbro eram outras. Tinha raiva, tinha dentes, tinha unhas e fôlego. Contra tais armas, que podia a simples indignação dum pobre mortal, gordo e lustroso? Servir de bombo da festa... É que nem a primeira acertou! Ágil e musculado, e com a maleabilidade de uma cobra, o inimigo furtou-se à sua fúria, e ripostou a valer ao golpe esboçado. Depois, foi o bom e o bonito! A seguir, uma saraivada de investidas traiçoeiras, meia dúzia de navalhadas de liquidar um homem. Só visto! No fim da luta, quando já não podia mais e se confessou derrotado, sangrava e gemia tanto, que até um polícia, em baixo, na rua estreita, se comoveu. O clube, esse, parecia doido de alegria. A Faísca rebolava-se no chão, de contente.

Fugiu desvairado pelos telhados. A lua, cada vez mais branca lá no alto, olhava-o com desdém. A cidade, adormecida, parecia um cemitério sem fim. Da torre duma igreja, saía um pio agoirento.

Jogara naquele lance o resto da dignidade. E perdera. Dali por diante, seria apenas uma humilhação, sem esperança. Ele, que tivera nas mãos possantes e nervosas o corpo fino e submisso da Boneca, ele, o escolhido da Moira-Negra, ele, o companheiro de noitadas do Hilário, ele, Mago, relegado definitivamente para o mundo das pantufas e dos tapetes! Proibido para o resto da existência de pensar sequer numa baforada da úmida frescura que agora lhe atravessava as ventas e lhe deixava cantarinhas no bigode... Condenado para sempre ao bafio da maldita sala de visitas da D. Sância! Negra sorte! E tudo obra do coirão da velha... Se não fosse ela, em ver de ir ali esquadrilhado e a mancar da mão esquerda, estaria no Tinoco a soltar ganidos com os outros, depois de ter feito o Zimbro em pedaços... Assim, arrastava-se penosamente por aquele caminho de desespero, tal e qual um moribundo a despedir-se da vida... Miséria de destino! Vexado, vencido, retalhado no corpo e na alma...E tudo obra do estupor da sanataria!

Vinha rompendo a manhã. Um sino ao longe deu cinco horas. Abriam-se as primeiras janelas. Grandes laivos avermelhados anunciavam a chegada próxima do sol.


Parou. Lambeu a pata doente e sacudiu-se, num arrepio. Uma lassidão profunda começava a invadi-lo. Maldita D. Sância! Se nunca tivesse conhecido a tal sujeita...

Olha, olha, a enevoar-se-lhe a vista! Queriam ver que ia desmaiar?!

Encostou-se a uma chaminé, e ficou algum tempo sem dar acordo de si, a arfar penosamente. Até que uma onda de energia o trouxe de novo ao mundo. Arregalou os olhos. Estava melhor, felizmente! Já enxergava claro outra vez. Podia continuar.

Em que trabalhos o metera o raio da senhoreca! E louvar a Deus safar-se com vida da brincadeira... Coça valente... Por um triz que não se ficava... Muita resistência tinha ele ainda!

A alguns metros apenas do jardim da casa, cuidou que tornava a desfalecer. E só então é que reparou: deixava um rastro de sangue por onde passava...

Fez das tripas coração e lá conseguiu equilibrar-se e chegar ao pequeno muro que vedava o paraíso da sua perdição. Saltava? Não saltava? Que infâmia, regressar aos mimos da D. Sância! Que nojo! Que ordinarice!

Mas a que propósito vinham agora as perplexidades e as recriminações? Sim, a que propósito? Fartinho de saber que nem sequer lhe passara pela cabeça a idéia de resolver o caso doutra maneira! Ao menos fosse sincero! De resto, que esforço concreto fizera para se libertar? Nenhum. Ainda não havia uma dúzia de horas, ouvira a voz de Lambão como um eco da própria consciência... E, afinal, ali estava outra vez! E viera de livre vontade... Ninguém o obrigara... Já roído de remorsos? Ora, ora! Outro fosse ele, nem aquela casa encarava mais. E voltara! Sim, voltara miseravelmente... E à procura de quê? Da paz podre, dum conforto castrador... Que abjeção! Que náusea!

