Diante da morte, todas as sensações são nada. Tantas palavras já se falaram sobre o fenômeno da morte (ou sobre o esqueleto encapuzado que seria sua representação) e, mesmo assim, ela permanece inalcançável. Por isso, na décima oficina, a se realizar no dia 22/09, às 08 horas, no auditório do campus definitivo da UFFS, a morte se apresentará nas visões de autores que a enxergaram. Começando com a risada pós-mortem de um defunto rico, num conto de Lima Barreto, passa-se, em seguida à angústia de viver que pesa sobre os poemas de Álvares de Azevedo. Depois, surge um turbilhão de impressões com os sonetos de Antero de Quental, onde se vê a morte como algo de busca ou de incerteza. Por fim, com "Uma vela para Dario", de Dalton Trevisan, vê-se a morte no cotidiano social. Um semestre morrerá, enfim, mas sempre se há a esperança de um novo começo.
Um cadáver de poeta
Levem ao túmulo aquele que parece um cadáver! Tu
não pesaste sobre a terra: a terra te seja leve!
L. UHLAND.
I
De tanta inspiração e tanta vida
Que os nervos convulsivos inflamava
E ardia sem conforto...
O que resta? uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava...
Resta um poeta morto!
Morrer! e resvalar na sepultura,
Frias na fronte as ilusões — no peito
Quebrado o coração!
Nem saudades levar da vida impura
Onde arquejou de fome... sem um leito!
Em treva e solidão!
Tu foste como o sol; tu parecias
Ter na aurora da vida a eternidade
Na larga fronte escrita...
Porém não voltarás como surgias!
Apagou-se teu sol da mocidade
Numa treva maldita!
Tua estrela mentiu. E do fadário
De tua vida a página primeira
Na tumba se rasgou...
Pobre gênio de Deus, nem um sudário!
Nem túmulo nem cruz! como a caveira
Que um lobo devorou!...
II
Morreu um trovador — morreu de fome.
Acharam-no deitado no caminho:
Tão doce era o semblante! Sobre os lábios
Flutuava-lhe um riso esperançoso.
E o morto parecia adormecido.
Ninguém ao peito recostou-lhe a fronte
Nas horas da agonia! Nem um beijo
Em boca de mulher! nem mão amiga
Fechou ao trovador os tristes olhos!
Ninguém chorou por ele... No seu peito
Não havia colar nem bolsa d'oiro;
Tinha até seu punhal um férreo punho...
Pobretão! não valia a sepultura!
Todos o viam e passavam todos.
Contudo era bem morto desde a aurora.
Ninguém lançou-lhe junto ao corpo imóvel
Um ceitil para a cova!... nem sudário!
O mundo tem razão, sisudo pensa,
E a turba tem um cérebro sublime!
De que vale um poeta — um pobre louco
Que leva os dias a sonhar — insano
Amante de utopias e virtudes
E, num tempo sem Deus, ainda crente?
(...)
DESPEDIDAS
Se entrares, ó meu anjo, alguma vez
Na solidão onde eu sonhava em ti,
Ah! vota uma saudade aos belos dias
Que a teus joelhos pálido vivi!
Adeus, minh'alma, adeus! eu vou chorando...
Sinto o peito doer na despedida...
Sem ti o mundo é um deserto escuro
E tu és minha vida...
Só por teus olhos eu viver podia
E por teu coração amar e crer...
Em teus braços minh'alma unir à tua
E em teu seio morrer!
Mas se o fado me afasta da ventura,
Levo no coração a tua imagem...
De noite mandarei-te os meus suspiros
No murmúrio da aragem!
Quando a noite vier saudosa e pura,
Contempla a estrela do pastor nos céus,
Quando a ela eu volver o olhar em pranto...
Verei os olhos teus!
Mas antes de partir, antes que a vida,
Se afogue numa lágrima de dor,
Consente que em teus lábios num só beijo
Eu suspire de amor!
