Quem sou eu

O projeto "Longa jornada livro adentro: a análise de textos literários" visa incentivar a leitura e a interpretação de textos de diferentes épocas e estilos. O grupo fará oficinas quinzenais, aos sábados pela manhã, em que se debaterão obras, tendências e outros assuntos do mundo da literatura. Aqui, você confere os tópicos em pauta, os principais itens discutidos nas reuniões e a organização para os encontros futuros. As oficinas se realizarão no auditório da UFFS.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011


 O que você seria capaz de fazer para conseguir um emprego? O Emgraçado Arrependido, de Monteiro Lobato, será lido e analisado no dia 14/10, as 16hs, sala 01 da UFFS.


O ENGRAÇADO ARREPENDIDO
Monteiro Lobato

Francisco Teixeira de Souza Pontes, galho bastardo duns Souza Pontes de trinta mil arrobas afazendados no Barreiro, só aos trinta a dois anos de idade entrou a pensar seriamente na vida.
Como fosse de natural engraçado, vivera até ali à custa da veia cômica, e com ela amanhara (conseguira) casa, mesa, vestuário e o mais. Sua moeda corrente era micagens, pilhérias, anedotas de inglês e tudo quanto bole com os músculos faciais do animal que ri, vulgo homem, repuxando risos ou matracolejando gargalhadas.
Sabia de cor a Enciclopédia do Riso e da Galhofa, de Fuão Pechincha, o autor mais dessaborido (insípido) que Deus botou no mundo; mas era tal a arte do Pontes, que as sensaborias (conversa enfadonha) mais relambórias (sem graça) ganhavam em sua boca um chiste raro, de fazer os ouvintes babarem de puro gozo.
Para arremedar gente ou bicho, era um gênio. A gama inteira das vozes do cachorro, da acuação aos caititus ao uivo à lua, e o mais, rosnado ou latido, assumia em sua boca perfectibilidade capaz de iludir aos próprios cães – e à lua.
Também grunhia de porco, cacarejava de galinha, coaxava de untanha (anfíbios, tipo o sapo), ralhava de mulher velha, choramingava de fedelho, silenciava de deputado governista ou perorava (discurso com emoção) de patriota em sacada. Que vozeiro de bípede ou quadrúpede não copiava ele às maravilhas, quando tinha pela frente um auditório predisposto?
Descia outras vezes à pré-história. Como fosse d’algumas luzes, quando os ouvintes não eram pecos (néscios) ele reconstituía os vozeirões paleontológicos dos bichos extintos – roncos de mastodontes ou berros de mamutes ao avistarem-se com peludos homos repimpados a fetos arbóreos – coisa muito de rir e divulgar a ciência do sr. Barros Barreto.
Na rua, se pilhava um magote (reunião) de amigos parados à esquina, aproximava-se de mansinho e – nhoc! – arremessava um bote de munheca à barriga da perna mais a jeito.
Era de ver o pinote assustado e o – passa! nervoso do incauto, e logo em seguida as risadas sem fim dos outros, e a do Pontes, o qual gargalhava dum modo todo seu, estrepitoso e musical – música d’Offenbach.
Pontes ria parodiando o riso normal e espontâneo da criatura humana, única que ri além da raposa bêbada; e estacava de golpe, sem transição, caindo num sério de irresistível cômico.
Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferenciava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se (riam sem controle) uns, outros afrouxavam os coses , terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora!, eram cascalhadas, eram rinchavelhos (risos estridentes), eram guinchos, engasgos, fungações a asfixias tremendas.
– E da pele, este Pontes!
– Basta, homem, você me afoga!
E se o pândego se inocentava, com cara palerma:
– Mas que estou fazendo? Se nem abri a boca…
Quá, quá, quá – a companhia inteira, desmandibulada, chorava no espasmo supremo dos risos incoercíveis.
