Quem sou eu

O projeto "Longa jornada livro adentro: a análise de textos literários" visa incentivar a leitura e a interpretação de textos de diferentes épocas e estilos. O grupo fará oficinas quinzenais, aos sábados pela manhã, em que se debaterão obras, tendências e outros assuntos do mundo da literatura. Aqui, você confere os tópicos em pauta, os principais itens discutidos nas reuniões e a organização para os encontros futuros. As oficinas se realizarão no auditório da UFFS.

segunda-feira, 15 de abril de 2013


2ª Oficina: A literatura como caminho a paisagens surreais


A literatura busca, constantemente, criar novas maneiras de ver o mundo. Uma das formas empregadas é buscar o choque do leitor por meio de imagens distorcidas, grotescas, marginais. Surge, então, o Surrealismo, funcionando como um mundo diferente com sua própria lógica interna a ser descoberta. Na segunda oficina, a se realizar no dia 27/04, às 08 horas no auditório da UFFS, serão visitados os mundos de além do espelho. Inicialmente, com Murilo Rubião, vão-se lançar seres estranhos em situações extraordinárias. Depois, com a poesia de Alexandre O'Neill, jogos de corpos e palavras vão formar uma nova realidade. Em seguida, com um conto de Maria Judite de Carvalho, uma floresta pintada torna-se perigosa, diante do olhar de uma criança. Por fim, Murilo Mendes mostrará visões sobrenaturais para que se possa fazer uma ponte entre seus símbolos e o mundo.






Teleco, o coelhinho
Murilo Rubião

“Três coisas me são difíceis de entender, e uma quarta eu a ignoro completamente: o caminho da águia no ar, o caminho da cobra sobre a pedra, o caminho da nau no meio do mar, e o caminho do homem na sua mocidade.”
(Provérbios, XXX, 18 e 19)

- Moço, me dá um cigarro?

A voz era sumida, quase um sussurro. Permaneci na mesma posição em que me encontrava, frente ao mar, absorvido com ridículas lembranças.

O importuno pedinte insistia:

- Moço, oh! Moço! Moço me dá um cigarro?

Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei:

Vá embora, moleque, senão chamo a polícia.

- Está bem, moço. Não se zangue. E, por favor; saia da minha frente, que eu também gosto de ver o mar.

Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me interpelar delicadamente:

- Você não dá é porque não tem, não é, moço?

O seu jeito polido de dizer as coisas comoveu-me. Dei-lhe o cigarro e afastei-me para o lado, a fim de que melhor ele visse o oceano. Não fez nenhum gesto de agradecimento, mas já então conversávamos como velhos amigos. Ou, para ser mais exato somente o coelhinho falava. Contava-me acontecimentos extraordinários, aventuras tamanhas que o supus com mais idade do que realmente aparentava.

Ao fim da tarde, indaguei onde ele morava. Disse não ter morada certa. A rua era o seu pouso habitual. Foi nesse momento que reparei nos seus olhos. Olhos mansos e tristes. Deles me apiedei e convidei-o a residir comigo. A casa era grande e morava sozinho acrescentei.

A explicação não o convenceu. Exigiu-me que revelasse minhas reais intenções:

Por acaso, o senhor gosta de carne de coelho? Não esperou pela resposta:

- Se gosta, pode procurar outro, porque a versatilidade é o meu fraco.

Dizendo isto, transformou-se numa girafa.

- A noite - prosseguiu - serei cobra ou pombo. Não lhe importará a companhia de alguém tão instável?

Respondi-lhe que não e fomos morar juntos.

Chamava-se Teleco.

Depois de uma convivência maior, descobri que a mania de metamorfosear-se em outros bichos era nele simples desejo de agradar ao próximo. Gostava de ser gentil com crianças e velhos, divertindo-os com hábeis malabarismos ou prestando-lhes ajuda. O mesmo cavalo que, pela manhã, galopava com a gurizada, à tardinha, em lento caminhar, conduzia anciãos ou inválidos às suas casas.