Sonhei muito! sonhei noites ardentes
Tua boca beijar... eu o primeiro!
A ventura negou-me... mesmo até
O beijo derradeiro!
Só contigo eu podia ser ditoso,
Em teus olhos sentir os lábios meus!
Eu morro de ciúme e de saudade...
Adeus, meu anjo, adeus!
Carta
de um defunto rico
Lima
Barreto
“Meus
caros amigos e parentes. Cá estou no carneiro n° 7..., da 3a
quadra, à direita, como vocês devem saber, porque me puseram nele.
Este Cemitério de São João Batista da Lagoa não é dos piores.
Para os vivos, é grave e solene, com o seu severo fundo de escuro e
padrasto granítico. A escassa verdura verde-negra das montanhas de
roda não diminuiu em nada a imponência da antiguidade da rocha
dominante nelas. Há certa grandeza melancólica nisto tudo; mora
neste pequeno vale uma tristeza teimosa que nem o sol glorioso
espanta... Tenho, apesar do que se possa supor em contrário, uma
grande satisfação; não estou mais preso ao meu corpo. Ele está no
aludido buraco, unicamente a fim de que vocês tenham um marco, um
sinal palpável para as suas recordações; mas anda em toda a parte.
Consegui
afinal, como desejava o poeta, elevar-me bem longe dos miasmas
mórbidos, purificar-me no ar superior — e bebo, como um puro e
divino licor, o fogo claro que enche os límpidos espaços.
Não
tenho as dificultosas tarefas que, por aí, pela superfície da
terra, atazanam a inteligência de tanta gente.
Não
me preocupa, por exemplo, saber se devo ir receber o poderoso
imperador do Beluchistã com ou sem colarinho; não consulto
autoridades constitucionais para autorizar minha mulher a oferecer ou
não lugares do seu automóvel a príncipes herdeiros — coisa,
aliás, que é sempre agradável às senhoras de uma democracia; não
sou obrigado, para obter um título nobiliárquico, de uma
problemática monarquia, a andar pelos adelos, catando suspeitas
bugigangas, e pedir a literatos das ante-salas palacianas que as
proclamem raridades de beleza, a fim de encherem salões de casas de
bailes e emocionarem os ingênuos com recordações de um passado que
não devia ser avivado.
Afirmando
isto, tenho que dizer as razões. Em primeiro lugar, tais bugigangas
não têm, por si, em geral, beleza alguma; e, se a tiveram era
emprestada pelas almas dos que se serviram delas. Semelhante beleza
só pode ser sentida pelos descendentes dos seus primitivos donos.
Demais,
elas perdem todo o interesse, todo o seu valor, tudo o que nelas
possa haver de emocional, desde que percam a sua utilidade e desde
que sejam retiradas dos seus lugares próprios. Há senhoras belas,
no seu interior, com os seus móveis e as costuras; mas que não o
são na rua, nas salas de baile e de teatro. O homem e as suas
criações precisam, para refulgir, do seu ambiente próprio,
penetrado, saturado das dores, dos anseios, das alegrias de sua alma;
é com as emanações de sua vitalidade, é com as vibrações
misteriosas de sua existência que as coisas se enchem de beleza.
É o
sumo de sua vida que empresta beleza às coisas mortais; é a alma do
personagem que faz a grandeza do drama, não são os versos, as
metáforas, a linguagem em si, etc., etc. Estando ela ausente, por
incapacidade do ator, o drama não vale nada.
Por
isso, sinto-me bem contente de não ser obrigado a caçar, nos
belchiores e cafundós domésticos, bugigangas, para agradar futuros
e problemáticos imperantes, porque teria que dar a elas alma,
tentativa em projeto que, além de inatingível, é supremamente
sacrílego.
De
resto, para ser completa essa reconstrução do passado ou essa visão
dele, não se podia prescindir de certos utensílios de uso secreto e
discreto, nem tampouco esquecer determinados instrumentos de tortura
e suplício, empregados pelas autoridades e grão-senhores no castigo
dos seus escravos.
