Quem sou eu

O projeto "Longa jornada livro adentro: a análise de textos literários" visa incentivar a leitura e a interpretação de textos de diferentes épocas e estilos. O grupo fará oficinas quinzenais, aos sábados pela manhã, em que se debaterão obras, tendências e outros assuntos do mundo da literatura. Aqui, você confere os tópicos em pauta, os principais itens discutidos nas reuniões e a organização para os encontros futuros. As oficinas se realizarão no auditório da UFFS.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

FÍGADO INDISCRETO - (MONTEIRO LOBATO)

Fígado Indiscreto é uma obra de Monteiros Lobato, nele é retratado um jantar  em família onde a filha apresenta aos país seu pretendente. Será realizada a leitura e análise da obra na quinta-feira dia 09/06 às 17:00 na sala 06 nas dependências da UFFS.


Fígado Indiscreto (Monteiro Lobato)
Que há um Deus para o namoro e outro para os bêbados, está provado -- a contrário sensu.
Sem eles, como explicar tanto passo falso sem tombo, tanto tombo sem nariz partido, tanta
beijoca lambiscada a medo e sem maiores consequencias afora uns sobressaltos
desagradáveis, quando passos inoportunos põem termo a duos de sofá em sala
momentaneamente deserta?
Acontece, todavia, que esses deuses, ao jeito dos de Homero, também cochilam: e o borracho
parte o nariz de encontro ao lampião, ou futura sogra lá apanha Romeu e Julieta em flagrante
contato de mucosas petrificando-os com o clássico: "Que pouca vergonha!...".
Outras vezes acontece aos protegidos decaírem da graça divina.
Foi o que sucedeu a Inácio, o calouro, e isso lhe estragou o casamento com a sinharinha
Lemos, boa menina, a quem cinquenta contos de dote faziam ótima.
Inácio era o rei dos acanhados. Pelas coisas mínimas, avermelhava, saía fora de sí e
permanecia largo tempo idiotizado.
O progresso do seu namoro foi, como era natural, menos obra sua que da menina, e da família
de ambos, tacitamente concertadas numa conspiração contra o celibato do futuro bacharel.
Uma das manobras constou do convite que ele recebeu para jantar nos Lemos, em certo dia de
aniversário familiar comemorado a peru.
Inácio barbeou-se, laçou a mais famosa gravata, floriu de orquídeas a botoeira , friccionou os
cabelos com loção de violetas e lá foi, de roupa nova, lindo como se saíra da forma naquela
hora. Levou consigo, entretanto, para seu mal, o acanhamento. - e daí proveio a catástrofe...
Havia mais moças na sala, afora a eleita, e caras estranhas, vagamente suas conhecidas, que o
olhavam com a benévola curiosidade a que faz jus a um possível futuro parente.
Inácio, de natural mal firme nas estribeiras, sentiu-se já de começo, um tanto desmontado com
o papel de galã à força, que lhe atribuíam. Uma das moças, criaturinha de requintada malicia,
muito "saída" e "semostradeira", interpelou-o sobre coisas do coração, idéias relativas ao
casamento e também sobre a "noivinha" - tudo com meias palavras intencionais, sublinhadas
de piscadelas para a direita e a esquerda.
Inácio avermelhou e tartamudeou palavras desconchavadas, enquanto o diabrete
maliciosamente insistia: "Quando os doces, Sr. Inácio?".
Respostas mascadas, gaguejadas, inéptas, foram o que saiu de dentro do moço, incapaz de
réplicas jeitosas sempre que ouvia risos femininos em redor de si. Salvou-o a ida para a mesa.
Lá, enquanto engoliam a sopa, teve tempo de voltar a si e arrefecer as orelhas. Mas não
demorou muito no equilíbrio. A culpa aqui foi da dona da casa. Serviu-lhe dona Luiza, um
bife de fígado sem consulta prévia.

Esquisitice dos Lemos: comiam-se fígados naquela casa até nos dias mais solenes.
Esquisitice do Inácio: nasceu com a estranha idiossincrasia de não poder sequer ouvir falar em
fígado - seu estômago, seu esôfago e talvez seu próprio fígado tinham pela víscera biliar uma
figadal aversão. E não insistisse ele em contrariá-los: amotinavam-se repelindo
indecorosamente o pedaço ingerido.
Nesse dia, mal dona Luiza o serviu, Inácio avermelhou de novo, e novamente saiu fora de si.
Viu-se só, desamparado e inerme ante um problema de inadiável solução. Sentiu lá dentro o
motim das vísceras; sentiu o estômago, encrespado de cólera, exigir, com império, respeito às
suas antipatias. Inácio parlamentou com o órgão digestivo. Mostrou-lhe que mal momento era
aquele para uma guerra intestina. Tentou acalma-lo a goles de Clarete, jurando eterna
abstenção para o futuro, Pobre Inácio! A porejar suor nas asas do nariz, chamou a postos o
heroísmo, evocou todos os martírios sofridos pelos cristãos na era romana e os padecidos na
era cristã pelos heréticos; contou um, dois e três e glup! Engoliu meio fígado sem mastigar.
um gole precipitado de vinho rebateu o empache. E Inácio ficou a esperar. de olhos
arregalados, a revolução intestina.
Em redor a alegria reinava. Riam-se, palestravam ruidosamente, longe de suspeitar o suplicio
daquele mártir, posto a tormentos de uma nova espécie.
- Você já reparou, Miloca, na "ganja" da sinharinha? Disse uma das moças. - Está como quem
viu o passarinho verde. E olhou de soslaio para Inácio.
O calouro, entretanto, não deu fé da tagarelice; surdo às vozes do mundo, todo se concentrava
nas vozes viscerais. Além disso, a tortura não estava concluída; tinha ainda diante de si a
segunda parte do fígado engulhento. Era mister ataca-la e concluir de vez a ingestão penosa.
Inácio engatilhou-se de novo e - um, dois, três: glup! Lá rodou, esôfago abaixo, o resto da
miserável glândula.
Maravilha! Por inexplicável milagre de polidez, o estômago não reagiu. Estava salvo Inácio. E
como estava salvo, voltou lentamente a si, muito pálido, com o ar dos ressuscitados. Chegou a
rir-se. Riu-se alvarmente, de gozo, como riria Hércules após o mais duro dos seus trabalhos.
Seus ouvidos ouviam de novo rumores do mundo, ser cérebro voltava a funcionar
normalmente, e seus olhos volveram outra vez as visões habituais.
Estava nessa doce beatitude, quando:
- Não sabia que o senhor gostava tanto dee fígado, disse-lhe dona Luísa, vendo-lhe o prato
vazio - repita a dose.
O instinto de conservação de Inácio pulou em guarda. E fora de si outra vez, o pobre moço
exclamou, tomado de pânico:
- Não! Não! Muito obrigado!...