Não simpatizava com alguns vizinhos, entre eles o agiota e suas irmãs, aos quais costumava aparecer sob a pele de leão ou tigre. Assustava-os mais para nos divertir que por maldade. As vítimas assim não entendiam e se queixavam à polícia, que perdia o tempo ouvindo as denúncias. Jamais encontraram em nossa residência, vasculhada de cima a baixo, outro animal além do coelhinho. Os investigadores irritavam-se com os queixosos e ameaçavam prendê-los.

Apenas uma vez tive medo de que as travessuras do meu irrequieto companheiro nos valessem sérias complicações. Estava recebendo uma das costumeiras visitas do delegado, quando Teleco, movido por imprudente malícia, transformou-se repentinamente em porco-do-mato. A mudança e o retorno ao primitivo estado foram bastante rápidos para que o homem tivesse tempo de gritar. Mal abrira a boca, horrorizado, novamente tinha diante de si um pacifico coelho:

O senhor viu o que eu vi?

Respondi, forçando uma cara inocente, que nada vira de anormal.

O homem olhou-me desconfiado, alisou a barba e, sem se despedir, ganhou a porta da rua.

A mim também me pregava peças. Encontrava-se vazia a casa, já sabia que ele andava escondido em algum canto, dissimulado em algum pequeno animal. Ou mesmo no meu corpo sob a forma de pulga, fugindo-me dos dedos, correndo pelas minhas costas. Quando começava a me impacientar e pedia-lhe que parasse com a brincadeira, não raro levava tremendo susto. Debaixo das minhas pernas crescera um bode que, em disparada, me transportava até o quintal. Eu me enraivecia, prometia-lhe uma boa surra. Simulando arrependimento, Teleco dirigia-me palavras afetuosas e logo fazíamos as pazes.

No mais, era o amigo dócil, que nos encantava com inesperadas mágicas. Amava as cores e muitas vezes surgia transmudado em ave de todas as espécies inteiramente desconhecidas ou de raça já extinta.

Não existe pássaro assim!

Sei. Mas seria insípido disfarçar-me somente em animais conhecidos.

O primeiro atrito grave que tive com Teleco ocorreu um ano após nos conhecermos. Eu regressava da casa da minha cunhada Emi, com quem discutira asperamente sobre negócios de família. Vinha mal-humorado e a cena que deparei ao abrir a porta da entrada, agravou minha irritação. De mãos dadas, sentados no sofá da sala de visitas, encontravam-se uma jovem mulher e um mofino canguru. As roupas dele eram mal talhadas, seus olhos se escondiam por trás de uns óculos de metal ordinário.

O que deseja a senhora com esse horrendo animal? - perguntei, aborrecido por ver minha casa invadida por estranhos.

- Eu sou o Teleco - antecipou-se, dando uma risadinha.

Mirei com desprezo aquele bicho mesquinho, de pêlos ralos, a denunciar subserviência e torpeza. Nada nele me fazia lembrar o travesso coelhinho.

Neguei-me a aceitar como verdadeira a afirmação, pois Teleco não sofria da vista e se quisesse apresentar-se vestido teria o bom gosto de escolher outros trajes que não aqueles.

Ante a minha incredulidade, transformou-se numa perereca. Saltou por cima dos móveis, pulou no meu colo. Lancei-a longe, cheio de asco.

Retomando a forma de canguru, inquiriu-me, com um ar extremamente grave:

- Basta esta prova?

- Basta. E daí? O que você quer?

-De hoje em diante serei apenas homem.

-Homem? - indaguei atônito. Não resisti ao ridículo da situação e dei uma gargalhada:

- E isso? Apontei para a mulher. É uma lagartixa ou um filhote de salamandra?

Ela me olhou com raiva. Quis retrucar, porém ele atalhou:

- É Tereza. Veio morar conosco. Não é linda?

Sem dúvida, linda. Durante a noite, na qual me faltou o sono, meus pensamentos giravam em torno dela e da cretinice de Teleco em afirmar-se homem.

Levantei-me de madrugada e me dirigi à sala, na expectativa de que os fatos do dia anterior não passassem de mais um dos gracejos do meu companheiro.

Enganava-me. Deitado ao lado da moça, no tapete do assoalho, o canguru ressonava alto. Acordei-o, puxando-o pelos braços:

- Vamos, Teleco, chega de trapaça.