Com o correr do tempo, não foi preciso mais que seu nome para deflagrar a hilaridade. Pronunciando alguém a palavra “Pontes”, acendia-se logo o estopim das fungadelas pelas quais o homem se alteia acima da animalidade que não ri.
Assim viveu Pontes até a idade do Cristo, numa parábola risonha, a rir e fazer rir, sem pensar em nada sério vida de filante que dá momos em troca de jantares e paga continhas miúdas com pilhérias de truz (golpe, pancada).
Um negociante caloteado disse-lhe um dia entre frouxos de riso babado:
– Você ao menos diverte, não é como o major Carapuça que caloteia de carranca.
Aquele recibo sem selo mortificou seu tanto ao nosso pândego; mas a conta subia a quinze mil réis – valia bem a pelotada. Entretanto, lá ficou a lembrança dela espetada como alfinete na almofadinha do amor-próprio. Depois vieram outros e outros, estes fincados de leve, aqueles até a cabeça.
Tudo cansa. Farto de tal vida, entrou o hilarião a sonhar as delícias de ser tomado a sério, falar e ser ouvido sem repuxo de músculos faciais, gesticular sem promover a quebra da compostura humana, atravessar uma rua sem pressentir na peugada (pegada) um coro de “Lá vem o Pontes!” em tom de quem se espreme na contenção do riso ou se ajeita para uma barrigada das boas.
Reagindo, tentou Pontes a seriedade.
Desastre.
Pontes sério mudava de tecla, caía no humorismo inglês. Se antes divertia como o Clown, passava agora a divertir como o Tony.
O estrondoso êxito do que a toda a gente se afigurou uma faceta nova da sua veia cômica verteu mais sombra na alma do engraçado arrependido. Era certo que não poderia traçar outro caminho na vida além daquele, ora odioso?
Palhaço, então, eternamente palhaço à força?
Mas a vida de um homem feito tem exigências sisudas; impõe gravidade e até casmurrice dispensáveis nos anos verdes. O cargo mais modesto da administração, uma simples vereança, requer na cara a imobilidade da idiotia que não ri. Não se concebe vereador risonho. Falta ao dito de Rabelais uma exclusão: o riso é próprio à espécie humana, fora o vereador.
Com o dobrar dos anos a reflexão amadureceu, o brio cristalizou-se, e os jantares cavados deram a saber-lhe a azedo. A moeda pilhéria tornou-se-lhe dura ao cunho; já a não fundia com a frescura antiga; já usava dela como expediente de vida, não por fogança despreocupada, como outrora. Comparava-se mentalmente a um palhaço de circo, velho e achacoso, a quem a miséria obriga a transformar reumatismo em caretas hílares como as quer o público pagante.
Entrou a fugir dos homens e despendeu bons meses no estudo da transição necessária ao conseguimento de um emprego honesto. Pensou no balcão, na indústria, na feitoria duma fazenda, na montagem dum botequim – que tudo era preferível à paspalhice cômica de até ali.
Um dia, bem maturados os planos, resolveu mudar de vida. Foi a um negociante amigo e sinceramente lhe expôs os propósitos regeneradores, pedindo por fim um lugar na casa, de varredor que fosse. Mal acabou a exposição, o galego e os que espiavam de longe à espera do desfecho torceram-se em estrondoso gargalhar, como sob cócegas.
Esta é boa! É de primeiríssima! Quá! quá! quá! Com que então… Quá! quá! quá! Você me arruína os fígados, homem! Se é pela continha dos cigarros, vá embora que me dou por bem pago! Este Pontes tem cada uma…
E a caixeirada (balconistas), os fregueses, os sapos de balcão e até passantes que pararam na calçada para “aproveitar o espírito”, desbocaram-se em quás de matraca até lhe doerem os diafragmas.
Atarantado a seríssimo, Pontes tentou desfazer o engano.
Falo sério, e o senhor não tem o direito de rir-se. Pelo amor de Deus, não zombe de um pobre homem que pede trabalho e não gargalhadas.