Há,
no passado, muitas coisas que devem ser desprezadas e inteiramente
eliminadas, com o correr do tempo, para a felicidade da espécie, a
exemplo do que a digestão faz, para a do indivíduo, com certas
substâncias dos alimentos que ingerimos.
Mas...
estou na cova e não devo relembrar aos viventes coisas dolorosas.
Os
mortos não perseguem ninguém e só podem gozar da beatitude da
superexistência aqueles que se purificam pelo arrependimento e
destroem na sua alma todo o ódio, todo o despeito, todo o rancor.
Os
que não conseguem isso — ai deles!
Alonguei-me
nessas considerações intempestivas, quando a minha tenção era
outra.
O
meu propósito era dizer a vocês que o enterro esteve lindo. Eu
posso dizer isto sem vaidade, porque o prazer dele, da sua
magnificência, do seu luxo, não é propriamente meu, mas de vocês,
e não há mal algum que um vivente tenha um naco de vaidade, mesmo
quando é presidente de alguma coisa ou imortal da Academia de
Letras.
Enterro
e demais cerimônias fúnebres não interessam ao defunto; elas são
feitas por vivos para vivos.
É
uma tolice de certos senhores disporem nos seus testamentos como
devem ser enterrados. Cada um enterra seu pai como pode — é uma
sentença popular, cujo ensinamento deve ser tomado no sentido mais
amplo possível, dando aos sobreviventes a responsabilidade total do
enterro dos seus parentes e amigos, tanto na forma como no fundo.
O
meu, feito por vocês, foi de truz. O carro estava soberbamente
agaloado; os cavalos bem paramentados e empenachados; as riquíssimas
coroas, além de ricas, eram lindas. Da Haddock Lobo, daquele casarão
que ganhei com auxílio das ordens terceiras, das leis, do câmbio e
outras fatalidades econômicas e sociais que fazem pobres a maior
parte dos sujeitos e a mim me fizeram rico; da porta dele até o
portão de São João Batista, o meu enterro foi um deslumbramento.
Não havia, na rua, quem não perguntasse quem ia ali.
Triste
destino o meu, esse de, nos instantes do meu enterramento, toda uma
população de uma vasta cidade querer saber o meu nome e dali a
minutos, com a última pá de terra deitada na minha sepultura, vir a
ser esquecido, até pelos meus próprios parentes.
Faço
esta reflexão somente por fazer, porque, desde muito, havia
encontrado, no fundo das coisas humanas, um vazio absoluto.
Essa
convicção me veio com as meditações seguidas que me foram
provocadas pelo fato de meu filho Carlos, com quem gastei uma fortuna
em mestres, a quem formei, a quem coloquei altamente, não saber nada
desta vida, até menos do que eu.
Adivinhei
isto e fiquei a matutar como que é que ele gozava de tanta
consideração fácil e eu apenas merecia uma contrariedade? Eu,
que...
Carlos,
meu filho, se leres isto, dá o teu ordenado àquele pobre rapaz que
te fez as sabatinas por "tuta-e-meia"; e contenta-te com o
que herdaste do teu pai e com o que tem tua mulher! Se não
fizeres... ai de ti!
Nem
o Carlos nem vocês outros, espero, encontrarão nesta última
observação matéria para ter queixa de mim. Eu não tenho mais
amizade, nem inimizade.
Os
vivos me merecem unicamente piedade; e o que me deu esta situação
deliciosa em que estou, foi ter sido, às vezes, profundamente bom.
Atualmente, sou sempre...
Não
seria, portanto, agora que, perto da terra, estou, entretanto, longe
dela, que havia de fazer recriminações a meu filho ou tentar
desmoralizá-lo. Minha missão, quando me consentem, é fazer bem e
aconselhar o arrependimento.