E, sem querer, sem poder aceitar a sua degradação, Mago entrou pelo postigo da cozinha e foi-se deitar entre os braços balofos da D. Sância.

domingo, 6 de maio de 2012

Terceira Oficina: Viagens deste mundo e do outro

Hamlet disse a Horácio, "há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia". A frase não é nova, mas também não é de hoje a preocupação do homem com o que há no outro lado. Desde Shakespeare (e antes dele), a literatura vem servindo como uma espiada no que pode ocorrer lá: Deus (ou deuses), demônios e anjos, seres sobrenaturais. Na terceira oficina, a se realizar no dia 12/05, às 08 horas, observar-se-á essa interação entre o mundo dos vivos e os seres do outro mundo. Inicialmente, a crônica de Rubem Braga "Eu e Bebu na hora neutra da madrugada" mostra um nova forma de ver o Diabo. Em seguida, voltando aos tempos medievais, Gil Vicente constrói uma alegoria das virtudes e defeitos humanos através de seu Auto da Barca do Inferno. Como terceiro texto, Cruz e Sousa mostrará um Anjo Gabriel envolto em luz, imagens e símbolos. Por fim, no conto de Machado de Assis, "A Igreja do Diabo", ocorre a total inversão das religiões, e como o homem se portaria diante dessa nova situações.




Eu e Bebu na hora neutra da Madrugada - Rubem Braga

- Eu e Bebu na “hora neutra da madrugada” . . .
Muitos homens, e até senhoras, já receberam a visita do Diabo, e conversaram com ele de um modo elegante e paradoxal. Centenas de escritores sem assunto inventaram uma palestra com o Diabo. Quanto a mim, o caso é diferente. Ele não entrou subitamente em meu quarto, não apareceu pelo buraco da fechadura, nem sob a luz vermelha do abajur. Passou um dia inteiro comigo. Descemos juntos o elevador, andamos pelas ruas, trabalhamos na Redação do Jornal e comemos juntos.

A principio confesso que estava um pouco inquieto. Quando fui comprar cigarros, receei que ele dirigisse algum galanteio baixo à moça da tabacaria. É uma senhorita de olhos (cor) de garapa e cabelos castanhos muito simples, porém muito bonitos que eu conheço e que me conhece, embora a gente não se cumprimente. Mas o Diabo se comportou honestamente. O dia todo – era um sábado – correu sem novidade. Ele esteve ao meu lado na mesa de trabalho na Redação, no restaurante, no engraxate, no salão do barbeiro. Eu lhe paguei o cafezinho; ele me pagou um refrigerante.

À tarde, eu já não o chamava de “Belzebu”, mas apenas de “Bebu”, e ele me chamava simplesmente de “Rubem”. Nossa intimidade caminhava rapidamente, mesmo sem a gente esperar. Quando um cego nos pediu esmola, dei dois reais. É meu hábito, sempre dou dois reais. Ele deu uma nota de dez reais, não sei se por veneta ou porque não tinha mais miúdo. Conversamos pouco; não havia assunto.

À noite, depois do jantar, fomos ao cinema. . . Outra vez me voltou a inquietude que sentira pela manhã. Por coincidência, ele ficou sentado junto a duas mocinhas que eu conhecia vagamente, por serem amigas de uma prima que tenho no subúrbio. Temi que ele fosse inconveniente; eu é que ficaria constrangido. Vigiei-o durante a metade da fita, mas ele estava sossegado em sua cadeira; tranqüilizei-me. Foi então que reparei que ao meu lado esquerdo sentara-se uma moça que me pareceu muito bonita. Observei-a na penumbra. A sua pele era morena, e os cabelos lisos, negros e longos. Sentia a tepidez de seu corpo. Ela acompanhava o filme com muita atenção. Lentamente, toquei o seu braço com o meu; era fácil e natural; isto sempre acontece por acaso as pessoas que estão sentadas juntas no cinema. Mas aquela caricia banal me encheu as veias de desejo. Suavemente, deslizei a minha mão para a esquerda. A moça continuava olhando para o filme. Achei-a linda e tive a impressão de que ela sentia como eu estava emocionado, e que isto lhe dava prazer.