Abriu os olhos, assustado, mas, ao reconhecer-me, sorriu:

-Teleco?! Meu nome é Barbosa, Antônio Barbosa, não é, Tereza?

Ela, que acabara de despertar, assentiu, movendo a cabeça. Explodi, encolerizado:

- Se é Barbosa, rua! E não me ponha mais os pés aqui, filho de um rato!

Desceram-lhe as lágrimas pelo rosto e, ajoelhado, na minha frente, acariciava minhas pernas, pedindo-me que não o expulsasse de casa, pelo menos enquanto procurava emprego.

Embora encarasse com ceticismo a possibilidade de empregar-se um canguru, seu pranto me demoveu da decisão anterior, ou, para dizer a verdade toda, fui persuadido pelo olhar súplice de Tereza que, apreensiva, acompanhava o nosso diálogo.

Barbosa tinha hábitos horríveis. Amiúde cuspia no chão e raramente tomava banho, não obstante a extrema vaidade que o impelia a ficar horas e horas diante do espelho. Utilizava-se do meu aparelho de barbear, da minha escova de dente e pouco serviu comprar-lhe esses objetos, pois continuou a usar os meus e os dele. Se me queixava do abuso, desculpava-se, alegando distração.

Também a sua figura tosca me repugnava. A pele era gordurosa, os membros curtos, a alma dissimulada. Não media esforços para me agradar, contando-me anedotas sem graça, exagerando nos elogios à minha pessoa.

Por outro lado, custava tolerar suas mentiras e, às refeições, a sua maneira ruidosa de comer, enchendo a boca de comida com auxílio das mãos.

Talvez por ter-me abandonado aos encantos de Tereza, ou para não desagradá-la, o certo é que aceitava, sem protesto, a presença incômoda de Barbosa.

Se afirmava ser tolice de Teleco querer nos impor sua falsa condição humana, ela me respondia com uma convicção desconcertante:

- Ele se chama Barbosa e é um homem.

O canguru percebeu o meu interesse pela sua companheira e, confundindo a minha tolerância como possível fraqueza, tornou-se atrevido e zombava de mim quando o recriminava por vestir minhas roupas, fumar dos meus cigarros ou subtrair dinheiro do meu bolso.


Em diversas ocasiões, apelei para a sua frouxa sensibilidade, pedindo-lhe que voltasse a ser coelho.

Voltar a ser coelho? Nunca fui bicho. Nem sei de quem você fala.

- Falo de um coelhinho cinzento e meigo, que costumava se transformar em outros animais.

Nesse meio tempo, meu amor por Tereza oscilava por entre pensamentos sombrios, e tinha pouca esperança de ser correspondido. Mesmo na incerteza, decidi propor-lhe casamento.

Fria, sem rodeios, ela encerrou o assunto:

- A sua proposta é menos generosa do que você imagina. Ele vale muito mais.

As palavras usadas para recusar-me convenceram-me de que ela pensava explorar de modo suspeito às habilidades de Teleco.

Frustrada a tentativa do noivado, não podia vê-los juntos e íntimos, sem assumir uma atitude agressiva.

O canguru notou a mudança no meu comportamento e evitava os lugares onde me pudesse encontrar.

Uma tarde, voltando do trabalho, minha atenção foi alertada pelo som ensurdecedor da eletrola, ligada com todo o volume. Logo ao abrir a porta, senti o sangue afluir-me à cabeça: Tereza e Barbosa, os rostos colados, dançavam um samba indecente.

Indignado, separei-os. Agarrei o canguru pela gola e, sacudindo-o com violência, apontava-lhe o espelho da sala:

-É tu, não é um animal?

-Não, sou um homem! - E soluçava, esperneando, morto de medo pela fúria que via nos meus olhos.

A Tereza, que acudira, ouvindo seus gritos, pedia:

- Não sou um homem, querida? Fala com ele:

-Sim, amor, você é um homem.

Por mais absurdo que me parecesse, havia uma trágica sinceridade na voz deles. Eu me decidira, porém. Joguei Barbosa ao chão e lhe esmurrei a boca. Em seguida, enxotei-os.