Agradeço
a vocês o cuidado que tiveram com o meu enterro; mas, seja-me
permitido, caros parentes e amigos, dizer a vocês uma coisa. Tudo
estava lindo e rico; mas um cuidado vocês não tiveram. Por que
vocês não forneceram librés novas aos cocheiros das caleças,
sobretudo, ao do coche, que estava vestido de tal maneira andrajosa
que causava dó?
Se
vocês tiverem que fazer outro enterro, não se esqueçam de vestir
bem os pobres cocheiros, com o que o defunto, caso seja como eu,
ficará muito satisfeito. O brilho do cortejo será maior e vocês
terão prestado uma obra de caridade.
Era
o que eu tinha a dizer a vocês. Não me despeço, pelo simples
motivo de que estou sempre junto de vocês. É tudo isto do
José
Boaventura da Silva.
N.B.
- Residência, segundo a Santa Casa: Cemitério de São João Batista
da Lagoa; e segundo a sabedoria universal, em toda a parte. - J.B.S."
Posso
garantir que transladei esta carta para aqui, sem omissão de uma
vírgula.
Alvares de Azevedo
Um cadáver de poeta
Levem ao túmulo aquele que parece um cadáver! Tu
não pesaste sobre a terra: a terra te seja leve!
L. UHLAND.
I
De tanta inspiração e tanta vida
Que os nervos convulsivos inflamava
E ardia sem conforto...
O que resta? uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava...
Resta um poeta morto!
Morrer! e resvalar na sepultura,
Frias na fronte as ilusões — no peito
Quebrado o coração!
Nem saudades levar da vida impura
Onde arquejou de fome... sem um leito!
Em treva e solidão!
Tu foste como o sol; tu parecias
Ter na aurora da vida a eternidade
Na larga fronte escrita...
Porém não voltarás como surgias!
Apagou-se teu sol da mocidade
Numa treva maldita!
Tua estrela mentiu. E do fadário
De tua vida a página primeira
Na tumba se rasgou...
Pobre gênio de Deus, nem um sudário!
Nem túmulo nem cruz! como a caveira
Que um lobo devorou!...
II
Morreu um trovador — morreu de fome.
Acharam-no deitado no caminho:
Tão doce era o semblante! Sobre os lábios
Flutuava-lhe um riso esperançoso.
E o morto parecia adormecido.
Ninguém ao peito recostou-lhe a fronte
Nas horas da agonia! Nem um beijo
Em boca de mulher! nem mão amiga
Fechou ao trovador os tristes olhos!
Ninguém chorou por ele... No seu peito
Não havia colar nem bolsa d'oiro;
Tinha até seu punhal um férreo punho...
Pobretão! não valia a sepultura!
Todos o viam e passavam todos.
Contudo era bem morto desde a aurora.
Ninguém lançou-lhe junto ao corpo imóvel
Um ceitil para a cova!... nem sudário!
O mundo tem razão, sisudo pensa,
E a turba tem um cérebro sublime!
De que vale um poeta — um pobre louco
Que leva os dias a sonhar — insano
Amante de utopias e virtudes
E, num tempo sem Deus, ainda crente?
(...)
DESPEDIDAS
Se entrares, ó meu anjo, alguma vez
Na solidão onde eu sonhava em ti,
Ah! vota uma saudade aos belos dias
Que a teus joelhos pálido vivi!
Adeus, minh'alma, adeus! eu vou chorando...
Sinto o peito doer na despedida...
Sem ti o mundo é um deserto escuro
E tu és minha vida...
Só por teus olhos eu viver podia
E por teu coração amar e crer...
Em teus braços minh'alma unir à tua
E em teu seio morrer!
Mas se o fado me afasta da ventura,
Levo no coração a tua imagem...
De noite mandarei-te os meus suspiros
No murmúrio da aragem!
Quando a noite vier saudosa e pura,
Contempla a estrela do pastor nos céus,
Quando a ela eu volver o olhar em pranto...
Verei os olhos teus!