Mas neste momento, ouço um pequeno riso e viro-me. Bebu está me olhando. Na verdade não está rindo; está sério. Mas em seus olhos há qualquer malicia. Envergonhei-me como uma criança. O filme acabou e não falamos no incidente. Eu fui para a redação, e comecei a escrever alguma coisa, ele sentou-se ao meu lado – calado.

Só voltamos a conversar à vontade pela madrugada. A madrugada tem uma hora neutra que há muito tempo observo. É quando passo a tarde toda trabalhando, sem parar, e depois ainda trabalho até a meia-noite na redação. Estou fatigado, mas não me agrada dormir. E aí que vem, não sei como, a “tal hora neutra” da madrugada. Depois, eu e Bebu ficamos diante de uma garrafa de cerveja em um bar qualquer. Bebemos lentamente sem prazer e sem aborrecimento. Na minha cabeça havia uma vaga sensação de efervescência, alguma coisa morna, como um pequeno peso.  Isto sempre me acontece: é a madrugada, depois de um dia de trabalheiras cacetes. Conversamos não me lembro sobre o quê. Pedimos outra cerveja. Muitas vezes pedimos outra cerveja. Houve um momento em que olhei sua cara banal, seu ar de burocrata avariado, e disse:

- Bebu, você não parece o Diabo. É apenas, como se costuma dizer, um pobre-diabo.

- Ele me fitou com seus olhos escuros e flamejantes e disse:

- Um pobre-diabo é um pobre DEUS que fracassou.

- Disse isso sem solenidade nenhuma, como se não tivesse feito uma frase. De repente me perguntou se eu acreditava no Bem e no Mal. Não respondi; eu não acreditava.

Mas a nossa conversa estava ficando ridícula. Desagradava-me falar sobre esses assuntos vagos e solenes. Disse-lhe isto, mas ele não me deu a menor atenção.
Grunhiu apenas:

- Existem.

- Depois afrouxou o laço da gravata e falou:

- Há o Bem e o Mal, mas não é como você pensa. Afinal quem é você? Em que você pensa? Com certeza naquela moça que vende cigarros, de olhos de garapa, de cabelos castanhos...

Estas palavras de Bebu me desagradaram. Ele dissera exatamente como por acaso: aquela moça de olhos de garapa. . . Era assim que eu me exprimia mentalmente, era esta a imagem que me vinha à cabeça sempre que pensava nos olhos daquela linda moça.

Sei que não é uma comparação nova; há muitos olhos que tem aquela mesma cor meio verde, meio escura, de caldo de cana; eu já vi essa imagem em uma poesia, não lembro de quem. Mas a coincidência era alarmante; não podia ser coincidência. O Bebu lia o meu pensamento, e, o que era pior, lia sem nenhum interesse, como se lê um “jornal de anteontem”. Isso me irritou profundamente:

- Ora, Bebu, não se trata de mim. Você estava falando do Bem e do Mal. Uma conversa besta. . .

- Ele não ligou... – e disse:

- Está bem, Rubem: o Bem e o Mal existem, fique sabendo. Você morou muito tempo em São José do Rio Branco, não morou?

- Estive lá quase dois anos – respondi. Trabalhava com meu Tio. Um lugarzinho parado. .

- Bem – disse – Bebu – Lá havia um Prefeito, um velho Prefeito, o Coronel Barbirato. Mas o nome não tem importância. Imagine isto: uma cidade pequena onde há sempre um Prefeito, o mesmo Prefeito. Esse Prefeito nunca será deposto, nunca deixará de ser reeleito, sempre será ele o Prefeito. E há também um homem que lhe faz oposição. Esse homem uma vez quis depor o Prefeito, mas foi derrotado e o será sempre. O povo da cidade teme, aborrece, estima, odeia o Prefeito; não importa. Pois é isto.