Ainda da rua, muito excitada, ela me advertiu:

- Farei de Barbosa um homem importante, seu porcaria!

Foi a última vez que os vi. Tive, mais tarde, vagas notícias de um mágico chamado Barbosa a fazer sucesso na cidade. A falta de maiores esclarecimentos, acreditei ser mera coincidência de nomes.

A minha paixão por Tereza se esfumara no tempo e voltara o interesse pelos selos. As horas disponíveis eu as ocupava com a coleção.

Estava, uma noite, precisamente colando exemplares raros, recebidos na véspera, quando saltou, janela adentro, um cachorro. Refeito do susto, fiz menção de correr o animal. Todavia não cheguei a enxotá-lo.

- Sou o Teleco, seu amigo, afirmou, com uma voz excessivamente trêmula e triste, transformando-se em uma cotia.

-E ela? Perguntei com simulada displicência.

-Tereza… sem que concluísse a frase, adquiriu as formas de um pavão.

Havia muitas cores… O circo… Ela estava linda… Foi horrível… Prosseguiu, chocalhando os guizos de uma cascavel.

Seguiu-se breve silêncio, antes que voltasse a falar:

-O uniforme… muito branco… cinco cordas… amanhã serei homem… - as palavras saíam-lhe espremidas, sem nexo, à medida que Teleco se metamorfoseava em outros animais.

Por um momento, ficou a tossir Uma tosse nervosa. Fraca, a princípio, ela avultava com as mutações dele em bichos maiores, enquanto eu lhe suplicava que se aquietasse. Contudo ele não conseguia controlar-se.

Debalde tentava exprimir-se. Os períodos saltavam curtos e confusos.

- Pare com isso e fale mais calmo - insistia eu, impaciente com as suas contínuas transformações.

-Não posso, tartamudeava, sob a pele de um lagarto.

Alguns dias transcorridos perdurava o mesmo caos. Pelos cantos, a tremer, Teleco se lamuriava, transformando-se seguidamente em animais os mais variados. Gaguejava muito e não podia alimentar-se, pois a boca, crescendo e diminuindo, conforme o bicho que encarnava na hora, nem sempre combinava com o tamanho do alimento. Dos seus olhos, então, escorriam lágrimas que, pequenas nos olhos miúdos de um rato, ficavam enormes na face de um hipopótamo.

Ante a minha impotência em diminuir-lhe o sofrimento, abraçava-me a ele, chorando. O seu corpo, porém, crescia nos meus braços, atirando-me de encontro à parede.

Não mais falava: mugia, crocitava, zurrava, guinchava, bramia, triscava.

Por fim, já menos intranqüilo, limitava as suas transformações a pequenos animais, até que se fixou na forma de um carneirinho, a balir tristemente. Colhi-o nas mãos e senti que seu corpo ardia em febre, transpirava.
Na última noite, apenas estremecia de leve e, aos poucos, se aquietou. Cansado pela longa vigília, cerrei os olhos e adormeci. Ao acordar, percebi que uma coisa se transformara nos meus braços. No meu colo estava uma criança encardida, sem dentes. Morta.







Em todas as ruas te encontro 
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura 
que é de olhos fechados que eu ando 
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar 
que te atravessou a cintura
tanto    tão perto   tão real 
que o meu corpo se transfigura 
e toca o seu próprio elemento 
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu 
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco





Há palavras que nos beijam  
Como se tivessem boca. 
Palavras de amor, de esperança,  
De imenso amor, de esperança louca. 

Palavras nuas que beijas  
Quando a noite perde o rosto;   
Palavras que se recusam  
Aos muros do teu desgosto. 

De repente coloridas  
Entre palavras sem cor, 
Esperadas inesperadas 
Como a poesia ou o amor. 

(O nome de quem se ama  
Letra a letra revelado 
No mármore distraído
No papel abandonado) 

Palavras que nos transportam  
Aonde a noite é mais forte, 
Ao silêncio dos amantes 
Abraçados contra a morte.   

Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'






A Floresta em sua Casa, de Maria Judite de Carvalho

Pintava a lindas cores como um velho artista do passado, que se chamava Douanier Rousseau; simplesmente, os seus bichos não eram ingênuos nem agressivos, mas perigosos. Não terríveis, não assustadores: perigosos, embora um pouco engraçados também. Espreitavam ou estavam alerta ou resfolegavam ao de leve (era como se resfolegassem) ao preparar o salto. Havia sempre folhagem a dissimulá-los, a mantê-los numa quase ilegalidade graciosa, bonitas flores bojudas, de carne rosada, a tornar por assim dizer impossível, a ridicularizar, a sua ferocidade.
Não se via o tigre a atacar o búfalo, mordendo-o já, começando a dilacerá-lo. Não. O tigre, quando tigre havia, estava meio escondido por uma das tais flores, maior do que a sua cabeça. E sentia-se que ele já avistara a presa, que a espiava, que só estava à espera da altura mais conveniente, para agir. Era um jovem leão ágil, esse a que o pintor dava os últimos retoques. Um jovem leão já sabedor, a olhar bem de frente para quem o olhava. Tinha uma grande juba redonda e escura de que só se via metade, e um corpo amarelado que à primeira vista parecia exíguo. Exíguo porque atrás de si havia um tronco de árvore em cuja largura caberiam sete leões e que servia de pano de fundo a uma amálgama de lianas, de longas folhas gordas, carnosas, de arbustos que se erguiam do chão ou que tombavam de cima, em cascata. A juba estava semi-escondida por uma dessas folhas, grande e lobada, quase vermelha, quase animal.
«Era assim a floresta?» perguntavam com um arrepio breve e muita admiração as pessoas que visitavam o atelier do pintor. Ele abria os braços, punha-se a rir. Como havia de saber? Há séculos que os desertos e as grandes florestas e os densos bosques pintalgados de sol tinham desaparecido da face de um pequeno mundo superpovoado, porque a terra era pouca para edificar e para cultivar. Por isso se cultivavam também os oceanos. Nas antigas florestas da Amazónia havia deslumbrantes cidades de vidro, aeroportos imensos, belas auto-estradas. O mesmo nas de África e da Ásia, o mesmo nas do resto do mundo. E os animais, os poucos que tinham sobrevivido ao arrancar das raízes, encontravam-se em três ou quatro pequenos jardins de aclimatação.
Aquelas estranhas florestas eram, no entanto, as que ele imaginava. Velhas, luxuriantes florestas de há séculos, com uma vida que vinha do princípio das coisas. Florestas com túrgidas flores que nasciam, cresciam e morriam em poucas horas, que, por assim dizer, renasciam e onde o perigo espreitava por detrás de cada folha.
Os seus quadros eram muito procurados porque eram decorativos, tinham belas cores e nunca acabavam de ser vistos. Ali, estava o leão, mas, olhando melhor, procurando, avistavam-se as três corças, todas encolhidas, como que receosas, a cobra a rastejar, e mais além, confundindo-se com as lianas, a aranha carangueja. Havia também ângulos dos quais se podiam ver animaizinhos escondidos, aqui e além. Um, dois, cinco, mais?
Era um herdeiro de Rousseau e um charadista. Mas as charadas tinham desaparecido com os almanaques. Um pintor portanto original, criador, muito apreciado. «Tenha a floresta em casa» era o seu slogan publicitário. E as pessoas gostavam de ter em casa um pedaço dessa floresta, era refrescante. A maioria delas nunca tinha visto um leão nem um tigre a não ser nos livros de zoologia, porque os jardins onde havia animais eram poucos e os próprios animais tendiam a desaparecer, como se o mundo actual já não lhes pertencesse. As fêmeas procriavam com dificuldade, algumas espécies estavam praticamente extintas, outras tinham mesmo desaparecido por completo. Assim, já não havia elefantes, nem ursos nem leopardos.
O casal que comprou ao pintor a sua última grande tela, a do leão, tinha dois filhos pequenos, um de cinco, outro de sete anos, e as crianças andaram semanas de volta do quadro, até que lhe descobriram todos os segredos, os bichos semi-escondidos, espreitadores, prestes a devorar ou prestes a ser devorados. Era um jogo apaixonante.
«Ainda há mais», dizia um.
«Aposto que não», respondia o outro.
E em primeiro plano, fitando-os com serenidade um pouco trocista, o leão da juba redonda, grandes, plácidos olhos amarelos, corpo inquieto. As crianças ouviram dizer que no jornal viera a notícia da morte, no jardim de Choa, junto ao Nilo Azul, do último leão do mundo. E isso pareceu-lhes apaixonante, era como se estivessem, também eles, à beira de um precipício e lá em baixo fosse a outra era, aquela em que não haveria leões.