O negociante desabotoou o cós da calça.
Fala sério, pff! Quá! quá! quá! Olha Pontes, você…
Pontes largou-o em meio da frase, e se foi com a alma atenazada (atazanada) entre o desespero e a cólera. Era demais. A sociedade o repelia, então? Impunha-lhe uma comicidade eterna?
Correu outros balcões, explicou-se como melhor pôde, implorou. Mas por voz unânime, o caso foi julgado como uma das melhores pilhérias do “incorrigível” – e muita gente o comentou com a observação de costume:
Não se emenda o raio do rapaz! E olhem que já não é criança…
Barrado no comércio, voltou-se para a lavoura. Procurou um velho fazendeiro que despedira o feitor e expôs-lhe o seu caso.
Depois de ouvir-lhe atentamente as alegações, conclusas com o pedido do lugar de capataz, o coronel explodiu num ataque de hilaridade.
– O Pontes capataz! Ih! Ih! Ih!
– Mas…
– Deixe-me rir, homem, que cá na roça isto é raro. Ih!
– Ih! Ih! É muito boa! Eu sempre digo: graça como o Pontes, ninguém!
E berrando para dentro:
– Maricota, venha ouvir esta do Pontes. Ih! Ih! Ih!
Nesse dia, o infeliz engraçado chorou. Compreendeu que não se desfaz do pé p’r’a mão o que levou anos a cristalizar-se. A sua reputação de pândego, de impagável, de monumental, de homem do chifre furado ou da pele, estava construída com muito boa cal e rijo cimentado para que assim esboroasse de chofre.
Urgia, entretanto, mudar de tecla, e Pontes volveu as vistas para o Estado, patrão cômodo e único possível nas circunstâncias, porque abstrato, porque não sabe rir nem conhece de perto as células que o compõem. Esse patrão, só ele, o tomaria a sério – o caminho da salvação, pois, embicava por ali.
Estudou a possibilidade da agência do correio, dos tabelionatos, das coletorias e do resto. Bem ponderados o prós a contras, os trunfos a naipes, fixou a escolha na coletoria federal, cujo ocupante, major Bentes, por avelhantado (envelhecido) e cardíaco, era de crer não durasse muito. Seu aneurisma andava na berra pública, com rebentamento esperado par qualquer hora.
O ás de Pontes era um parente do Rio, sujeito de posses em via de influenciar a política no caso da realização de certa reviravolta no governo. Lá correu atrás dele e tanta fez para movê-lo à sua pretensão que o parente o despediu com promessa formal.
– Vai sossegado que, em a coisa arrebentando por cá o teu coletor rebentando por’lá, ninguém mais há de rir-se de ti. Vai, e avisa-me da morte do homem sem esperar que esfrie o corpo.
Pontes voltou radioso de esperança e pacientemente aguardou a sucessão dos fatos, com um olho na política e outro no aneurisma salvador.
A crise afinal veio; caíram ministros, subiram outros e, entre estes um politicão negocista, sócio do tal parente. Meio caminho já era andado. Restava apenas a segunda parte. Infelizmente, a saúde do major encruara, sem mais patentes de declínio rápido. Seu aneurisma, na opinião dos médicos que matavam pela alopatia, era coisa grave, de estourar ao menor esforço; mas o precavido velho não tinha pressa de ir-se para melhor, deixando uma vida onde os fados lhe conchegavam tão fofo ninho, e lá engambelava à doença com um regime ultrametódico. Se o mataria um esforço violento, sossegassem, ele não faria tal esforço.
Ora, Pontes, mentalmente dono daquela sinecura (emprego rendoso que exige pouco trabalho), impacientava-se com o equilíbrio desequilibrador dos seus cálculos. Como desembaraçar o caminho daquela travancá (obstáculo). Leu no Chernoviz o capítulo dos aneurismas, decorou-o, andou em indagações de tudo quanto se dizia ou se escreveu a respeito; chegou a entender da matéria mais que doutor Iodureto, médico da terra, o qual, seja dito aqui puridade, não entendia de coisa nenhuma desta vida.