- Bebu pôs mais um pouco de cerveja no copo e continuou falando:

- É isto: o Bem e o Mal. O Prefeito acha que os bancos do jardim devem ser colocados diante da Igreja: isto é o Bem. O homem da oposição acha que eles devem ficar em volta do coreto? Isto é o Mal. Entretanto. . .

- Bebu – deixe de ser chato – rebati.

- Ele retruca – Não amole. Você sabe a minha história. Fiz uma revolução contra DEUS. Perdi, fui vencido, fui exilado; nunca tive e nem implorei anistia. DEUS me venceu para todos os séculos, para a eternidade. É o Prefeito eterno, ninguém pode fazer nada. Agora, se tem coragem, imagine isto: eu saio de meu inferno uma bela tarde, junto todo o meu pessoal, faço uma campanha de radiodifusão, arranjo armamento, vou até o Paraíso e derroto aquele patife. Expulso de lá aquela canalhada toda, todas aquelas onze mil virgens, aquela santaria imunda que vocês tanto falam. O que acontece?

- Eu não respondi. Irritava-me aquele modo de Bebu de falar. Aí Bebu continuou com mais veemência:

- Acontece isto – seu animal: não acontece nada! Você reparou quando uma revolução vence? Os homens se renderão diante do fato consumado. O Bem será o Mal, e o Mal será o Bem. Quem passou a vida adulando DEUS irá para o inferno para deixar de ser imbecil. Eu farei a derrubada: em vez de Anjinhos, os capetinhas; em vez de Santos, os demônios. Tudo será a mesma coisa, mas exatamente o contrário. Não precisarei nem modificar as religiões. Só mudar uma palavra nos Livros Santos: onde estiver “não”, escrever “sim”, onde estiver “pecado”, escrever “virtude”. E o mundo tocará para frente. Vocês não seguirão a minha Lei, assim como nunca seguiram e não seguem a DELE; não importa, será sempre a Lei.

- Eu me sentia atordoado. Percebi que lá fora, na rua, as lâmpadas se apagavam e murmurei: já são seis horas! – Bebu falava com um ar de desconsolo:

- Mas não pense nisto. Aquele patife, o teu DEUS, está firme. É possível depô-lo? Não! É impossível! Impossível! . .

- Olhei a sua cara. Dentro de seus olhos, no fundo deles, muito longe, havia um brilho. Era uma pequena, miserável esperança, muito distante. Mas, todavia irredutível. Senti pena do Bebu. É estranho, eu não posso olhar uma pessoa assim, no fundo dos olhos, sem sentir pena. Fui consolando:

- Enfim, meu caro Bebu, não adiantaria coisa alguma. Você como está, vai bem. Tem seu prestigio. . .

- É - Eu estou bem? Canalha! Retrucou-me! – Pensa que, quando me revoltei, foi à toa? Conhece o meu Programa de Governo? Sabe qual foram os ideais que me levaram a luta? Pode explicar por que, através de todos os séculos e séculos, desde que o mundo não era mundo até hoje, até sempre, fui eu, Lúcifer, o único que teve peito pra se revoltar? Você sabe que, modéstia a parte, eu era o melhor da Turma? Eu era o mais brilhante, o mais feliz, o mais puro, era feito de Luz. Por que é que me levantei contra ELE, arriscando tudo? O Governo atual diz que eu fui movido pela ambição e pela vaidade. Mas todos os Governos do mundo dizem isto de todos os revolucionários fracassados! Olhe, você é tão burro que eu vou lhe dizer. Esta joça não ficava assim não. Eu podia lhe contar o meu Programa de Governo; não conto, não conto porque não sou nenhum desses políticos idiotas que vivem salvando a pátria com suas plataformas e o povo mais imbecil ainda – pois acredita! Mas reflita um pouco, meu animal. DEUS me derrotou, me esmagou, e nunca nenhum vencedor foi mais infame para com um vencido. Mas pelo amor que você tem a esse canalha, diga-me: o que é que ele fez até agora? A vida que ele organizou e que ele dirige não é uma miséria? – uma porca miséria? Você sabe perfeitamente disto. Os homens não sofrem, não se matam, não vivem fazendo burradas? É impossível esconder o fracasso. DEUS fracassou, fracassou mi-se-ra-vel-men-te! Vocês - os homens o fizeram fracassar! E agora, vamos, por pior que eu fosse, acha possível camarada, acha possível que eu organizasse um mundo tão ridículo, tão sujo, com homens dessa natureza – fazendo o que querem e o que lhes convêm?