«Nós temos leão», disse o mais pequeno quando estavam deitados e de luz apagada.
«É de pano pintado.»
«O resto é de pano pintado. Ele não.»
«És parvo.»
«Os olhos dele são olhos a sério. É um leão. E deve ter fome," Sentou-se na cama. «O que comerá um leão?»
«Não é fácil alimentar um leão», disse o mais velho com paciência. «Não é nada fácil".
«Não deve ser. O que comem os leões?»
«Não sei. Talvez outros animais, os mais saborosos. Gente, quando têm muita fome. Agora vou dormir, tenho sono.» No dia seguinte continuaram a sua ronda entusiástica em volta do quadro. E o mais velho estacou de repente:
«Gilles!» chamou em voz baixa; «Quantas são as corças?» «Três», respondeu Gilles sem hesitar.
«Também me parecia», declarou com fingido à-vontade. «Também me parecia que elas eram três.
Mas hoje, agora são duas!»
«Não pode ser!»
Podia. O coração de Gilles batia com intensidade. «Vamos dizer à mãe? Vamos já dizer à mãe?»
«Não», disse o mais velho. «Não. É um segredo. Jura que não contas a ninguém. É um segredo, ouviste? Como... descobrir um tesouro. Anda, jura.»
«É um segredo. Juro que não conto a ninguém».
«Pronto».
Gilles levou o dia a passear diante do quadro, e o velho leão a fitá-lo com os seus tranquilos olhos amarelos. Alex, o irmão mais velho, parecia haver-se desinteressado e olhava os carros que passavam pela estrada, a poucos metros. Olhava-os como quem sonha. Como quem pensa. Como quem procura?
No dia seguinte só havia uma corça e no outro algumas folhas haviam preenchido o lugar, lá longe, onde elas tinham estado, quase escondidas, mas não totalmente, pelo enorme tronco da árvore. Durante dois dias não houve modificação; o jovem rei digeria. Mas depois desapareceu um pequeno macaco risonho. Restavam a cobra e a aranha. O leão parecia não se decidir.
«Olha para ele, Alex».
«O que tem?»
«Os olhos dele. Não sei. Tenho medo».
«Medo de quê? És parvo. És um miúdo, é o que tu és. Medo de quê?»
De quê? Não sabia. Mas medo. Queria ir deitar-se, não olhar mais para os olhos amarelos, tão brilhantes, não sentir mais o peso daquele segredo.
Na manhã seguinte a mãe sacudiu-o com força: «O Alex? Onde está o Alex?» Sabia lá! Mas levantou-se porque todos procuravam, faziam muito barulho, a mãe chorava, o pai dava gritos, ameaçava toda a gente, nunca o tinha visto assim, parecia doido. E ele soube então - e viu - que a roupa da cama do irmão estava dilacerada, como se a tivessem cortado à navalha, e que havia sangue pelo chão. A polícia dentro de casa. Dois vagabundos presos e nesse mesmo dia confessavam o crime, ou melhor, não tinham reagido bem ao detector de mentiras. Culpados. Condenados decerto a prisão perpétua.
«Jura que não contas a ninguém, É um segredo, ouviste? Como descobrir um tesouro. Anda, jura.» «É um segredo. Juro que não conto a ninguém».
Uma noite, a mãe. E então o pai preso, os vagabundos libertos. O detector funcionara mal, todas as máquinas podem avariar-se, não é assim? Era estranho, mas Gilles ficou contente por o pai ter sido preso. E por os tios terem chegado, todos de luto, a fim de tomarem conta dele, pobre menino de cinco anos só no mundo. Fecharam portas e janelas, e levaram a chave e Gilles também, para uma cidade distante onde tinham uma casa modesta, sem quadros. Quiseram que o menino esquecesse o passado; ele, porém, recusou-se a isso. Terminantemente. Era, de resto, uma recordação tão estranha que, com o decorrer dos anos e as palavras da tia, acabou por a julgar um sonho mau mas apaixonante.
Muito tempo depois, já homem, já casado, voltou ali. Meteu a velha chave na fechadura, abriu a porta que o tempo emperrara. Um cheiro estranho a bafio. Seria mesmo a bafio? Entrou devagar, foi entrando, e a primeira porta que abriu foi a da sala e a primeira coisa que olhou foi a tela. Lá estava o leão com o seu ar caricatural e perigoso, e as corças e o macaco, e Gilles teve então de acreditar na tia que durante anos e anos lhe dissera que ele fora uma criança demasiado imaginativa. O pai tinha simplesmente enlouquecido e morto primeiro Alex, depois a mãe. Os corpos, assegurava ela, tinham sido encontrados mais tarde num barranco. Agora Gilles, ali em frente da tela, já não tinha razão para duvidar da tia nem dos médicos que haviam internado seu pai no manicómio. Mas sentia-se profundamente decepcionado e arrependido de ter vindo.