O pomo da ciência, assim comido, induziu-o à tentação de matar o homem, forçando-o a estourar. Um esforço o mataria? Pois bem, Souza Pontes o levaria a esse esforço!
A gargalhada é um esforço, filosofava satanicamente de si para si. A gargalhada, portanto, mata. Ora, eu sei fazer rir…
Longos dias passou Pontes alheio ao mundo, em diálogo mental com a serpente.
Crime? Não! Em que código fazer rir é crime? Se disso morresse o homem, culpa era da sua má aorta.
A cabeça do maroto virou picadeiro de luta onde o “plano” se batia em duelo contra todas as objeções mandadas ao encontro pela consciência. Servia de juiz a sua ambição amarga a Deus sabe quantas vezes tal juiz prevaricou, levado de escandalosa parcialidade por um dos contendores.
Como era de prever, a serpente venceu, e Pontes ressurgiu para o mundo um tanto mais magro, de olheiras cavadas, porém com um estranho brilho de resolução vitoriosa nos olhos. Também notaria nele o nervoso dos modos quem o observasse com argúcia – mas a argúcia não era virtude sobeja entre os seus conterrâneos, além de que estados d’alma do Pontes eram coisa de somenos, porque o Pontes…
Ora o Pontes…
O futuro funcionário forjou, então, meticulosos planos de campanha. Em primeiro era mister aproximar-se do major, homem recolhido consigo e pouco amigo de lérias (lábias); insinuar-se-lhe na intimidade; estudar suas venetas e cachacinhas até descobrir em que zona do corpo tinha ele o calcanhar-de-aquiles.
Começou frequentando com assiduidade a coletoria, sob pretextos vários, ora para selos, ora para informações sobre impostos, que tudo era ensejo de um parolar manhoso, habilíssimo, calculado para combalir a rispidez do velho.
Também ia a negócios alheios, pagar cisas, extrair guias, coisinhas; fizera-se muito serviçal para os amigos que traziam negócios com a fazenda.
O major estranhou tanta assiduidade e disse-lho, mas Pontes escamoteou-se à interpelação montado numa pilhéria de truz, e perseverou num bem calculado dar tempo ao tempo que fosse desbastando as arestas agressivas do cardíaco.
Dentro de dois meses já se habituara Bentes àquele serelepe, como lhe chamava, o qual, em fim de contas, lhe parecia um bom moço, sincero, amigo de servir e sobretudo inofensivo… Daí a lá em dia d’acúmulo de serviço pedir-lhe um obséquio, e depois outro, e terceiro, a tê-lo afinal coma espécie de adido à repartição, foi um passo. Para certas comissões não havia outro. Que diligência! Que finura! Que tato! Advertindo certa vez o escrevente, o major puxou aquela diplomacia como lembrete.
Grande pasmado! Aprenda com o Pontes, que tem jeito para tudo e ainda por cima tem graça.
Nesse dia, convidou-o para jantar. Grande exultação na alma do Pontes! A fortaleza abria-lhe as portas.
Aquele jantar foi o início duma série em que o serelepe, agora factótum (pessoa imprescindível) indispensável, teve campo de primeira ordem para evoluções táticas.
O major Bentes, entretanto, possuía uma invulnerabilidade: não ria, limitava suas expansões hílares a sorrisos irônicos. Pilhéria que levava outros comensais (pessoas que comem juntas na mesa) a erguerem-se da mesa atabafando (encobrindo) a boca nos guardanapos, encrespava apenas os seus lábios. E se a graça não era de superfina agudeza, ele desmontava sem piedade o contador.
Isso é velho, Pontes, já num almanaque Laemmert de 1850 me lembro de o ter lido.
Pontes sorria com ar vencido; mas lá por dentro consolava-se, dizendo, dos fígados para o rim, que se não pegara daquela, doutra pegaria.