- Não respondi a Bebu. Esvaziamos em silêncio o último copo de cerveja. Eu ia pedir outra, mas refleti amargamente que não tinha mais dinheiro no bolso. Ele, por sua vez, constatou o mesmo. Saímos. Lá fora já era dia:

- Puxa vida! Que sol claro, Bebu! Isto deve ser sete horas. Andamos até a esquina da Avenida.

- Ele me perguntou?

- Onde é que você vai?

- Respondi-lhe – vou dormir. E você?

- Bebu me olhou com seus olhos escuros e respondeu com um sorriso de anjo:

- Vou à missa. . . 




ANJO GABRIEL – CRUZ E SOUZA




Na calma irradiação das noites estreladas

Alto e claro aparece, alto, aparece, claro,

Alvo, claro, no luar das estrelas prateadas,

No triunfal esplendor celestemente raro.




O seu busto de Excelso, a sua graça fina,

A linha de harpa ideal do seu perfil augusto,

Estremecem de luz, de uma luz peregrina,

Do secreto fulgor de um sentimento justo.




Serenidade e glória e paz do Paraíso

Flutuam-lhe na face alvorecida e doce

E quando ele sorri é como se o sorriso

Claros astros semear por todo o espaço fosse.




Leve, loura, .radial, a soberba cabeça

Eleva-se da flor do níveo colo louro

E não há outro sol que tanto resplandeça

Como o sol virginal dessa cabeça de ouro.




As mãos esculturais, de ebúrnea transparência,

De divina feitura e de divino encanto,

Lembram flores sutis de sonhadora essência

Da etérea languidez e de etéreo quebranto.




Das madeixas reais largo deslumbramento

Num flavo jorro cai, com sagrado abandono...

E sai do Anjo o quer que é de vago e de nevoento

Que lembra o despertar sonâmbulo de um sono...




De alto a baixo, do Azul, desfilando das brumas,

Abre todo ele em flor como nevado lírio,

Belo, branco, eteral, do candor das espumas,

Banhado nos clarões e cânticos do Empíreo.




Maravilhoso e nobre ergue no braço ovante

Um gládio singular que rútilo cintila...

Enquanto o seu olhar de mágico diamante

Aflora em plenilúnio através da pupila.




Que o seu olhar, então, esse, recorda tudo

O quanto há de tranqüilo e luminoso e casto.

Maio de ouro a florir meigos céus de veludo

E a neve a cintilar sobre o monte mais vasto.




Do puro albor astral das asas majestosas,

Desprendem-se no Azul mistérios de harmonia...

Entre as angelicais suavidades radiosas

Parece o Anjo Gabriel o alto Enviado do Dia!




Na chama virginal de tão rara beleza

Brilha a força de um Deus e a mística doçura...

E sai das seduções de tamanha pureza

Toda a melancolia errante da ternura.




Do suntuoso agitar das delicadas vestes

Tecidas de jasmins, de rosas, de açucenas,

Vem o aroma cristão dos aromas celestes,

Todas as imortais emanações serenas...




Transfigurado, excelso, agigantado, imenso,

Na candidez hostial das formas impecáveis,

Fica parado no ar, levemente suspenso

De raios siderais, de fluidos inefáveis.




Mas quando o seu perfil nas amplidões floresce

E das asas se lhe ouve a música sonora

Quando ele agita o gládio e as madeixas, parece

Que vai noctambular pelo Infinito afora.