Mas antes de partir, antes que a vida,
Se afogue numa lágrima de dor,
Consente que em teus lábios num só beijo
Eu suspire de amor!
Sonhei muito! sonhei noites ardentes
Tua boca beijar... eu o primeiro!
A ventura negou-me... mesmo até
O beijo derradeiro!
Só contigo eu podia ser ditoso,
Em teus olhos sentir os lábios meus!
Eu morro de ciúme e de saudade...
Adeus, meu anjo, adeus!
Antero de Quental
Na
Mão de Deus
Na
mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou
afinal meu coração.
Do
palácio encantado da Ilusão
Desci
a passo e passo a escada estreita.
Como
as flores mortais, com que se enfeita
A
ignorância infantil, despojo vão,
Depois
do Ideal e da Paixão
A
forma transitória e imperfeita.
Como
criança, em lôbrega jornada,
Que
a mãe leva ao colo agasalhada
E
atravessa, sorrindo vagamente,
Selvas,
mares, areias do deserto...
Dorme
o teu sono, coração liberto,
Dorme
na mão de Deus eternamente!
O
que Diz a Morte
Deixai-os
vir a mim, os que lidaram;
Deixai-os
vir a mim, os que padecem;
E os
que cheios de mágoa e tédio encaram
As
próprias obras vãs, de que escarnecem...
Em
mim, os Sofrimentos que não saram,
Paixão,
Dúvida e Mal, se desvanecem.
As
torrentes da Dor, que nunca param,
Como
num mar, em mim desaparecem. -
Assim
a Morte diz. Verbo velado,
Silencioso
intérprete sagrado
Das
cousas invisíveis, muda e fria,
É,
na sua mudez, mais retumbante
Que
o clamoroso mar; mais rutilante,
Na
sua noite, do que a luz do dia.
Com
os Mortos
Os
que amei, onde estão? Idos, dispersos,
arrastados
no giro dos tufões,
Levados,
como em sonho, entre visões,
Na
fuga, no ruir dos universos...
E eu
mesmo, com os pés também imersos
Na
corrente e à mercê dos turbilhões,
Só
vejo espuma lívida, em cachões,
E
entre ela, aqui e ali, vultos submersos...
Mas
se paro um momento, se consigo
Fechar
os olhos, sinto-os a meu lado
De
novo, esses que amei vivem comigo,
Vejo-os,
ouço-os e ouvem-me também,
Juntos
no antigo amor, no amor sagrado,
Na
comunhão ideal do eterno Bem.
Lacrimae
Rerum
Noite,
irmã da Razão e irmã da Morte,
Quantas
vezes tenho eu interrogado
Teu
verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente
e intérprete da Sorte!
Aonde
são teus sóis, como corte
De
almas inquietas, que conduz o Fado?
E o
homem porque vaga desolado
E em
vão busca a certeza que o conforte?
Mas,
na pompa de imenso funeral,
Muda,
a noite, sinistra e triunfal,
Passa
volvendo as horas vagarosas...
É
tudo, em torno a mim, dúvida e luto;
O
suspiro das coisas tenebrosas...
Mors
– Amor
Esse
negro corcel, cujas passadas
Escuto
em sonhos, quando a sombra desce,
E,
passando a galope, me aparece
Da
noite nas fantásticas estradas,
Donde
vem ele? Que regiões sagradas
E
terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso
e sublime, e lhe estremece
Não
sei que horror nas crinas agitadas?
Um
cavaleiro de expressão potente,
Formidável,
mas plácido, no porte,
Vestido
de armadura reluzente,
Cavalga
a fera estranha sem temor:
E o
corcel negro diz: "Eu sou a morte!"
Responde
o cavaleiro: "Eu sou o Amor!"
Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.
Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.
Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.
Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.
A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.
Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las.
Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade.
Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.
O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.
A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.
Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.
Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.
Uma vela para Dario
Dalton Trevisan
Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.
Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.
Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.
Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.
A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.
Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las.
Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade.
Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.
O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.
A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.
Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.
Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.