Toda a sua sagacidade enfocava no fito de descobrir o fraco do major. Cada homem tem predileção por um certo gênero de humorismo ou chalaça (gracejo). Este morre por pilhérias fesceninas (gênero de poesia satírica latina, nascida, ao que parece, entre os camponeses de Fescênia [Etrúria], e muito popular até o fim do Império Romano do Ocidente) de frades bojudos. Aquele péla-se pelo chiste bonacheirão da chacota germânica. Aquel’outro dá a vida pela pimenta gaulesa. O brasileiro adora a chalaça onde se põe a nu’a burrice tamancuda de galegos a ilhéus.
Mas o major? Por que não ria à inglesa, nem à alemã, nem à francesa, nem à brasileira? Qual o seu gênero?
Um trabalho sistemático de observação, com a metódica exclusão dos gêneros já provados ineficientes, levou Pontes a descobrir a fraqueza do rijo adversário: o major lambia as unhas por casos de ingleses a frades. Era preciso, porém, que viessem juntos. Separados, negavam fogo. Esquisitices do velho. Em surgindo bifes vermelhos, de capacete de cortiça, roupa enxadrezada, sapatões formidolosos (enormes, pavorosos) e cachimbo, juntamente com frades redondos, namorados da pipa e da polpa feminina, lá abria o major a boca e interrompia o serviço da mastigação, como criança a quem acenam com cocada. E quando o lance cômico chegava, ele ria com gosto, abertamente, embora sem exagero capaz de lhe destruir o equilibrio sangüíneo.
Com infinita paciência, Pontes bancou nesse gênero e não mais saiu dali. Aumentou o repertório, a gradação do sal, a dose de malícia, e sistematicamente bombardeou a aorta do major com os produtos dessa hábil manipulação.
Quando o caso era longo, porque o narrador o floria no intento de esconder o desfecho a realçar o efeito, o velho interessava-se vivamente, e nas pausas manhosas pedia esclarecimento ou continuação.
“E o raio do bife?” “E daí?” “Mister John apitou?”
Embora tardasse a gargalhada fatal, o futuro coletor não desesperava, confiando no apólogo da bilha que de tanto ir à fonte lá ficou. Não era mau o cálculo. Tinha a psicologia por si – e teve também por si a quaresma.
Certa vez, findo o carnaval, reuniu o major os amigos em torno a uma enorme piabanha (peixe caraciforme da fam. dos caracídeos (Brycon piabanha), que ocorre no rio Paraíba, de até 65 cm de comprimento, dorso cinzento com manchas rosadas ao longo da linha lateral) recheada, presente dum colega. O entrudo desmazorrara a alma dos comensais e a do anfitrião, que estava naquele dia contente de si e do mundo, como se houvera enxergado o passarinho verde. O cheiro vindo da cozinha, valendo por todos os aperitivos de garrafaria, punha nas caras um enternecimento estomacal.
Quando o peixe entrou, cintilaram os olhos do major. Pescado fino era com ele, inda mais cozido pela Gertrudes. E naquele bródio (refeição farta e alegre), primara a Gertrudes num tempero que excedia as raias da culinária e se guindava ao mais puro lirismo. Que peixe! Vatel o assinaria com a pena da impotência molhada na tinta da inveja, disse o escrevente, sujeito lido em Brillat-Savarin e outros praxistas do paladar.
Entre goles de rica vinhaça, eis a piabanha sendo introduzida nos estômagos com religiosa unção. Ninguém atrevia a quebrar o silêncio da bromatológica beatitude.
Pontes pressentiu oportuno o momento do golpe. Trazia engatilhado o caso dum inglês, sua mulher e dois frades barbadinhos, anedota que elaborara à custa da melhor matéria cinzenta de seu cérebro, aperfeiçoando-a em longas noites de insônia. Já de dias a tinha de tocaia, só aguardando o momento em que tudo concorresse para levá-la produzir o efeito máximo.