E alto, branco, de pé, destacado no Espaço,

Eleito das Regiões de estranhas Primaveras,

Traça, com o gládio no ar, alevantando o braço,

Uma cruz de Perdão na mudez das Esferas!




A IGREJA DO DIABO - Machado de Assis


CAPÍTULO I
DE UMA IDÉIA MIRÍFICA


Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

-Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.



II

ENTRE DEUS E O DIABO



Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

-Que me queres tu? perguntou este.

-Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

-Explica-te.

-Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...

-Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

-Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?

-Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor,

-Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

-Vai

-Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

-Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

-Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê- las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...

-Velho retórico! murmurou o Senhor.

-Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu o Diabo.

-Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

-Já vos disse que não.

-Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

-Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

-Negas esta morte?

-Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...

-Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!

Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.





III

A BOA NOVA AOS HOMENS



Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

-Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.





IV

FRANJAS E FRANJAS



A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:

-Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.



AUTO DA BARCA DO INFERNO

Gil Vicente




Vem um Onzeneiro, e pergunta ao Arrais do Inferno, dizendo:

ONZENEIRO    Pera onde caminhais?

DIABO    Oh! que má-hora venhais,

    onzeneiro, meu parente!

    Como tardastes vós tanto?

ONZENEIRO    Mais quisera eu lá tardar...

    Na safra do apanhar

    me deu Saturno quebranto.

DIABO    Ora mui muito m'espanto

    nom vos livrar o dinheiro!...

ONZENEIRO    Solamente para o barqueiro

    nom me leixaram nem tanto...

DIABO    Ora entrai, entrai aqui!

ONZENEIRO    Não hei eu i d'embarcar!

DIABO    Oh! que gentil recear,

    e que cousas pera mi!...

ONZENEIRO    Ainda agora faleci,

    leixa-me buscar batel!

DIABO    Pesar de Jam Pimentel!

    Porque não irás aqui?...

ONZENEIRO    E pera onde é a viagem?

DIABO    Pera onde tu hás-de ir.

ONZENEIRO    Havemos logo de partir?

DIABO    Não cures de mais linguagem.

ONZENEIRO    Mas pera onde é a passagem?

DIABO    Pera a infernal comarca.

ONZENEIRO    Dix! Nom vou eu tal barca.

    Estoutra tem avantagem.

Vai-se à barca do Anjo, e diz:

    Hou da barca! Houlá! Hou!

    Haveis logo de partir?

ANJO    E onde queres tu ir?

ONZENEIRO    Eu pera o Paraíso vou.

ANJO    Pois cant'eu mui fora estou

    de te levar para lá.

    Essoutra te levará;

    vai pera quem te enganou!

ONZENEIRO    Porquê?

ANJO    Porque esse bolsão

    tomará todo o navio.

ONZENEIRO    Juro a Deus que vai vazio! ANJO    Não já no teu coração.

ONZENEIRO    Lá me fica, de rondão,

    minha fazenda e alhea.

ANJO    Ó onzena, como és fea

    e filha de maldição!

Torna o Onzeneiro à barca do Inferno e diz:

ONZENEIRO    Houlá! Hou! Demo barqueiro!

    Sabês vós no que me fundo?

    Quero lá tornar ao mundo

    e trazer o meu dinheiro.

    que aqueloutro marinheiro,

    porque me vê vir sem nada,

    dá-me tanta borregada

    como arrais lá do Barreiro.

DIABO    Entra, entra, e remarás!

    Nom percamos mais maré!

ONZENEIRO    Todavia...

DIABO    Per força é!

    Que te pês, cá entrarás!

    Irás servir Satanás,

    pois que sempre te ajudou.

ONZENEIRO    Oh! Triste, quem me cegou?

DIABO    Cal'te, que cá chorarás.

Entrando o Onzeneiro no batel, onde achou o Fidalgo embarcado, diz tirando o barrete:

ONZENEIRO    Santa Joana de Valdês!

    Cá é vossa senhoria?

FIDALGO    Dá ò demo a cortesia!