O AMANTE INVISÍVEL

Quero suprimir o tempo e o espaço
A fim de me encontrar sem limites unido ao teu ser,
Quero que Deus aniquile minha forma atual e me faça voltar a ti,
Quero circular no teu corpo com a velocidade da hóstia,
Quero penetrar nas tuas entranhas
A fim de ter um conhecimento de ti que nem tu mesma possuis,
Quero navegar nas tuas artérias e confabular com teu sangue,
Quero levantar tua pálpebra e espiar tua pupila quando acordares,
Quero baixar a nuvem para que teu sono seja calmo,
Quero ser expelido pela tua saliva,
Quero me estorcer nos teus braços
Quando os fundamentos da terra se abalarem nos teus pesadelos,
Quero escrever a biografia de todos os átomos do teu corpo,
Quero combinar os sons 
Para que a música da maior ternura embale teus ouvidos,
Quero mandar teu nome nas flechas dos ventos
Para que outros povos te conheçam do outro lado do mar,
Quero forçar teu pensamento a pensar em mim,
Quero desenhar diante de teus olhos
O Alfa e Ômega nos teus instantes de dúvida,
Quero subir em ramagem pelas tuas pernas,
Quero me enrolar em serpente no teu pescoço,
Quero ser acariciado em pedra pelas tuas mãos,
Quero me dissolver em perfume nas tuas narinas,
Quero me transformar em ti. 



O Pastor Pianista 

Soltaram os pianos na planície deserta 
Onde as sombras dos pássaros vêm beber. 
Eu sou o pastor pianista, 
Vejo ao longe com alegria meus pianos 
Recortarem os vultos monumentais 
Contra a lua. 

Acompanhado pelas rosas migradoras 
Apascento os pianos: gritam 
E transmitem o antigo clamor do homem 

Que reclamando a contemplação, 
Sonha e provoca a harmonia, 
Trabalha mesmo à força, 
E pelo vento nas folhagens, 
Pelos planetas, pelo andar das mulheres, 
Pelo amor e seus contrastes, 
Comunica-se com os deuses. 



O Nascimento do Mito 
                                                            
A menina de cabelos cacheados
Brinca com o arco nas nuvens

Escolho as sombras que bem quero
No perfil das árvores

Conto as estrelas pelos dedos
Faltam várias ao trabalho

Alguém transporta Sirius de um lado para outro
A noite explode em magnólias

Escutas as plantas crescerem
E o diálogo sinistro contínuo
Das ondas com o horizonte

Desmontam o universo-manequim
Carregam a areia do mar
Para a ampulheta do tempo

Homens obscuros edificam
Em ligação com os elementos
O monumento do sonho
E refazem pela Ode
O que os tanques desfizera.

Murilo Mendes