- Ora, deixe-se de luxo! Tamanho homem coom cerimônias em casa de amigos. Coma, coma,
que não é vergonha gostar de fígado. Aqui está o Lemos, que se péla por uma isca.
- Iscas são comigo, confirmou o velho. Láá isso não nego, com elas ou sem elas, nunca as
injeitei (1). Tens bom gosto rapaz. Serve-lhe, serve-lhe mais, Luísa.
E não houve salvação! Veio para o prato de Inácio um novo naco - este formidável, dose
dupla.
Não se descreve o drama criado no seu organismo. Nem um Shakespeare, nem Conrad --
ninguém dirá nunca os lances trágicos daquela estomacal tragédia sem palavras. Nem eu,
portanto. Direi somente que à memória de Inácio acudiu o caso da Nora de Ibsen na Casa da
Boneca e, disfarçadamente ele aguardou o milagre
E o milagre veio! Um criado estouvadão, que entrava com o peru, tropeçou no tapete e soltou
a ave no colo de uma dama. Gritos, reboliço, tumulto. Num lampejo de gênio, Inácio
aproveitou-se do incidente para agarrar o fígado e mete-lo no bolso.
Salvo! Nem dona Luiza nem os visinhos perceberam o truque - e o jantar chegou à sobremesa
sem maior novidade.
Antes da dançata, lembrou alguém recitativos e a espevitadíssima Miloca veio ter com Inácio.
- A festa é sua, doutor. Nós queremos ouvi-lo. Dizem que recita admiravelmente. Vamos, um
sonetinho de Bilac. Não sabe? Olhe o luxinho! Vamos, vamos! Quer decerto que a Sinharinha
insista?... Ora, até que enfim! A douda de Albano? Conheço sim, é linda, embora um pouco
fora de moda. Toque a Dalila, Sinharinha, bem piano... assim...
Inácio, vexadíssimo, vermelhíssimo, já em suores, foi para o pé do piano, onde a futura
consorte preludiava a Dalila em surdina. E declamou a douda de Albano.
Pelo meio dessa hecatombe em, verso, ali pela quarta o quinta estrofe, uma baga de suor
escorrida da testa parou-lhe na sobrancelha, comichando qual importuna mosca. Inácio
lembra-se do lenço e saca-o fora. Mas com o lenço, vem o fígado, que faz... plaf! no chão.
Uma tocida forte e um pé plantado sobre a infame víscera, manobras do instinto, salvam o
lance.
Mas desde este momento a sala começou a observar um extraordinário fenômeno. Inácio, que
tanto se fizera rogar, não queria agora sair do piano. E mal terminava um recitativo, logo
iniciava outro, sem que ninguém lhe pedisse. É que lhe acorrentava àquele posto o implacável
fígado...
E Inácio recitava. Recitou sem música: "O navio negreiro", "As duas ilhas", "Vozes da
Africa", "O Tejo era sereno"
Sinharinha, desconfiada, abandonou o piano. Inácio, firme. Recitou "O corvo, de Edgar Poe,
"Quisera amar-te", "Acorda donzela", citou poemetos, modinhas e quadras.

- Num canto da sala Sinharinha estava, chhora-não-chora. Todos se entreolhavam. Teria
enlouquecido o moço?
Inácio firme. Completamente fora de si, e farto de recitativos de salão, recorreu aos Lusíadas.
E declamou " As armas e os barões", "Estavas linda Inês", "Do reino às rédeas leve" - tudo!...
E esgotado de Camões, ia lhe saindo um "Ponto" de filosofia de direito -- A escola de
Bentham -- A coisa última que lhe restava na memória, quando perdeu o equilíbrio,
escorregou e caiu, deixando aos olhos arregalados da sala a infamérrima víscera de má
morte...
O resto não vale a pena contar. Basta que saibam que o amor de sinharinha morreu nesse dia;
que a conspiração matrimonial falhou; e que Inácioteve de mudar de terra. Mudou de terra
porque o desalmado major Lemos deu de espalhar pela cidade inteira que Inácio era, sem
dúvida, um bom rapaz, mas com um grave defeito: quando gostava de um prato, não se
contentava em comer e repetir, ainda levava escondido no bolso o que podia..

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