DIABO    Ouvis? Falai vós cortês!

    Vós, fidalgo, cuidareis

    que estais na vossa pousada?

    Dar-vos-ei tanta pancada

    com um remo que renegueis!







Vem Joane, o Parvo, e diz ao Arrais do Inferno:

PARVO    Hou daquesta!

DIABO    Quem é?

PARVO    Eu soo.

    É esta a naviarra nossa?

DIABO    De quem?

PARVO    Dos tolos.

DIABO    Vossa.

    Entra!

PARVO    De pulo ou de voo?

    Hou! Pesar de meu avô!

    Soma, vim adoecer

    e fui má-hora morrer,

    e nela, pera mi só.

DIABO    De que morreste?

PARVO    De quê?

    Samicas de caganeira.

DIABO    De quê?

PARVO    De caga merdeira!

    Má rabugem que te dê!

DIABO    Entra! Põe aqui o pé! PARVO    Houlá! Nom tombe o zambuco!

DIABO    Entra, tolaço eunuco,

    que se nos vai a maré!

PARVO    Aguardai, aguardai, houlá!

    E onde havemos nós d'ir ter?

DIABO    Ao porto de Lucifer.

PARVO    Ha-á-a...

DIABO    Ó Inferno! Entra cá!

PARVO    Ò Inferno?... Eramá...

    Hiu! Hiu! Barca do cornudo.

    Pêro Vinagre, beiçudo,

    rachador d'Alverca, huhá!

    Sapateiro da Candosa!

    Antrecosto de carrapato!

    Hiu! Hiu! Caga no sapato,

    filho da grande aleivosa!

    Tua mulher é tinhosa

    e há-de parir um sapo

    chantado no guardanapo!

    Neto de cagarrinhosa!

    Furta cebolas! Hiu! Hiu!

    Excomungado nas erguejas!

    Burrela, cornudo sejas!

    Toma o pão que te caiu!

    A mulher que te fugiu

    per'a Ilha da Madeira!

    Cornudo atá mangueira,

    toma o pão que te caiu!

    Hiu! Hiu! Lanço-te üa pulha!

    Dê-dê! Pica nàquela!

    Hump! Hump! Caga na vela!

    Hio, cabeça de grulha!

    Perna de cigarra velha,

    caganita de coelha,

    pelourinho da Pampulha!

    Mija n'agulha, mija n'agulha!

Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz:

PARVO    Hou da barca!

ANJO    Que me queres?

PARVO    Queres-me passar além?

ANJO    Quem és tu?

PARVO    Samica alguém.

ANJO    Tu passarás, se quiseres;

    porque em todos teus fazeres

    per malícia nom erraste.

    Tua simpreza t'abaste

    pera gozar dos prazeres.

    Espera entanto per i:

    veremos se vem alguém,

    merecedor de tal bem,

    que deva de entrar aqui.





Vem um Frade com üa Moça pela mão, e um broquel e üa espada na outra, e um casco debaixo

do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa, começou de dançar, dizendo:

FRADE    Tai-rai-rai-ra-rã; ta-ri-ri-rã;

    ta-rai-rai-rai-rã; tai-ri-ri-rã:

    tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhá!

DIABO    Que é isso, padre?! Que vai lá?

FRADE    Deo gratias! Som cortesão.

DIABO    Sabês também o tordião?

FRADE    Porque não? Como ora sei!

DIABO    Pois entrai! Eu tangerei

    e faremos um serão.

    Essa dama é ela vossa?

FRADE    Por minha la tenho eu,

    e sempre a tive de meu,

DIABO    Fezestes bem, que é fermosa!

    E não vos punham lá grosa

    no vosso convento santo?

FRADE    E eles fazem outro tanto!

DIABO    Que cousa tão preciosa...

    Entrai, padre reverendo!

FRADE    Para onde levais gente?

DIABO    Pera aquele fogo ardente

    que nom temestes vivendo.

FRADE    Juro a Deus que nom t'entendo!

    E este hábito no me val?