Era a derradeira esperança do facínora, seu último cartucho. Negasse fogo e, estava resolvido, metia duas balas nos miolos. Reconhecia impossível manipular-se torpe, mais engenhoso. Se o aneurisma lhe resiste ao embate, então é que o aneurisma era uma potoca (mentira), a aorta uma ficção e o Chernoviz um palavrório, a medicina uma miséria, doutor Iodureto uma cavalgadura e ele, Pontes, o mais chapado sensaborão ainda aquecido pelo sol – indigno, portanto, de viver.
Matutava assim o Pontes, negaceando com os olhos psicologia a pobre vítima, quando o major veio ao encontro: piscou o olho esquerdo – sinal de predisposição para ouvir.
– É agora! – pensou o bandido. E com infinita naturalidade, pegando como por acaso uma garrafinha de moll pôs-se a ler o rótulo.
Perrins; Lea and Perrins. Será parente daquele Lord Perrins que bigodeou os dois frades barbadinhos?
Inebriado pelos amavios (encantos) do peixe, o major alumiou um olho concupiscente (cobiçoso), guloso de chulice.
Dois barbadinhos e um lorde! A patifaria deve ser marca X. P. T. O. Conta lá, serelepe.
E, mastigando maquinalmente, absorveu-se no caso fatal.
A anedota correu capciosa pelos fios naturais até as proximidades do desfecho, narrada com arte de mestre, segura e firme, num andamento estratégico em que havia gênio. Do meio para o fim, a maranha (trama complicada) empolgou de tal forma o pobre velho que o pôs suspenso, de boca entreaberta, uma azeitona no garfo detida a meio caminho. Um ar de riso – riso parado, riso estopim, que não era senão o armar bote da gargalhada, iluminou-lhe o rosto.
Pontes vacilou. Pressentiu o estouro da artéria. Por uns instantes a consciência brecou-lhe a língua, mas Pontes deu-lhe um pontapé e com voz firme puxou o gatilho.
O major Antonio Pereira da Silva Bentes desferiu a primeira gargalhada da sua vida, franca, estrondosa, de ouvir-se no fim da rua, gargalhada igual à de Teufelsdrock diante de João Paulo Richter. Primeira e última, entretanto, porque no meio dela os convivas, atônitos, viram-no cair de borco sobre o prato, ao tempo que uma onda de sangue avermelhava a toalha.
O assassino ergueu-se alucinado; aproveitando a confusão, esgueirou-se para a rua, qual outro Caim. Escondeu-se em casa, trancou-se no quarto, bateu dentes a noite inteira, suou gelado. Os menores rumores retransiam-no de pavor.
Polícia?
Semanas depois é que entrou a declinar aquele transtorno que toda a gente levara à conta de mágoa pela morte do amigo. Não obstante, trazia sempre nos olhos a mesma visão: o coletor de bruços no prato, golfando sangue, enquanto no ar vibravam os ecos da sua derradeira gargalhada.
E foi nesse deplorável estado que recebeu a carta do parente do Rio. Entre outras coisas, dizia o ás: “Como não me avisaste a tempo, conforme o combinado, só pelas folhas vim a saber da morte do Bentes. Fui ao ministro mas era tarde, já estava lavrada a nomeação do sucessor. A tua leviandade fez-to perder a melhor ocasião da vida. Guarda para teu governo este latim: tarde venientibus ossa, quem chega tarde só encontra os ossos – e sê mais esperto para o futuro.”
Um mês depois, descobriram-no pendente duma travessa com a língua de fora, rígido.
Enforcara-se numa perna de ceroula.
Quando a nótícia deu volta pela cidade, toda a gente achou graça no caso. O galego do armazém comentou para os caixeiros:
Vejam que criatura! Até morrendo fez chalaça. Enforcar-se na ceroula! Esta só mesmo do Pontes…
E reeditaram em coro meia duzia de “quás” – único epitáfio que lhe deu a sociedade.

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