DIABO   Gentil padre mundanal,

    a Berzebu vos encomendo!

FRADE    Corpo de Deus consagrado!

    Pela fé de Jesu Cristo,

    que eu nom posso entender isto!

    Eu hei-de ser condenado?!...

    Um padre tão namorado

    e tanto dado à virtude?

    Assi Deus me dê saúde,

    que eu estou maravilhado!

DIABO    Não curês de mais detença.

    Embarcai e partiremos:

    tomareis um par de ramos.

FRADE    Nom ficou isso n'avença.

DIABO    Pois dada está já a sentença!





Tanto que o Frade foi embarcado, veio üa Alcoviteira, per nome Brízida Vaz, a qual chegando

à barca infernal, diz desta maneira:

BRÍZIDA    Hou lá da barca, hou lá!

DIABO    Quem chama?

BRÍZIDA    Brízida Vaz.

DIABO    E aguarda-me, rapaz?

    Como nom vem ela já?

COMPANHEIRO    Diz que nom há-de vir cá

    sem Joana de Valdês.

DIABO    Entrai vós, e remarês.

BRÍZIDA    Nom quero eu entrar lá.

DIABO    Que sabroso arrecear!

BRÍZIDA    No é essa barca que eu cato.

DIABO    E trazês vós muito fato?

BRÍZIDA    O que me convém levar.

Día.    Que é o que havês d'embarcar?

BRÍZIDA    Seiscentos virgos postiços

    e três arcas de feitiços

    que nom podem mais levar.

    Três almários de mentir,

    e cinco cofres de enlheos,

    e alguns furtos alheos,

    assi em jóias de vestir,

    guarda-roupa d'encobrir,

    enfim - casa movediça;

    um estrado de cortiça     com dous coxins d'encobrir.

    A mor cárrega que é:

    essas moças que vendia.

    Daquestra mercadoria

    trago eu muita, à bofé!

DIABO   Ora ponde aqui o pé...

BRÍZIDA   Hui! E eu vou pera o Paraíso!

DIABO   E quem te dixe a ti isso?

BRÍZIDA   Lá hei-de ir desta maré.

    Eu sô üa mártela tal!...

    Açoutes tenho levados

    e tormentos suportados

    que ninguém me foi igual.

    Se fosse ò fogo infernal,

    lá iria todo o mundo!

    A estoutra barca, cá fundo,

    me vou, que é mais real.

  Chegando à Barca da Glória diz ao Anjo:

    Barqueiro mano, meus olhos,

    prancha a Brísida Vaz.

ANJO:   Eu não sei quem te cá traz...

BRÍZIDA   Peço-vo-lo de giolhos!

    Cuidais que trago piolhos,

    anjo de Deos, minha rosa?

    Eu sô aquela preciosa

    que dava as moças a molhos,

    a que criava as meninas

    pera os cónegos da Sé...

    Passai-me, por vossa fé,

    meu amor, minhas boninas,

    olho de perlinhas finas!

    E eu som apostolada,

    angelada e martelada,

    e fiz cousas mui divinas.

    Santa Úrsula nom converteu

    tantas cachopas como eu:

    todas salvas polo meu

    que nenhüa se perdeu.

    E prouve Àquele do Céu

    que todas acharam dono.

    Cuidais que dormia eu sono?

    Nem ponto se me perdeu!

 ANJO    Ora vai lá embarcar,

    não estês importunando.

BRÍZIDA   Pois estou-vos eu contando

    o porque me haveis de levar.

 ANJO    Não cures de importunar,

    que não podes vir aqui.

BRÍZIDA  E que má-hora eu servi,

    pois não me há-de aproveitar!...

Torna-se Brízida Vaz à Barca do Inferno, dizendo: BRÍZIDA   Hou barqueiros da má-hora,

    que é da prancha, que eis me vou?

    E já há muito que aqui estou,

    e pareço mal cá de fora.

DIABO    Ora entrai, minha senhora,

    e sereis bem recebida;

    se vivestes santa vida,

    vós o sentirês agora...







Em breve os demais textos.